Há um conto de eras atrás que nos foi passado de geração em geração. O mundo não era como hoje, e na verdade, ainda não sabemos de fato como é o mundo em que vivemos por tanto tempo. O conto falava de um ser, uma entidade sobreposta nos limites do vazio, cujo seu objetivo era criar e apagar – um deus, eu diria. Sua primeira criação foi o que conhecemos como universo, mas não satisfeito com sua criação, ele decidiu ir além. Assim, uma dimensão após a outra foi criada. Mundos semelhantes ao nosso existiam ao nosso lado. Com tantos universos e possibilidades para cuidar, era viável que existisse alguém responsável por eles, criando então sua primeira linhagem, seus primeiros filhos.
Havia ao total dez filhos, mas o conto menciona o título de apenas cinco deles: Suserano do Caos, aquele que governava os demônios e seus semelhantes; Monarca da Luz Divina, aquela que governava corajosos anjos guerreiros; Lorde da Passagem, responsável pelos ceifadores e porteiro do Além; Rainha dos Dragões, a imperatriz de todas as feras jurássicas e mitológicas; e por fim, o Elemental do Reino Prismático. Tal soberano é pouco conhecido, mas até então sabemos que ele comanda parasitas sobrenaturais, seres com poderes imensuráveis.
Com o decorrer das eras, os humanos foram criados, e talvez isso fosse o motivo do desequilíbrio entre as raças. E por quê? Os humanos não tinham nada além de seu livre arbítrio e sua determinação, e ainda assim causavam inveja aos soberanos dos outros universos, que não seguravam no peito o fato de uma criatura tão frágil ser tão importante para a entidade. Guerras multiversais foram travadas, mas os humanos sempre voltavam, mesmo que sem os membros, mesmo que sem um pingo de fé, eles sempre voltavam.
Como uma forma lúcida de acabar com aquelas guerras desnecessárias, a entidade separou cada universo em um plano diferente. Até então, somente três são conhecidos: o Mundo Sobrenatural, onde os demônios, anjos e ceifadores vivem em constante batalha; o Limbo, onde as parasitas sobrenaturais foram seladas; e por fim, Aetheria, lugar comandado pela Rainha dos Dragões.
O mundo humano não era considerado uma dimensão pelos outros seres. Eles preferiam apagar essa raça de suas cabeças e até conseguiram. Desde então, o mundo se tornou o que é atualmente. Ou talvez não...
Tóquio, 06:47.
Triiim, triiim, triiim... O celular estava tocando, já eram quase sete da manhã e o garoto ainda não havia acordado, ao tocar novamente ele finalmente desperta atendendo o celular.
— Alô, alô! O que foi? — Perguntava o garoto, sonolento
— Hakkai, cadê você?! Você está atrasado para a apresentação, droga! — Era uma garota do outro lado da linha, aparentemente irritada.
— Eu perdi a hora, tô correndo praí! Não começa sem mim, Haru. — Hakkai dizia já se levantando rapidamente da cama.
Hakkai era um estudante do ensino médio, mais precisamente do último ano, um veterano e auxiliar da presidente do grêmio, Haru. O garoto morava sozinho desde os quinze anos, sua mãe faleceu por conta de uma doença e o mesmo nunca conheceu seu pai, seus tios cuidaram dele desde o acontecido, alugaram uma casa pra ele no último ano e fazem visitas todos os finais de semana, apesar da solidão de morar sozinho, o garoto não deixava isso o corromper por dentro e sempre esbanjava felicidade por onde passava, mesmo que triste ele sempre esteve disposto a ver seus amigos felizes.
Chegando na escola, ele se encontra finalmente com Haru, que estava extremamente irritada com o atraso dele.
— Você conseguiu fazer a única coisa que eu pedi pra não fazer, se atrasar! — Ela gritava.
— Mas não é um problema sério, é só entrarmos e concluirmos a apresentação, eles vão aceitar, não vão? — Ele dizia com um sorriso inseguro no rosto.
— Nós perdemos a apresentação, Hakkai! Ficamos o mês inteiro estudando e treinando todas as pautas e quando iríamos conseguir, você se atrasou...
— Haru... Não foi minha intenção, eu mal consegui dormir essa noite pensando nisso tudo e acabei me atrasando.
— Tsk... Dane-se, já foi. — A garota dizia calmamente enquanto se virava e seguia de costas a ele.
