A VIDA DOS HABITANTES DA MONTANHA

Naquela mesma tarde, as crianças foram convidadas a vestir as roupas da princesa Filó. Primeiro tomaram banho numa espécie de piscina cravejada de esmeraldas; a água era morna e muito agradável.

Os cachorrinhos também foram lavados e esfregados com ervas aromáticas, pois lá não havia sabão. Entraram depois nos aposentos da princesa para se vestirem; Vera, Lúcia e Cecília vestiram mantos brancos até os pés, pois os vestidos de Filó não serviram para elas.

Oscar apareceu vestido de veludo vermelho, mas a calça estava tão apertada que quase arrebentava; Quico vestiu uma espécie de túnica azul, que se abria a todo instante mostrando as pernas nuas. Pingo e Pipoca apareceram com bonés de veludo amarelo na cabeça.

Estavam todos prontos esperando o príncipe, que viria jantar com a princesa pela última vez antes do casamento, pois a cerimônia e os festejos seriam no dia seguinte. Estavam todos na sala e um dos anões brincava com Pipoca; de repente deu um salto e caiu de quatro no chão, como se tivesse visto alguma coisa muito interessante. Outros quatro anões ficaram também de quatro e saíram dando pulos esquisitos; Vera começou a rir e disse aos companheiros:

Os outros, curiosos, queriam saber o que era; de repente, quinze anões e anãs começaram a caçar a pulga por toda a parte. Filó começou a dar gargalhadas e não parava mais; queria saber que bichinho era aquele, nenhum deles conhecia pulgas. O velho anão correu à sua casa e trouxe uma caixinha de filigrana de ouro para guardar aquela maravilha; as crianças explicaram que se deve matar as pulgas, pois elas são sujas, transmitem doenças e não deixam a pessoa dormir... Qual o quê! Todos queriam ver a pulguinha na caixinha de ouro. Afinal ela foi caçada e trazida com todo o cuidado diante da princesa. Puseram-na dentro da caixinha de ouro; logo a notícia correu pela cidade e houve um desfile de anões para ver a pulga dentro da caixinha.

Pipoca tornou-se uma espécie de herói, mas não gostou muito. Puseram-no sentado numa almofada de veludo e ele ficou meio encabulado com o boné amarelo caído num lado da cabeça. Cada vez que ele se coçava, uma porção de anões ia se debruçar perto de Pipoca para pegar mais um daqueles bichinhos tão graciosos...

Alguns anõezinhos lembraram-se de procurar mais algumas no pelo do cachorrinho, mas Pipoca rosnou, reagindo. Então dirigiram-se a Pingo; com muito carinho, cataram pulgas em Pingo durante algum tempo; Pingo foi deixando... quando pela terceira vez viraram-no de barriga para cima, ele só fez "nhoc" e

quase engoliu a mão inteira de uma mocinha que tinha menos de um metro de altura.

Depois disso, os anões ficaram com medo dos cachorros, mas conseguiram três pulgas gordas e puladeiras para a caixinha de filigrana. À hora do jantar, um sino anunciou a chegada do príncipe; ele apareceu acompanhado por três secretários. Saudou a noiva e as crianças, achando graça nas roupas e nos cachorrinhos.

Foi então servido farto jantar, veio primeiro um prato de cristas de galo com molho de erva-doce, depois ovos recheados com mel, em seguida suspiros e chá da montanha.

As crianças, sentadas no chão à volta dos príncipes e dos outros convidados, conversavam e comiam tudo o que lhes ofereciam, apesar de às vezes não gostarem muito. Quando foi servido o chá, Cecília suspirou e disse baixinho:

— Será que não há mais nada? Eu não comi ainda, pensei que ia começar agora...

— Qual o quê! — disse Oscar. — O regime aqui é bravo; temos que comer como se fôssemos anões. E as cristas de galo estavam bem gostosas; vou pedir a receita e levar pra mamãe...

Lúcia sussurrou:

— Quantos galos a gente precisa matar para comer só as cristas? Eu não gostei.

— Mas comeu tudo o que havia no seu prato.

— É porque estava com fome. Eles são pequeninos, não têm fome, vivem de suspiros, mas eu tenho... ora essa!

Vera disse:

— Esperem um pouco. Eu já estive na cozinha e fiz amizade com as cozinheiras. Vou ver se arranjo mais uns ovos por lá...

Quico pediu:

— Ao menos pão de mel. É bem gostoso...

Como todos tinham se levantado, Vera aproveitou para deixar a sala e ir à cozinha; quando vinha voltando com alguns pães de mel escondidos no manto branco... pan!, uma cabeçada na porta. Os outros começaram a caçoar... mas ela ficou vermelha e fechou carranca; depois ameaçou não lhes dar pão de mel; então ficaram quietos, mas tinham vontade de rir todas as vezes que olhavam para Vera. Lá estava o galão na testa.

Depois do jantar, os habitantes da cidade desfilaram em frente à casa da princesa; saudavam os príncipes e espiavam com curiosidade a caixinha com as pulgas. Riam quando elas pulavam, achando um amor. Alguns batiam palmas de entusiasmo.

Pingo e Pipoca já haviam derrubado os bonés; corriam de um lado para outro entusiasmados com o desfile dos anões; latiam de satisfação.

Oscar conversou com todos os anões; mas andou tanto de um lado para outro que a calça de veludo vermelho rasgou; então pediu ao velho de barbas brancas que lhe arranjasse uma túnica. O velho anão apareceu com um manto roxo e o colocou sobre os ombros de Oscar; assim mesmo o manto não tapava bem o rasgão. As outras crianças riram muito quando viram Oscar de manto roxo nas costas; disseram que ele estava com cara de São Sebastião, o que não lhe agradou muito.

