Nasce Uma Maldição

No instante em que os véus se selaram, reconstruídos em sua essência, a luz ancestral rasgou o silêncio como um sinal divino.

Com um gesto, os Ancestrais abriram um portal entre as realidades, como se rasgassem o próprio tecido do tempo — uma fenda feita de névoa cintilante surgiu.

Lúmina e Kaelith, agora despidos de toda arrogância ou orgulho, ergueram-se com dificuldade.

Não trocaram palavras.

Não ousaram levantar os olhos.

Sabiam o que viria.

Antes da travessia, as vozes dos Ancestrais ecoaram em uníssono — não como som, mas como vibração antiga que preenchia o ar, o tempo e o coração dos presentes.

— Levantem-se, causadores do caos…

Kaelith ergueu-se com esforço, o corpo marcado pela fusão com Zhaerion ainda oscilando em energia instável.

Lúmina ergueu o rosto pela primeira vez, os olhos marejados, mas firmes. Eyriel caminhou até o lado dela sem precisar de comando — o vínculo entre eles era silencioso.

À beira do que restara da antiga batalha, formou-se uma espécie de corrente etérea — um rio de luz líquida, sereno e cintilante, que parecia brotar diretamente do éter.

Sobre ele, repousaram as essências adormecidas de Elira, Askar, Nyara e Arak.

Suas formas imóveis flutuavam com leveza, como se embaladas por uma canção esquecida. Não eram carregados — eram guiados por aquela energia viva, como se a própria Criação os conduzisse.

Kaelith caminhava logo atrás.

Seu semblante era abatido, e o brilho avermelhado em suas veias pulsava com um vermelho opaco, resquício da fusão forçada. A runa em seu peito ainda ardia, mas fraca — como um poder contido.

Lúmina, de cabeça baixa, seguia em silêncio.

Ao seu lado, Eyriel, o unicórnio de crina escura e olhos vívidos, caminhava com passos lentos, como quem também carregava culpa.

Eles ainda estavam vivos, conscientes — e sabiam que o julgamento os aguardava.

Com os ombros curvados e o olhar em sombras, seguiram os passos dos Ancestrais, atravessando o portal sem resistência — conscientes de que o momento do julgamento havia chegado.

Do outro lado, a Dimensão da Luz os recebia em um grande salão de paredes orgânicas, que pulsavam com vida. Tudo ali respirava calma e verdade. Não havia lugar para mentiras ou desculpas.

A última sentença daquela era seria selada ali.

Os Ancestrais estenderam as mãos, formando um círculo ao redor das essências de Elira, Askar e seus familiares.

O brilho do portal intensificou-se, chamando todos à travessia. A cerimônia havia começado.

Então, os Ancestrais declararam:

— A cerimônia de travessia e o julgamento dos corrompidos serão iniciados.

Lumys começou:

— As essências humanas de Elira e Askar retornarão à Dimensão da Matéria, onde renascerão sob nomes esquecidos, até que o tempo os chame de volta.

Suas essências místicas, assim como as de seus familiares Nyara e Arak, repousarão adormecidas no Véu do Esquecimento junto com aqueles que foram entregues ao repouso sagrado.

O salão silenciou. Era como se cada palavra dita moldasse o próprio destino.

— E quanto a vocês — prosseguiu, voltando-se para Kaelith e Lúmina —, não serão apagados, pois uma súplica verdadeira impediu o exílio eterno.

Mas serão julgados.

Lúmina, ajoelhada, tremia.

Kaelith, também ajoelhado, ouvia…

Seu olhar estava vazio, como se o peso do que havia feito fosse mais forte que qualquer corrente.

Foi então que os Ancestrais se colocaram em círculo: Kaor, Zephiron, Orunn, Naelya e Lumys.

A voz do tempo.

O sopro do céu.

A força da terra.

A fluidez da água.

A vibração do espírito.

Cada um deles trazia não vingança… mas justiça.

Lumys continuou:

— Vocês não foram apagados… graças à súplica da Guardiã. Foi a alma dela, em sacrifício, que impediu o fim.

Vocês não serão esquecidos…

Mas também não serão absolvidos.