Hakkai havia mentido. Ele realmente não dormiu bem mas havia sido outro motivo: Há algumas semanas, o garoto era atormentado por vários pesadelos que sempre terminavam em um mesmo final e como se não bastasse, algumas vezes ele jurava escutar alguém sussurrando em seu ouvido, mas preferia acreditar que fosse coisa da sua cabeça.
O dia havia passado, depois da aula os veteranos costumavam ir a um bar perto do colégio chamado Eisen, eles usavam esse lugar como uma forma de amenizar o estresse das aulas. O bar era simples, paredes pintadas em um azul escuro, chão com pisos amadeirados e o teto da mesma textura, oito mesas enfileiradas com quatro cadeiras em cada uma, em um tom chumbo. Hakkai estava sentado ao lado de Kuro, amigos de anos e companheiro de várias memórias. O sol se punha no horizonte, tingindo o céu de laranja e dourado. Os dois compartilhavam um silêncio confortável enquanto bebiam um bom copo de suco, tomados por seus pensamentos diários e lembranças memoráveis.
— A Haru pegou pesado de novo, né? — Kuro perguntava enquanto pegava seu celular.
— Eu entendo o lado dela, eu que vacilei dessa vez. — O jovem completava com um olhar cansado.
"Tempus humanum tuum non durat, natura tua alia est." Hakkai ouvia um sussurro em seu ouvido dizendo tais palavras, rapidamente se levantando e olhando para todos os lados. — Quem é?! Quem está falando isso?! - Ele gritava enquanto todos no local o olhavam com confusão. Aquilo estava passando dos limites e ainda sim Hakkai não procurava ajuda, na sua visão era só uma coisa da sua cabeça, algo que houvesse com o que se preocupar.
— O que foi, Shin? Você está nos fazendo passar vergonha... — Kuro perguntava colocando a mão no rosto se escondendo.
— Inferno, eu não aguento mais isso! — Sem explicar, Hakkai foi embora, deixando Kuro confuso e sozinho no bar.
Estava anoitecendo, depois daquela pequena confusão, Hakkai se encontrava sentado no banco de uma praça próxima ao bar, um belo lugar para espairecer e de quebra com uma vista limpa do céu estrelado. O garoto se sentia sufocado e envergonhado pelo acontecido. "Eu estou ficando louco?" Ele pensava enquanto olhava as diversas ligações perdidas de Kuro.
— Oi, o Kuro me ligou... — Aquela voz doce atravessava suas orelhas, era Haru.
— Você lembra daquele lugar? — Hakkai perguntava apontando para um banquinho com dois nomes escritos: "Shin" e "Haru".
— Sim... Tínhamos nove anos, foi quando você descobriu a doença da sua mãe...
— É... Me desculpa por hoje, não foi intenção. — Ele dizia de cabeça baixa.
— Relaxa, você estava cansado. — Ela completa enquanto olhava pra cima, ao redirecionar sua visão a Hakkai a garota havia se apavorado. Hakkai estava tremendo e aparentemente não conseguia respirar, colocando sua mão no peito era nítido da onde essa agonia estava vindo, ele estava tendo uma crise de ansiedade.
— Hakkai! O que tá acontecendo?! Por favor, me responde! — Ela estava desesperada e não sabia o que fazer; o garoto caía em lágrimas enquanto seu único desejo fosse que tudo aquilo parasse.
— Faz parar... Faz parar! — Ele tentava dizer enquanto as lágrimas engoliam suas falas.
Haru sem saber o que fazer estendeu seus braços e abraçou o garoto, abraçou como se fosse o último abraço de suas vidas, como se um casaco o cobrisse de todo frio que sua mente materializava e em um tom sincero de empatia ela diz: - Não tenha medo, você não está sozinho, nunca esteve, eu não te conheci ontem e também não irei te deixar passar por isso hoje.
— Eu não aguento mais, eu sonho todas as noites com a minha mãe, e todas as vezes eu vejo ela em um mesmo final, sempre sendo levada por algo ou alguém assustador... — Ele desabafava após conseguir dar um pequeno suspiro.
— Eu tô contigo, não tenta passar por isso sozinho.
— Tem vozes me atormentando todos os dias, eu nunca entendo o que eles dizem...
— Hakkai, você já cogitou passar por um profissional?
— Eu não estou louco! Droga! Você quer mesmo ajudar, não é? Então por favor, me deixa em paz. Nenhum de vocês nunca entenderão o que está acontecendo! — O garoto se levantava, correndo daquele local, sua mente estava conturbada e isso o deixava fora de controle. Haru se sentia culpada, pois não era a intenção de forma alguma deixá-lo estressado.