O príncipe retirou-se depois do jantar, e nem falou em mandar as crianças de volta para fora da montanha. Oscar disse, quando ele saiu:

— Vamos tratar de fugir esta noite. Temos de fugir de qualquer jeito.

— Mas como? — perguntou Vera. — Eles vivem atrás de nós.

— Quando todos estiverem dormindo...

— E você sabe o segredo do rochedo por onde nós entramos?

— Hei de descobrir — respondeu Oscar.

A aia da princesa chegou e recolheu a meninada num quarto grande na própria casa da princesa. ;

Naquela cidade extraordinária, como a luz estivesse acesa dia e noite, ninguém sabia se era dia ou se era noite; ninguém tinha relógio; comiam e dormiam em horas determinadas por eles mesmos, o que era muito esquisito. Não sabiam quando o sol se escondia, pois não havia sol; mas também não havia noite, nem estrelas. Em vez do céu azul que cobre todas as cidades, havia ouro: abóbadas de ouro.

Durante as conversas, as crianças ficaram sabendo que as experiências de Roque haviam terminado, de modo que nunca mais ninguém veria a luz azulada lá no alto da montanha. O príncipe havia proibido as experiências do anãozinho sábio.

O ouro e as pedras preciosas eram tirados das entranhas da terra; aquela montanha parecia toda feita de ouro.

A criançada ficou toda no mesmo quarto e deitada em colchões feitos de penas de galo; eram macios, mas muito pequenos. Vieram mais colchões para cada criança, assim conseguiram deitar-se. Não havia camas, deitaram-se sobre os tapetes.

Pingo e Pipoca ficaram sobre almofadas de veludo; estavam satisfeitíssimos, pois nunca haviam vivido num luxo tão grande.

Vera e Cecília pensaram no Padrinho; estaria ele muito aflito, procurando as crianças por toda a montanha? Pediriam aos príncipes que os mandassem de volta no dia seguinte, depois do casamento. Estavam gostando, apesar de tudo, e queriam ficar para a festa do casamento.

Comeram pão de mel antes de dormir; sonharam com ouro, anões, príncipes, pulgas... De repente Lúcia acordou e viu Oscar com o manto roxo bem curto andando de um lado para outro; estava tão parecido com São Sebastião... Ele debruçou-se ao lado de Lúcia e sussurrou:

— Levante-se, vamos fugir agora...

Ela levantou-se e percebeu que os outros já estavam de pé no escuro; Vera e Cecília levavam os cachorros nos braços.

Quico esfregava os olhos de sono; deslizaram sobre os tapetes sem fazer barulho e chegaram até a porta... Oscar, que ia na frente, empurrou de leve e a porta foi se abrindo...

Ele aconselhou:

— Não se esqueçam de abaixar as cabeças, senão batem...

Todos abaixaram e passaram por essa porta; a escuridão era completa.

Atravessaram o segundo quarto; de repente Quico disse:

— Tropecei numa coisa mole, acho que é um colchão, alguém está dormindo aqui...

— Fique quieto — respondeu Oscar. — Deve ser a aia da princesa.

Abriram a segunda porta e passaram; chegaram ao salão onde a princesa recebia; estava deserto e havia uma luz muito fraquinha num canto. Assim chegaram até a porta da rua, toda cravejada de brilhantes; esta foi mais difícil de abrir porque estava bem

fechada, mas Oscar conseguiu abri-la, porque examinou bem a fechadura durante o dia.

Saíram à rua; estava deserta e havia luzes fracas nas esquinas. Cecília cochichou:

— Até aqui tudo foi bem... Quero ver de agora em diante...

— Não seja desanimada — falou Vera. — Eu só sinto perder a festa do casamento.

— Eu também sinto, mas precisamos ir — disse Quico.

— Os nossos parentes devem estar muito preocupados!

Foram andando bem devagar e curvados; dobraram a primeira esquina, andaram pela segunda rua, viraram outra esquina e foram dar outra vez em frente à casa da princesa. Quico disse:

— Viemos dar no mesmo lugar... Que história é essa?

— As ruas aqui são em círculo — disse Lúcia. — Eu acho que vamos ficar a noite toda rodando sem encontrar o caminho.

Oscar coçou a cabeça, desanimado:

— Durante o dia todo estudei o plano de fuga e não está dando certo; que cidade complicada!

— Isto aqui é um labirinto — disse Vera. — E o pior é quando chegarmos perto do rochedo, aí sim é que nós não encontraremos mesmo a saída.

A janelinha de safiras da casa da princesa abriu-se no mesmo instante e a aia apareceu toda risonha. Perguntou:

— O que estão fazendo aí fora? Não costumam dormir durante a noite?

— Viemos tomar um pouco de ar — respondeu Vera. — Íamos entrar agora mesmo.

— Agora não temos remédio senão entrarmos de novo — sussurrou Quico. — Vamos dizer que queríamos água para beber.

— Mas água é lá dentro e não aqui fora — disse Lúcia.

Oscar respondeu todo delicado para a aia:

— Estávamos com muita sede e como não achamos água aí dentro e não quisemos acordar a senhora, viemos procurar aqui fora. Não se incomode, já vamos entrar.

— E até podemos nos resfriar aqui fora com este sereno — disse Quico.

Tomou uma cotovelada de Vera:

— Onde é que tem sereno? Pois se não tem céu, não tem sereno.

— Fiquei tão atrapalhado que nem me lembrei — respondeu Quico.

Entraram de novo e acompanharam a aia até a cozinha, onde cada um teve que tomar água para confirmar o que haviam dito. Foram recolhidos outra vez ao quarto, onde ficaram fechados. Deitaram-se de novo e cochicharam durante mais de meia hora, combinando outra fuga para o dia seguinte.