O Sangue Não Traz Misericórdia

O sol de Kush queimava com fúria sobre as pedras sagradas da cidade, como se o próprio Rá ainda exigisse reverência. Para os sacerdotes, era o calor da purificação. Para os miseráveis, era o fogo do esquecimento.

Lucien caminhava com passos pesados por entre os becos estreitos da zona inferior, suas costelas à mostra e os olhos fundos como poços secos. A visão da noite anterior ainda ardia em sua mente. Ele sentia como se o mundo à sua volta estivesse... diferente. Mais pesado. Mais atento.

Ao retornar ao estábulo onde dormia, encontrou o teto parcialmente desabado. As vigas carbonizadas indicavam que alguém havia ateado fogo. Não havia sinais de animal, apenas as cinzas do que um dia foi seu esconderijo.

No centro das cinzas, uma palavra estava riscada no chão com sangue seco.

"Sombra."

Lucien não precisou de explicações. Aquilo era um aviso — ou uma condenação. Os moradores da vila já o chamavam de amaldiçoado, mas agora, talvez, pensassem que ele realmente estivesse tocado por algo profano.

— Você fez alguma coisa — sussurrou para si mesmo. — Aquele homem… mudou algo em mim.

Mas não era hora de fugir. Pela primeira vez, Lucien sentia que não precisava.

Pela primeira vez, ele não temia o olhar alheio.

No dia seguinte, ele se dirigiu ao mercado inferior, onde escravos trocavam murmúrios e ratos vivos por restos de comida. Não era seu costume aparecer em locais tão públicos. Sua presença causava silêncio — e silêncio em Kush significava tensão.

Um homem gordo, com colares de ossos e ouro falso, o encarou do alto de uma carroça.

— Ora, ora... o bastardo que sobreviveu — disse com escárnio. — Veio se despedir, aberração?

Lucien nada respondeu. Aproximou-se lentamente. O homem estendeu o braço para empurrá-lo.

E então, Lucien tocou sua mão.

O gordo gritou como se tivesse enfiado os dedos no fogo. Caiu de joelhos, tremendo, os olhos arregalados de horror.

— O que você... fez comigo?! — cuspiu, desesperado.

Lucien, surpreso, recuou.

Ele não havia feito nada.

Mas algo dentro dele havia feito.

Enquanto todos corriam para socorrer o mercador, Lucien fugiu. Correu sem rumo, o coração disparado, o peito queimando com uma dor silenciosa. Quando parou, já estava fora dos muros de Kush, diante das ruínas de uma torre esquecida pelo tempo.

Foi ali que ouviu a voz.

— Você tocou o tecido entre os mundos — sussurrou uma mulher. — Não há retorno para quem o rasga.

A voz vinha de cima. Uma figura estava sentada sobre os escombros, envolta em véus cinzentos que flutuavam sem vento. Os olhos dela eram cinzentos, como se jamais tivessem refletido a luz do sol.

— Quem é você? — perguntou Lucien, arfando.

— A Primeira a Ser Silenciada. A que conhece o Nome Que Queima. Aquela que não devia mais existir.

Lucien sentiu um calafrio.

— O homem de ontem... você o conhece?

— Ele é o portador da chama. Você é o receptáculo do vazio. Mas o mundo... o mundo pertence àquele que carrega a luz.

Ela ergueu a mão, e do céu, uma pomba branca desceu lentamente, até pousar diante de Lucien.

— Esta criatura pertence a Aldric — disse ela com desdém. — O escolhido da fé. O Redentor dos Céus.

A pomba soltou um canto suave, quase reconfortante. Lucien a encarou com estranheza. A ave o observava, inerte, como se julgasse sua alma.

— Ele ainda não chegou — continuou a mulher. — Mas quando o céu tremer e os sinos tocarem em Roma, saberemos que ele está a caminho.

Roma.

O nome ecoou como trovão dentro da mente de Lucien. Era um lugar que ele conhecia apenas de rumores. Um reino distante, regido por fé absoluta, onde o deus único era servido por mil sacerdotes, e as espadas eram abençoadas com lágrimas celestes.

Aldric.

O nome dele era entoado por peregrinos que cruzavam os desertos de Kush carregando cruzes nos ombros. Diziam que ele havia vencido demônios com palavras e feito o sol parar no céu com um gesto de piedade.

Lucien apertou os punhos.

— Então... é esse homem que os céus escolheram?

— Sim — disse a mulher. — E é contra ele que você será lançado.

Ela saltou da torre, flutuando por instantes antes de tocar o chão suavemente.

— A diferença entre vocês é que ele nasceu com luz... e você, com fome.

Lucien se aproximou da pomba. Ela não fugiu. Seus olhos eram serenos. Quando ele estendeu a mão para tocá-la, a ave se desintegrou em uma chuva de penas douradas que desapareceram no ar.

A mulher já havia desaparecido. Mas uma marca permaneceu gravada no chão: uma cruz de espinhos invertida.

Lucien não sabia o que aquilo significava. Mas sentiu que o mundo estava se preparando para algo. Algo imenso.

E ele... estava no centro disso.

---