CLXXI. FÁCIL

A dor nos joelhos me privou de qualquer tipo de sono decente aquela noite. Assim, quando o céu começou a mostrar as primeiras luzes pálidas do alvorecer chegando à minha janela, desisti, vesti-me e dei uma caminhada lenta e dolorosa até os arredores da cidade, à procura de casca de salgueiro para mastigar. No trajeto, descobri vários machucados novos e animadores, dos quais não tomara consciência na noite anterior. 

A caminhada foi pura agonia, mas fiquei contente por fazê-la na penumbra da manhãzinha, quando as ruas estavam desertas. Era fatal que houvesse muito falatório sobre a agitação da véspera na Pônei Dourado. Se alguém me visse mancando, seria muito fácil tirar as conclusões certas.

Por sorte, andar afrouxou a rigidez das minhas pernas e a casca de salgueiro abrandou a dor. Quando o sol nasceu completamente, eu já me sentia bem o bastante para aparecer em público.

Assim, segui para a Ficiaria, na esperança de passar umas horas fazendo peças avulsas, antes da Simpatia Especializada. Precisava começar a ganhar dinheiro para a taxa escolar do período seguinte e para o empréstimo da Devi, sem falar em curativos e numa camisa nova.

Jaxon não estava no Estoque quando cheguei, mas reconheci o estudante a postos ali. Entráramos na Academia na mesma ocasião e tínhamos dormido em beliches próximos por algum tempo, enquanto estávamos no Magnólio. Ele não era um dos nobres que vagavam despreocupados pela escola, sustentados pelo nome e pelo dinheiro da família. Seus pais eram mercadores de lã e ele trabalhava para pagar as taxas.

— Basil, pensei que você tivesse passado ao Arcano no último período. O que está fazendo no Estoque?

Ele enrubesceu um pouco, parecendo envergonhado.

— O Kelvin me pegou misturando água no ácido.

Balancei a cabeça, fechando uma carranca severa.

— Isso contraria os procedimentos adequados, A'lun Basil — disse-lhe, fazendo a voz descer uma oitava. — Um artífice deve mover-se com perfeito cuidado em tudo.

Basil riu.

— Você tem o sotaque dele — comentou, abrindo o livro de registros. — O que posso lhe arranjar?

— Não estou com disposição para fazer nada mais complicado do que peças avulsas, neste momento. Que tal...

— Espere — interrompeu-me Basil, franzindo o cenho para o livro de registro.

— O que foi?

Ele virou o livro para mim e apontou.

— Há uma anotação ao lado do seu nome.

Olhei. Escrita a lápis, com os rabiscos estranhamente infantis do Kelvin, ela dizia: "Nenhum material ou instrumento para o A'scor Vanitas. Mande-o para mim. Kelvin."

Basil me lançou um olhar solidário. 

— É ácido na água — brincou, com ar gentil. — Você também se esqueceu?

— Bem que eu gostaria. Pelo menos eu saberia o que está havendo.

Basil deu uma olhadela nervosa em volta, depois se inclinou para a frente e disse em voz baixa:

— Escute, eu vi aquela garota de novo.

Pisquei os olhos para ele, com ar estúpido.

— O quê?

— A garota que veio aqui à sua procura. A novinha, que estava procurando o mago de cabelos brancos que lhe vendeu um amuleto, sabe?

Fechei os olhos e esfreguei o rosto.

— Ela voltou? Essa é a última coisa de que eu preciso agora.

Basil meneou a cabeça e disse:

— Ela não entrou. Pelo menos, não que eu saiba. Mas eu a vi umas duas vezes lá fora. Ela fica andando pelo pátio — explicou, balançando a cabeça em direção à saída sul da Ficiaria.

— Você contou a alguém? — perguntei.

Basil pareceu profundamente ofendido:

— Eu não faria isso com você. Mas pode ser que ela tenha falado com outra pessoa. Você precisa mesmo se livrar dela. O Kelvin vai cuspir marimbondos, se achar que você andou vendendo amuletos.