O Julgamento de Kaelith

Kaelith permaneceu imóvel com a cabeça baixa.

Seus olhos ainda ardiam, e o corpo pesava sob o fardo da fusão com Zhaerion, agora parte indissociável de sua essência.

A voz do Ancestral do Fogo, Kaor, ecoou como trovão contido:

— Kaelith, outrora Guardião da Honra e Protetor da Dimensão das Trevas…

Você se deixou corromper pelo sentimento que jurou combater.

Tu não serás apagado, mas teu castigo será eterno.

O Ancestral do Éter, Lumys, prosseguiu, com tom compassivo, porém firme:

— Transgrediste uma regra primordial — a que separa a dor da ruína: selaste o destino de outro Guardião… eliminaste Askar, teu irmão de missão.

Um dos primeiros. Um dos nossos.

Violaste o elo das runas com seu familiar. Ao fundir-se ao teu dragão em fúria, perdeste tua essência primordial.

A sentença foi decretada.

Zephiron completou, com a leveza cortante do vento:

— Por isso, tua pena é o exílio eterno.

Permanecerás exilado na Dimensão das Trevas.

Não renascerás. Não haverá retorno. Não haverá redenção.

Não caminharás entre as dimensões.

Estás exilado na Dimensão das Trevas, onde o silêncio é tua cela e os Corrompidos tua companhia.

Serás carcereiro do caos que criaste.

Terás domínio apenas sobre os corrompidos e os limites da prisão sombria.

Nada além disso.

Permancerás onde o caos respira: a Dimensão das Trevas será tua prisão.

E tua função será manter a ordem entre os corrompidos que receberás.

— Os teus poderes não serão retirados…

Mas limitados ao escuro que criaste:

Terás domínio apenas sobre os seres corrompidos… e sobre as fronteiras da Dimensão das Trevas.

Nada além.

És o carcereiro do caos que ajudaste a espalhar.

E de lá não sairás. Nunca mais.

Kaelith não reage. Apenas respira fundo. Em seu peito, a runa da fusão com Zhaerion pulsa, tênue.

Orunn se aproximou mais e ergueu a mão sobre o peito de Kaelith. A runa gravada em sua pele pulsou com uma luz rubra e fraca.

— Zhaerion permanece em ti.

Mas teu elo com ele está selado.

Não o ouvirás.

Não o sentirás.

Só quando fores digno… ele despertará e poderás ouvi-lo novamente.

Até lá… ele dormirá em ti, e o espírito de Zhaerion repousará em silêncio, prisioneiro dentro de ti.

Kaelith enfim abaixou a cabeça. Seus lábios se moveram em silêncio:

— …Zhaerion.

A runa pulsou fraca uma última vez… e silenciou.

Por fim, Lumys declarou, com um brilho que atravessava as sombras:

— Não mais serás chamado pelo nome que um dia carregou honra.

Teu nome ecoará apenas entre os gritos das sombras… pois Kaelith não mais existe.

Sua essência não é mais a de um Guardião.

— De agora em diante, será conhecido como… Drakaelrion.

O Guardião Caído da Fúria Sombria, é como será conhecido.

— Aquele que caiu por amor… e renasceu como maldição viva.

Guardião das Sombras.

Senhor dos Corrompidos.

O Julgamento de Lúmina

Lúmina foi conduzida por Naelya, a Ancestral da Água.

Estava fraca, mas consciente.

O Ancestral da Terra, Orunn, a observou com pesar:

— Lúmina… foste a causa da Ruptura.

A tua luz, outrora pura, caiu pela própria vaidade.

Tu quebraste a harmonia.

Teus desejos ocultos forjaram mentiras. Enganaste e coagiste teus irmãos ao erro.

Mentiste aos Ancestrais.

Despertaste o feitiço proibido e abriste caminho para a guerra.

Zephiron, o vento encarnado, falou em seguida:

— A luz que um dia carregaste… caiu.

Corrompeste teu caminho.

Mas na hora derradeira, fizeste uma escolha…

Te lançaste à frente de Askar para tentar salvá-lo.

Teu gesto não apagou tuas falhas, mas trouxe equilíbrio à balança.

E por isso, viverás.

