O Sangue Do Primeiro Templo

A serpente deslizava em silêncio, como uma sombra viva sobre o solo ressequido. Lucien a seguia, sem hesitar. Cada passo o levava para fora daquilo que o mundo considerava sagrado — e mais fundo no ventre do esquecimento.

Durante horas, ou talvez dias, não houve palavras. Não houve fome. Nem sede. O selo em sua mão queimava como um pacto vivo. Ele sentia... mais. Ouviu o ranger da terra, os lamentos do vento, e até os sussurros dos ossos sob o solo.

“Tudo me observa agora”, pensou. “Não com ódio... mas com expectativa.”

Finalmente, a serpente parou.

Estavam diante de uma escadaria antiga, cravada em pedra negra, envolta por raízes secas e cinzas. Era como se o mundo tivesse tentado esquecer aquele lugar, cobrindo-o de poeira, silêncio e medo. E mesmo assim... ali estava.

Lucien desceu.

Cada degrau parecia ecoar o peso de eras. Não havia tocha. E mesmo assim, a escuridão não o cegava.

No fim, um portão. Não de madeira ou ferro — mas de ossos. Ossos trançados por mãos inumanas, marcados por runas antigas que ainda vibravam com poder.

Lucien estendeu a mão.

O selo brilhou.

E os ossos... se abriram.

O interior do templo era vasto. Um salão de colunas deformadas, onde estátuas sem rosto o encaravam. No centro, um altar — e sobre ele, uma coroa partida, coberta de sangue seco.

Lucien se aproximou.

Sentiu uma presença.

Mas não teve medo.

De trás do altar, surgiu um velho.

Alto, curvado, olhos queimados pela própria fé. Trajava vestes antigas, semelhantes às de um sacerdote — mas não de nenhuma ordem que o mundo ainda reconhecesse.

— És tu... o portador do selo? — perguntou ele, a voz rouca como pergaminho rasgado.

Lucien assentiu.

— Sou o que restou. O que foi cuspido por este mundo.

O velho sorriu.

— Então és o que esperávamos.

— Esperavam?

— Este templo foi selado há milênios. Pelos primeiros hereges. Aqueles que viram os céus... e decidiram não se curvar. Quando a Luz criou os Tronos, nós escolhemos a Queda.

Lucien olhou para a coroa partida.

— E falharam?

— Sobrevivemos. E plantamos. Cada templo oculto é uma semente. E tu és o solo. O primeiro a florescer.

O velho estendeu uma lâmina. Curta, negra, viva.

— Aceite o sangue do Primeiro Pacto.

Lucien segurou a lâmina. Sem tremer.

Cortou a palma da própria mão.

O sangue caiu sobre a coroa — e ela pulsou. Rachou. E das rachaduras, emergiram fragmentos de vozes. De nomes esquecidos. De pactos antigos.

— Agora — disse o velho — o caminho se abre. Mas cuidado... pois o céu já despertou.

Enquanto isso, em Astúrias...

Aldric atravessava o pátio da fortaleza dourada. Cada passo seu fazia os sinos tocarem. Mas seu rosto era grave.

— O nome foi confirmado — disse o cardeal Hesrael. — Lucien. Filho do vazio. Portador do selo proibido.

Aldric apertou o punho.

— E o que os Tronos desejam?

— O Primeiro Edito. Extermínio total. Ele deve morrer antes de tocar o Segundo Altar.

— Então irei.

O cardeal hesitou.

— Redentor... estás certo?

— Não o farei como herói. Nem como emissário da Luz. Farei como homem. Pois nenhum deus deve decidir sozinho o destino de outro.

De volta ao templo...

Lucien ergueu a coroa partida.

Ela se fundiu ao selo em sua mão, queimando os ossos, fundindo-se à carne.

O velho sorriu.

— Agora, o céu não poderá ignorá-lo. Seus passos farão tremer as fortalezas da luz.

Lucien virou-se.

— Onde está o próximo templo?

— Em Éfeso. Terra dos santos exilados.

A serpente ergueu-se novamente.

E Lucien partiu, com a lâmina viva em mãos e a marca da rebelião gravada em seu sangue.

Nas sombras do templo, o velho ajoelhou-se.

E, por fim, fechou os olhos.

Seu corpo queimou em silêncio.

E onde caiu, nasceu uma flor negra.