Algumas horas depois...
Era madrugada, noite calma e iluminada pela lua, que estava linda como um um cristal de diamante. Hakkai ainda estava fora de casa, sua crise havia passado mas o arrependimento de ter dito tais palavras para Haru o deixava envergonhado. Um temporal se aproximava de repente, um tanto estranho as nuvens tomarem conta do céu que antes estava limpo em poucos minutos; — Droga, vai chover logo agora? — Ele dizia enquanto apressava seus passos. A chuva começava a cair como tiros vindo dos céus, mas algo era muito estranho, as nuvens estavam avermelhando-se, as chuvas que antes eram gotas de água se tornaram pingos de lodo. — Não... De novo não! — o garoto dizia enquanto colocava as mãos em seu rosto.
Em seguida, o garoto ouvia passos se aproximando, saindo de um beco a sua frente, era uma mulher de aparentemente quarenta anos, com uma camisola branca que estava toda ensanguentada, olhos totalmente pretos e um leve sorriso de canto. — Isso foi culpa sua, desgraçado... — Ela dizia, enquanto se aproximava calmamente.
— Não... Eu não fiz nada... Para! — O garoto rapidamente se virou e começou a correr como nunca, mas ele não se mexia nem se quer um centímetro.
— Ele fez isso comigo, por você. A culpa é sua! — Ao se aproximar totalmente do garoto, ela segura seu pescoço e aperta firmemente.
— Não, para...
O som insistente do despertador invadiu o quarto, Hakkai acordou, ofegante, de mais um pesadelo. "Por quê isso está acontecendo?" Ele se perguntava enquanto levantava da cama. Hakkai se vestiu e foi ao colégio; estava chovendo, manhã agitada em Tóquio, carros engarrafados, bueiros transbordando água, a chuva estava forte e as nuvens cobriam todo o céu, era como se a noite tomasse conta da manhã.
Chegando no colégio, Hakkai deixou sua capa de chuva encharcada em seu armário junto com sua mochila. Haru estava sentada em um banco ao lado do refeitório, fingindo não notar a chegada dele.
— Oi... Você está bem? — Ele perguntava, se sentando ao lado dela.
— Sim... Me desculpa por ontem. — Ela respondia, mas ainda evitava olhar seu rosto.
— Eu é que devo pedir desculpas, fui idiota.
— Não se cobre tanto. Você estava mal, eu só tentei ajudar.
— Eu sonhei de novo... — Dizia, apoiando os cotovelos em seus joelhos, escondendo o rosto nas mãos.
— Sabe, Shin, eu não desacredito de você. Você não está enlouquecendo, deve ter algum motivo pra isso... — A garota finalmente olhou em seus olhos.
— Isso não é normal... Nada disso está sendo normal. — Brriiim, Brriiim: O alarme do colégio tocou, sinalizando o início das aulas.
— Eu vou ao banheiro, te encontro na sala de aula. — Hakkai dizia, se levantando e indo em direção do local.
Chegando lá, o garoto ficou parado em frente a pia, na tentativa de espantar o sono os pensamentos perturbadores, as imagens do sonho insistiam em se repetir em sua mente. Por quê era sempre o mesmo sonho? Por quê isso começou a acontecer só agora? Tentando afastar seus pensamentos, ele levantou o rosto e olhou no espelho.
— Que droga é essa?! — Ele gritou assustado, dando alguns passos para trás. No reflexo, ele viu seus próprios olhos brilhando em um vermelho intenso. A sensação de ardor nos olhos, a boca seca e a respiração ofegante tornaram-se insuportáveis. Em um impulso de desespero, Hakkai desferiu um soco no espelho, quebrando-o em várias partes e chamando a atenção de alguns colegas que passavam pelo corredor.
Em outro local, ainda desconhecido...
— Então já começou... Não achei que ia acontecer tão rápido. — Disse uma figura imponente, com olhos vermelhos brilhantes e cabelos brancos, sentado em um trono feito de espadas e ossos.
— O senhor realmente conseguiu, não é? — Outra figura, curvada perante a imponente, murmurou reverentemente.
— Depois de eras mofando nesse lugar desgraçado, finalmente iremos partir! Finalmente iremos conquistar o mundo humano! — A figura no trono exclamou, seus olhos brilhando com uma mistura de alegria e malícia.
Tempos ruins se aproximavam como um vento forte, a era da entidade finalmente havia chegado.