A sentença foi anunciada:

— Serás selada na Ala dos Errantes, no Véu do Esquecimento, onde os que erraram sem se corromper permanecem em penitência.

E tua missão será sagrada: quando Elira renascer, e Askar for chamado de volta, tu os guiarás.

Naelya tocou a testa de Lúmina. Um sopro suave a envolveu.

— Teu nome será retirado dos registros da luz.

Lúmina já não existe.

Agora serás chamada Seraphine.

Tua pena será cumprida na Ala dos Errantes, onde penitência e memória caminham lado a lado.

Lá, observarás o tempo.

E quando os 21 ciclos se completarem…

Serás enviada à Dimensão da Matéria para guiar aqueles que deverão consertar o que foi quebrado.

As palavras se encerraram com um sussurro:

— Uma vez errante. Um dia redentora.

Seraphine abaixou a cabeça.

Eyriel, o unicórnio, surgiu ao seu lado. Zephiron se dirigiu a ele com ternura:

— Eyriel, espírito puro…

Foste leal àquele que caiu, mas teu coração não se corrompeu.

Repousarás.

E quando Seraphine for chamada à Terra…

Tu despertarás com ela.

Eyriel cintilou em luz prateada, e aos poucos, o unicórnio se dissolveu em partículas que flutuaram para a abóbada celeste e desapareceram nas brumas da câmara sagrada.

Os Destinos Selados

Os Ancestrais voltaram-se aos dois corpos que jaziam sobre os altares.

Kaor falou com solenidade:

— Elira, a Guardiã.

Askar, o Guardião do Lobo.

Ambos deram tudo.

Ambos foram feridos por amor, traídos por escolhas que não eram suas.

Ambos quebraram o equilíbrio ao amar além do permitido.

Mas também foram os primeiros a tentar consertar.

E no centro do templo, Naelya ergueu as mãos e flores douradas brotaram ao redor, onde jaziam as essências de Elira e Askar e seus familiares.

Askar foi carregado em silêncio para o Véu do Esquecimento, envolto pela névoa do arrependimento.

Arak, seu lobo, adormeceu junto a ele, como sombra e promessa.

Elira, a Guardiã da Serpente, foi conduzida com honra.

Seu corpo adormecido flutuava entre brumas douradas.

Nyara, sua serpente, repousava ao seu redor como uma coroa protetora.

E Seraphine, agora calada, observou enquanto o mundo era restaurado com dor.

Naelya estendeu a mão sobre Seraphine e tocou-lhe a testa.

Um sopro azul envolveu seu corpo, e ao redor dela, pétalas translúcidas começaram a girar até que ela fosse enviada para a Ala dos Errantes.

E Kaelith, de olhos fechados, desapareceu nas sombras, selado para sempre ao confinamento das profundezas, envolto por uma tocha de fogo, fumaça e luzes incandescentes.

O Sussurro do Tempo

A voz de Zephiron, Ancestral do Ar, soprou pelo cosmo:

— Uma Guardiã se sacrificou.

Uma maldição foi lançada.

O amor que deveria proteger… destruiu.

Agora… esperaremos vinte e um ciclos.

Por fim, Lumys, com a voz que ecoava em todas as direções, selou o destino com palavras que atravessaram véus e séculos:

— Uma maldição foi criada.

Não por vingança…

Mas para que o erro jamais seja esquecido.

Enquanto os erros não forem reparados…

Enquanto as raízes da queda não forem arrancadas…

Ela se repetirá a cada 21 ciclos.

O tempo recomeçará.

Sempre.

Outra vez.

E só quando o coração escolher com sabedoria…

A história mudará.

Elira dormirá como fênix.

Askar repousará como lobo.

Renascerão na Dimensão da Matéria, como humanos.

Sem memória do que foram.

Sem lembrança do que causaram.

Suas essências místicas serão adormecidas.

Quando os 21 ciclos se completarem…

Quando forem chamados de volta…

A essência despertará.

A maldição nasceu.

Mas o tempo… já contava os ciclos.

Na última curva do tempo…

“A guerra se calou.

Mas os ecos… apenas começavam a ser ouvidos.”

Fim da Parte I