Nem toda batalha se trava com armas.
Algumas, silenciosas, nascem dentro.
E mesmo guerreiros moldados pela luz
têm sombras que não se podem conter.
Naquele ciclo sutil entre as dimensões, as runas dos Guardiões — douradas, vivas, pulsantes — vibravam fora do compasso. Criadas para selar a conexão entre essência e propósito, agora pareciam responder não mais à missão… mas ao caos interno que neles florescia.
O amor, em sua forma mais crua e inesperada, crescia como raiz proibida.
E o véu… sussurrava.
O espaço entre as dimensões nunca era completamente silencioso.
Havia pulsares, respiros, ondas de essência que mantinham tudo em harmonia.
Mas, naquele ciclo… algo estava diferente.
Uma vibração sutil percorreu os véus.
Não era ruptura.
Não era falha.
Era como um suspiro fora do compasso — um aviso velado.
A harmonia entre as dimensões, até então perfeita, começava a oscilar.
O véu vibrava em frequência irregular, como se pressentisse uma aproximação não autorizada…
Como se os elos entre os Guardiões estivessem se confundindo.
Os Ancestrais, envolvidos em suas tarefas cósmicas, sentiram.
Eles não precisaram se comunicar com palavras.
Suas consciências etéreas trocaram pulsos silenciosos de percepção.
Eles sabiam.
Algo acontecia entre os Guardiões.
Algo que desafiava as regras.
Algo que poderia comprometer séculos de equilíbrio.
Eles apenas observariam.
Silenciosos. Atentos.
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Enquanto isso, no Campo de Kaern, onde cristais flutuantes levitavam sobre o solo sagrado e colunas ancestrais guardavam os ecos de batalhas passadas, Lúmina treinava com Askar. O céu da dimensão mística pulsava em tons dourados, mas a tensão entre eles criava uma atmosfera densa — como se o ar soubesse que algo além da técnica estava em jogo.
Estavam lado a lado, praticando uma antiga forma de combate espiritual que exigia sincronia… e proximidade.
Askar segurava o braço de Lúmina com firmeza, corrigindo a postura do golpe.
— “Você sempre foi o mais belo dos quatro…” — ela comentou, com um sorriso enviesado, deixando os dedos deslizarem lentamente pelos músculos tensos do braço dele. — “Há algo em você… essa mistura de bruto e protetor… é quase hipnótica.”
Askar a encarou com uma expressão difícil de decifrar. Havia um toque de desconfiança ali — mas nenhuma hostilidade. Apenas… cautela.
Ele se afastou um passo e disse com a voz firme:
— “E você continua sendo a mais desatenta.” Vamos focar no treino. Se conseguir se concentrar, talvez consiga deixar os seus assim também.”
Lúmina riu baixo, com um brilho encantado nos olhos.
— “Não canso de me encantar com sua força…”
Askar parou. Silêncio.
— “Lúmina.” — sua voz saiu grave, contida. — “Por favor.”
— “Eu só… admirei.”
— “Você sente mais que admiração. Eu percebo. Mas meu coração… já tem um nome. E você sabe disso.”
O olhar de Lúmina vacilou. Por um instante, o sorriso se desfez.
— “Treino encerrado.” — ele completou. — “Já foi o suficiente por hoje.”
Ele se virou e partiu, os passos pesados ecoando entre as pedras místicas. Lúmina ficou ali, imóvel, assistindo-o se afastar. Uma lágrima escorreu silenciosa e caiu como cristal líquido em sua mão.
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Momentos depois, na sacada do Salão das Poções Ancestrais, Elira organizava frascos e ingredientes, os movimentos cuidadosos de quem conhece cada essência pelo cheiro e cor.
Enquanto isso, seus olhos se voltavam, vez ou outra, para o Campo de Kaern. Lá embaixo, Lúmina e Askar treinavam.
E então veio o aperto.
Não precisava ouvir palavras para compreender o que transbordava nos gestos. O toque prolongado nos braços dele, o sorriso enviesado dela, o olhar que hesitava entre o respeito e o sentimento que crescia em silêncio. Lúmina também o amava.
E isso doía.
Mas também pesava em sua consciência — como uma culpa silenciosa por ter o que outra ansiava.
Doía não apenas por ela mesma, mas por Lúmina — por aquela guardiã de luz tão doce, que merecia ser amada de volta. Elira sentia pena… e culpa. Não era sua culpa amar Askar. Mas também não era culpa de Lúmina. Então, por que tudo parecia tão errado?
Ela suspirou, tentando afastar os pensamentos. Precisava se concentrar. Precisava ser forte. Mas o peso de sentir… era árduo.
Foi nesse instante, mergulhada em conflitos silenciosos, que ela sentiu a presença familiar e intensa de Kaelith atrás de si — e se virou rapidamente.
Ele estava ali, encostado à sombra de uma coluna do salão , observando-a com olhos em brasa e uma expressão indecifrável.
— “Precisa de algo?” — ela perguntou com doçura contida, tentando manter o equilíbrio.
Kaelith deu um passo adiante. Sua voz saiu baixa, mas densa:
— “Às vezes, é insuportável… quase incontrolável… ficar perto de você.”
Elira congelou. As palavras a atingiram mais do que pretendiam. Ela sentiu o coração acelerar, o rosto corar.
— “Kaelith…” — sussurrou. — “Isso… isso não faz parte da nossa missão. Lembre-se do porquê estamos aqui.”
Ela se aproximou um pouco, como quem tenta acalmar uma fera. Seus olhos encontraram os dele com delicadeza.