— Não andei. Não faço ideia de quem seja ela. Que aparência ela tem?

— Jovem — respondeu Basil. — Não cealdama. Acho que tinha cabelo louro. Ela usa uma capa azul, com o capuz levantado. Tentei me aproximar e falar com ela, mas a garota saiu correndo.

Esfreguei a testa.

— Que maravilha.

Basil encolheu os ombros, com ar solidário.

— Só achei que devia lhe avisar. Se ela vier mesmo aqui e perguntar por você, terei que contar ao Kelvin — advertiu, com uma careta para se desculpar. — Desculpe, mas já estou suficientemente encrencado do jeito que as coisas vão.

— Eu entendo. Obrigado pelo aviso.

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Ao entrar na oficina, fiquei imediatamente impressionado com uma estranha característica da luz no salão. A primeira coisa que fiz foi olhar para cima, para ver se o Kelvin tinha acrescentado uma nova lamparina à série de esferas de vidro penduradas entre os caibros. Torci para que a mudança da luz fosse por causa de uma lâmpada nova. Kelvin sempre ficava de mau humor quando uma de suas lâmpadas escurecia inesperadamente.

Examinando os caibros, não vi nenhuma lâmpada apagada. Levei um bom momento para perceber que a estranha qualidade da iluminação se devia, na verdade, à luz solar que se infiltrava pelas janelas baixas da parede da direita. Normalmente, eu só chegava para trabalhar mais tarde.

Tão cedo pela manhã, a oficina era de uma quietude quase sobrenatural. O salão imenso parecia oco e sem vida, com apenas um punhado de estudantes trabalhando em seus projetos. Combinado com a luz estranha e a convocação inesperada do Kelvin, isso me deixou bastante inquieto ao atravessar o cômodo em direção ao gabinete do Mestre.

Apesar de ser tão cedo, uma pequena fornalha no canto do gabinete já estava bem atiçada. O calor passou em ondas por mim quando parei no vão da porta aberta. Foi agradável, depois da friagem de início de inverno lá fora. Kelvin estava de costas para mim, acionando o fole num ritmo implacável.

Bati com força no canto da porta, para chamar sua atenção.

— Mestre Kelvin? Acabei de tentar pegar um material no Estoque. Há algum problema?

Ele deu uma olhadela para trás, na minha direção.

— A'scor Vanitas. Vou demorar um minuto. Entre.

Entrei no gabinete e fechei a porta pesada. Se estivesse encrencado, preferiria não ter ninguém ouvindo.

Kelvin continuou a acionar o fole por um bom tempo. Só quando puxou um tubo comprido percebi que o que estava atiçando não era a fornalha, mas uma pequena peça de vidro. Movendo-se com destreza, ele pegou uma massa de vidro derretido com a ponta do tubo e se pôs a soprar uma bolha cada vez maior.

Após um minuto, o vidro perdeu seu brilho laranja.

— Fole — disse Kelvin, sem olhar para mim, repondo o tubo no bocal da peça.

Apressei-me a obedecer, acionando o fole com ritmo regular, até o brilho laranja voltar ao vidro. Kelvin fez sinal para que eu parasse, puxou-o da fornalha e soprou o tubo por outro longo momento, girando o vidro até a bolha ficar do tamanho de um melão-doce.

Ele o repôs na fornalha e acionei o fole sem ser solicitado. Na terceira vez que repetimos o processo, eu estava encharcado de suor. Desejei não ter fechado a porta, mas não queria largar o fole pelo tempo que levaria para reabri-la.

Kelvin não pareceu notar o calor. A bolha de vidro foi crescendo e ficou do tamanho da minha cabeça, depois, de uma abóbora. No entanto, na quinta vez que ele a retirou do calor e começou a soprar, ela pendeu na ponta do tubo, desinflou e caiu no chão.

