O Reino de Kush, terra sagrada das areias negras, cresceu sob os olhos atentos dos deuses egípcios. Entre seus templos dourados e muralhas cobertas de hieróglifos, ecoava uma verdade imutável: o valor de um homem nasce com ele. E aqueles que nascem sem valor… deveriam nunca ter nascido.
Lucien veio ao mundo em um dos dias mais silenciosos do calendário kushita. Nem o choro de recém-nascidos era bem-vindo no Festival de Anúbis, onde o povo reverenciava a morte como força purificadora. O sacerdote-mor, envolto em peles de chacal, apenas observou o bebê franzino com olhos de nojo.
— Este… é amaldiçoado — disse, erguendo uma concha ritual sobre o berço improvisado. — Ele não possui alma digna. Nem mesmo os mortos o receberiam.
A família de Lucien, humilde e temerosa, não ousou protestar. Sua mãe desviou o olhar. Seu pai saiu sem dizer palavra. Desde o primeiro suspiro, Lucien aprendeu que o silêncio era o único colo que o mundo lhe ofereceria.
Enquanto os filhos de nobres treinavam com lanças banhadas em ouro e aprendiam encantamentos nas academias do deus Thoth, Lucien apanhava pedras para sobreviver. Morava num estábulo abandonado, longe da muralha interna da cidade, e seus únicos companheiros eram os escaravelhos que rastejavam pela areia.
Ele nunca conheceu bondade. Nem mesmo as sombras o protegiam do escárnio.
— Você nem deveria existir — sibilavam os outros meninos. — Se os deuses não te mataram, é porque esqueceram de você.
Lucien não respondia. Odiava suas lágrimas, pois elas alimentavam os risos. Odiava sua fraqueza, pois ela tornava a dor inevitável. E acima de tudo, odiava a si mesmo — por não entender por que existia.
Mas em certa noite, algo mudou.
Era o décimo sexto Festival de Anúbis desde seu nascimento. As ruas de Kush estavam repletas de tochas, e os altares estavam cobertos de oferendas. Lucien, como sempre, não tinha permissão de se aproximar. Observava tudo de longe, no alto de uma duna morta, quando viu algo estranho.
Um homem vestindo trapos negros caminhava contra a multidão. Ele tinha olhos como carvão incandescente e arrastava um cajado feito de ossos.
Lucien, curioso, o seguiu. O homem caminhou até a parte mais esquecida da cidade — onde nem as feras ousavam dormir. Parou diante de uma cripta selada, e sem dizer palavra, traçou com o dedo um símbolo na porta. A pedra tremeu. A terra chorou.
E então, ele se virou para Lucien.
— Você não pertence a este mundo — disse o estranho. — E isso… é sua maior força.
Lucien congelou. Pela primeira vez, alguém o havia olhado sem desprezo.
— Quem é você?
— Sou aquele que carrega os nomes que foram apagados. Aquele que serve aos deuses que caíram. E você, Lucien… é um erro que pode tornar-se sentença.
Lucien não compreendia. Mas alguma coisa em seu peito ardia como nunca antes.
— Por que está me dizendo isso?
O homem se aproximou. Tocou o peito de Lucien com o cajado, e uma dor lancinante percorreu seu corpo. Ele caiu de joelhos, arfando, enquanto visões invadiam sua mente: um trono de espinhos, um mar de sangue, e um céu rasgado ao meio.
— Porque mesmo os mais fracos… podem arrancar o coração dos deuses.
E desapareceu.
Na manhã seguinte, o mundo seguia como se nada tivesse acontecido. Mas Lucien não era mais o mesmo. Algo havia despertado. Ele ainda era o mais fraco. Ainda era desprezado. Mas agora, tinha um propósito.
Ele não queria mais ser aceito.
Ele queria que o mundo se curvasse.
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