Sementes Em Terra Maldita

A noite em Kush era feita de ferro e silêncio. Sob o céu opaco e cruel, as estrelas pareciam furos na mortalha do mundo — pequenas brechas pela qual a realidade ainda resistia à podridão da fé cega.

Lucien caminhava. Não como um peregrino em busca de salvação, mas como um espectro que recusa a própria morte.

Seu corpo ainda latejava de dor. As costelas partidas, o estômago vazio, o sangue coagulado na mandíbula. A surra do dia anterior não havia sido a pior. A pior era a lembrança de que nenhum deles — nem os guardas, nem os monges, nem os próprios moradores — o via como humano.

“Nem os cães me latem mais. Só me olham... como quem encara um verme.”

Ele parou diante de uma colina esquecida, fora das muralhas de pedra de Kush. Ali, a terra era seca e rachada. As antigas lápides estavam quebradas, e nenhuma prece era mais sussurrada para os mortos ali enterrados.

Lucien caiu de joelhos.

Ali, sozinho, sussurrou palavras que não conhecia. Uma língua que não era sua. Sons que vieram de dentro — não do peito, mas do sangue.

— Haanem, ke'thar... na'ja lo raem.

Silêncio.

Mas então, o vento girou. E com ele, veio o frio. Um frio que não pertencia à noite. Um frio que não tinha origem natural.

Uma sombra rastejou pela terra. Pequena, mas viva. Os olhos de Lucien se ergueram... e diante dele, não havia criatura — mas uma marca.

Um símbolo gravado no chão, como se a própria terra tivesse sido marcada por fogo.

Era um círculo envolto em runas antigas, cruzado por linhas quebradas. O centro pulsava. Como um coração sombrio.

Lucien estendeu a mão. Não sabia por quê. Apenas soube que devia.

E quando seus dedos tocaram o símbolo, algo despertou.

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Em outro lugar...

O Reino de Astúrias, terra dos santos e guerreiros da fé, soava como um canto perpétuo. As catedrais cantavam. Os sinos nunca silenciavam. E sob o céu azul, onde as nuvens pareciam purificadas por oração, marchava Aldric, o Redentor dos Céus.

Vestido em branco e ouro, seu manto sagrado reluzia com cada passo. A multidão o aclamava. Os clérigos se ajoelhavam. Até os pássaros pareciam acompanhar sua trilha.

Mas Aldric não sorria.

— Há um desequilíbrio — murmurou ele, olhando para o sul. — Um ruído nasceu. E não veio de nenhum dos Nove Tronos Celestiais.

Atrás dele, o arcebispo Hesrael apertou o cajado com força.

— O que ouviste, meu redentor?

Aldric virou o rosto, os olhos como lanças de luz.

— Um nome foi pronunciado. Não por boca mortal. Nem por anjo. Mas por algo esquecido até mesmo pela fé.

Algo... que não deveria existir.

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De volta a Kush...

Lucien abriu os olhos.

Estava em pé.

Mas não sentia o chão.

Seu corpo tremia — não de frio, mas de algo mais primal. Como se o próprio ar o tocasse com dedos invisíveis. Como se cada som, cada pedra, cada batida da natureza o reconhecesse.

Você não é mais nada... e por isso, agora é tudo, uma voz sussurrou. Não vinda de fora, mas nascida dentro.

Na palma de sua mão, havia uma mancha. Negra. Venenosa. Como um selo queimado à força em sua carne.

Lucien cambaleou, mas riu.

— Finalmente... algo responde.

E ali, naquela colina maldita, ele não orou.

Ele amaldiçoou.

— Que o céu me odeie. Que os santos me esqueçam. Que os reinos me temam. Mas que o abismo me aceite.

As nuvens acima tremeram.

A terra sob seus pés rachou.

E uma serpente, feita de sombra e ossos, ergueu-se do solo como um guardião que esperava seu mestre.

Lucien encarou a criatura.

Ela não rosnou. Não atacou. Apenas se curvou.

— Somos iguais, não somos?

A serpente sibilou em silêncio. O selo em sua mão brilhou.

Lucien sorriu — e não como um louco. Mas como alguém que, pela primeira vez, teve certeza de algo.

— Me leve. Ao que está enterrado. Aos templos que foram selados. Aos nomes que nem os profetas ousam pronunciar.

E ela o levou.

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No norte distante, em Astúrias...

Aldric ajoelhou-se diante do altar da Primeira Catedral.

— Pai Eterno, ilumine-me. Diga-me o nome...

O nome que ressoou no inferno. Que fez os arcanjos silenciarem.

Mas não houve resposta.

Apenas uma palavra, surgida nas chamas do incenso:

Lucien.

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