Kist, crayle, en vein — praguejou ele, furioso. Atirou o tubo de metal, que ressoou com estrondo ao bater no piso de pedra. — Kraemet brevetan Aerin!

Lutei contra a vontade súbita de rir. Meu kiaru não era perfeito, mas eu tinha quase certeza de que o Kelvin dissera foi: merda na barba de Deus

O professor ursino ficou parado por um bom minuto, olhando para o vidro estilhaçado no chão. Depois, soltou uma bufadela longa e irritada pelo nariz, tirou os óculos de proteção e se virou para mim.

— Três jogos de sinos sincronizados, latão — disse, sem preâmbulo. — Uma torneira com tarraxa, ferro. Quatro funis de calor, ferro. Seis sifões, estanho. Vinte e duas vidraças de dureza dupla e outras peças sortidas.

Era uma lista de todo o trabalho que eu fizera na Ficiaria nesse período. Coisas simples, que eu podia concluir e revender para o Estoque para obter um lucro rápido.

Kelvin me olhou com seus olhos negros:

— Esse trabalho lhe agrada, A'scor Vanitas?

— São projetos bastante fáceis, Mestre Kelvin.

— Agora você é A'scor — disse ele, com a voz carregada de censura. — Contenta-se em levar as coisas na flauta, fazendo brinquedos para os ricos preguiçosos? É isso que deseja do seu tempo na Ficiaria: trabalho fácil?

Senti o suor brotar no couro cabeludo e escorrer pelas minhas costas.

— Fico um pouco inseguro para me aventurar sozinho. O senhor não aprovou particularmente as modificações que fiz na minha lâmpada manual.

— Isso são palavras de covarde. Você nunca mais vai sair de casa, por ter sido repreendido uma vez? — indagou, olhando-me. — Pergunto de novo. Sinetas. Moldes. Esse trabalho lhe agrada, A'scor Vanitas?

— A ideia de pagar a taxa de matrícula do próximo período letivo me agrada, Mestre Kelvin.

O suor escorria por meu rosto. Tentei enxugá-lo com a manga, mas minha camisa já estava empapada. Olhei para a porta do gabinete.

— E o trabalho em si? — instigou Kelvin. Havia gotas de suor na pele morena de sua testa, mas, afora isso, ele não parecia se incomodar com o calor.

— De verdade, Mestre Kelvin? — perguntei, sentindo-me meio zonzo.

Ele pareceu um pouco ofendido.

— Valorizo a verdade em tudo, A'scor Vanitas.

— A verdade é que eu fiz 10 lâmpadas de convés neste último ano, Mestre Kelvin. Se tiver que fazer mais uma, imagino que eu possa me borrar todo, de puro tédio.

Kelvin bufou alguma coisa que talvez fosse uma risada, depois abriu um largo sorriso:

— Ótimo. É assim que um A'scor deve se sentir — disse. Apontou um dedo grosso para mim. — Você é inteligente e tem boas mãos. Espero grandes coisas de você. Não trabalhos insignificantes. Faça algo inteligente e isso lhe trará mais dinheiro que uma lâmpada. Com certeza, mais do que peças avulsas. Deixe isso para os A'luns — acrescentou, com um gesto displicente para o janelão de onde se via a oficina.

— Farei o melhor que puder, Mestre Kelvin — prometi. Minha voz soou distante aos meus ouvidos, distante e fraca. — O senhor se importa se eu abrir a porta e deixar entrar um pouco de ar fresco?

Kelvin grunhiu sua concordância e dei um passo em direção à porta. No entanto minhas pernas bambearam e minha cabeça girou. Cambaleei e quase caí de cabeça no chão, mas consegui agarrar a borda da bancada e apenas caí de joelhos.

Quando meus joelhos machucados bateram no chão, foi excruciante. Mas não gritei nem chorei. Na verdade, a dor pareceu vir de muito longe.