— “É tão difícil…” — a voz dele saiu baixa, quase um sussurro rouco. — “Quando sinto sua energia… algo em mim entra em erupção. É como se cada parte do meu ser gritasse para tocá-la… para me aproximar…”
Elira o interrompeu com doçura, mas firmeza nos olhos:
— “Kaelith… não podemos sentir isso. Seremos condenados.”
Ele a fitou em silêncio, lutando consigo mesmo. Então, sem conseguir mais conter, murmurou:
— “Eu não consigo mais fingir. Não quando estou diante de você. Tudo em mim… vibra. Grita. Eu…”
Elira levou a mão até o peito, onde a runa da serpente pulsava como brasa viva.
— “Então precisamos encontrar uma salvação. Por nós. Pelos quatro. Antes que seja tarde demais.”
Kaelith se aproximou, lentamente, e ergueu a mão para tocar o rosto dela. Seus dedos pairaram no ar, tremendo com o sentimento reprimido.
— “Elira… eu…”
Ela recuou um passo, sussurrando:
— “Por favor, Kaelith. Se controle. Um pequeno erro pode condenar a todos nós.”
Ele fechou os punhos com força, os olhos em brasa desviando do olhar dela.
Então partiu, em silêncio.
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Mais tarde, ainda sob o peso daquele encontro, Kaelith desceu os degraus do salão com passos pesados e atravessou o bosque que levava ao Campo de Kaern.
Ali, Askar encerrava os últimos exercícios com Arak quando sentiu o calor cortante se aproximando. Virou-se — e deu de cara com Kaelith. O olhar do Guardião das trevas estava mais intenso que nunca.
Askar não se intimidou. Sabia. Sabia que Kaelith também amava Elira. Sentia o ciúme vibrando como brasas vivas. Ainda assim, tentou manter a neutralidade.
— “O que houve, meu irmão?” — disse com calma, mas atento. — “Parece… carregado. Como se algo estivesse arrastando sua paz.”
Kaelith respirou fundo. Seus olhos brilharam mais forte, mas ele se conteve.
Demorou um instante antes de responder:
— “Sentir o que não devemos… e não poder controlar, já é doloroso.
Mas sofrer por saber que o que desejamos… nunca nos pertencerá… isso é cruel.”
Deu um passo à frente, desviando o ombro de leve, e antes de desaparecer pelas sombras, lançou:
— “Se puder sair da minha frente… estou com pressa.
Preciso castigar alguns corrompidos.
Tenho necessidade de derramar… isso que me corrói… em alguém que aguente.”
Askar permaneceu imóvel, observando-o se afastar. Seu rosto não expressava medo — apenas um alerta.
Sabia que a essência do amor não correspondido estava desestabilizando Kaelith.
E que, se nada fosse feito… a queda seria inevitável.
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Enquanto isso, na clareira, Elira finalmente criou coragem e desceu até Lúmina. A amiga ainda estava sentada, imóvel, no mesmo lugar.
O brilho nos olhos havia desaparecido.
Ao se aproximar, viu o brilho de um líquido cristalino escorrendo dos olhos da amiga.
O unicórnio Eryel repousava ao lado dela, com a cabeça apoiada em seu ombro, numa postura silenciosa de consolo.
— “Minha irmã? Você se machucou? Isso… em seus olhos… são lágrimas?” — Elira murmurou, ajoelhando-se à frente dela. — “Está chorando?”
Lúmina ergueu os olhos lentamente. Seus olhos lilases brilharam como se um universo inteiro vibrasse dentro deles.
— “Às vezes… sinto algo por você que não sei nomear.” — sua voz era baixa, vacilante. — “Às vezes, quero estar no lugar onde Askar lhe colocou… no coração dele.”
Elira engoliu em seco, surpresa, mas não recuou. Segurou as mãos da amiga com delicadeza.
— “Minha doce irmã… Suas dores também são minhas. Vamos consertar isso juntas.”
Mas Lúmina afastou as mãos de forma brusca.
— “Por favor… me deixe. Preciso alinhar o caos que está em minha mente e no meu coração.”
Elira se afastou, assustada, o coração apertado. Caminhou pelo bosque, os passos pesados, os olhos fixos no chão.
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Na quietude da cozinha ancestral, Askar estava sentado com uma caneca de chá entre as mãos.
O vapor suave subia como brumas de silêncio.
Elira entrou, os passos leves, mas inquietos.
— “Sobrou?” — perguntou, com um leve sorriso cansado. — “Estou… precisando.”
Sem uma palavra, Askar serviu outra caneca, ofereceu a ela e voltou a se sentar, sem olhá-la.
— “O que houve com Lúmina… desta vez?” — ela perguntou, após um gole silencioso.
Askar demorou um instante antes de responder.
— “Chorou. Pela primeira vez.
Tentou se aproximar de novo… e eu precisei ser direto.”
— “E… funcionou?”
— “Talvez. Mas… não é isso que está me inquietando.”
Elira ergueu os olhos, alerta.
— “O que é, então?”
Askar pousou a caneca sobre a mesa e encarou o vazio à frente.
— “Kaelith. Está ficando cada vez mais instável.
A fúria do seu fogo… está mais intensa do que nunca.”
Elira fechou os olhos por um momento e respondeu:
— “Precisamos parar isso.
Se não fizermos algo… não seremos selados.
Nós mesmos vamos nos destruir… uns aos outros.”
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Algumas dores não rugem.
Elas apenas existem…
Como flores místicas, crescendo em terrenos proibidos,
até abrirem suas pétalas e sangrarem sentimentos por todo o véu.