CLXXII. CASCAVEL

Acordei confuso, com a boca seca feito serragem. Tinha os olhos pegajosos e os pensamentos tão arrastados que levei um bom momento para reconhecer o cheiro característico de antisséptico no ar. Isso, combinado ao fato de eu estar deitado nu embaixo de um lençol, informou-me que eu estava na látrica.

Virei a cabeça e vi uma cabeleira loura curta e o uniforme escuro dos fisiopatas. Relaxei no travesseiro.

— Olá, Mila — grunhi.

Ela se virou e me deu um olhar sério.

— Vanitas — disse, em tom formal. — Como se sente?

Ainda sonolento, tive que pensar na resposta.

— Embotado — falei. E, em seguida: — Com sede.

Mila trouxe-me um copo e me ajudou a beber. Era um líquido doce e farinhento. Demorei um longo momento para terminá-lo, mas, quando acabei, já me sentia meio humano.

— O que aconteceu? — perguntei.

— Você desmaiou na Ficiaria. O Kelvin o carregou para cá pessoalmente. Foi muito tocante, na verdade. Tive que expulsá-lo daqui.

Senti o corpo todo enrubescer de vergonha ao pensar em ser carregado pelas ruas da Academia pelo professor grandalhão. Eu devia ter parecido uma boneca de pano no seu colo.

— Eu desmaiei?

— O Kelvin explicou que vocês estavam numa sala quente. E você tinha empapado a roupa de suor. Estava pingando.

Apontou para o lugar onde minha camisa e minhas calças estavam empilhadas na mesa.

— Exaustão térmica?

Mila levantou uma das mãos para fazer com que eu me calasse.

— Esse foi o meu primeiro diagnóstico. Porém, num exame mais detalhado, concluí que, na verdade, você está sofrendo de um caso agudo de pular de uma janela ontem à noite — disse-me, com um olhar incisivo.

Senti-me subitamente constrangido. Não por minha quase nudez, mas pelos ferimentos evidentes que havia sofrido ao cair do telhado da Pônei Dourado. Dei uma espiada na porta e fiquei aliviado ao perceber que estava fechada. Mila continuou a me observar, com uma expressão cuidadosamente vazia.

— Alguém mais viu? — perguntei.

Ela negou com a cabeça.

— Hoje estivemos ocupados.

Relaxei um pouco.

— Já é alguma coisa.

Mila assumiu uma expressão severa.

— Hoje de manhã, o Armin nos deu ordem de comunicar qualquer ferimento suspeito. A razão não é segredo. O próprio Drazno ofereceu uma recompensa apreciável a quem o ajudar a apanhar um ladrão que invadiu os aposentos dele e roubou diversos objetos de valor, inclusive um anel que a mãe dele lhe deu no leito de morte.

— Aquele canalha — comentei, acalorado. — Eu não roubei nada.

Mila arqueou uma sobrancelha.

— Fácil assim? Nenhuma negação? Nenhum... nada?

Soltei o ar pelo nariz, tentando controlar a raiva.

— Não vou insultar a sua inteligência. É bastante óbvio que eu não rolei uns degraus. — Respirei fundo e acrescentei: — Escute, Mila. Se você contar a alguém, vão me expulsar. Eu não roubei nada. Poderia ter roubado, mas não o fiz.

— Então, por que... — ela hesitou, visivelmente constrangida. — O que você estava fazendo?

Dei um suspiro.

— Você acreditaria que eu estava fazendo um favor a um amigo?

Mila dirigiu-me um olhar sagaz, seus olhos verdes vasculhando os meus.

— Bem, você parece mesmo estar no ramo dos favores, ultimamente.

— Eu... o quê? — perguntei, com o pensamento se arrastando devagar demais para acompanhar o que ela estava dizendo.

— Na última vez que você esteve aqui, tratei-o por queimaduras e inalação de fumaça, depois de você salvar a Faela de um incêndio.

— Ah. Aquilo não foi realmente um favor. Qualquer um teria feito o mesmo.

Mila fitou-me com ar inquisitivo.

— Você acredita mesmo nisso, não é? — Balançou um pouquinho a cabeça, depois pegou um caderno de capa dura e fez algumas anotações, sem dúvida preenchendo seu laudo sobre o tratamento. — Bem, pois eu considero que foi um favor. A Faela e eu dividimos um beliche, quando éramos ambas novatas aqui. Apesar do que você pensa, aquilo não foi algo que muitas pessoas se dispusessem a fazer.

Houve uma batida na porta e a voz de Leif veio do corredor:

— Podemos entrar?

Sem esperar resposta, abriu a porta e conduziu um Alastor de ar constrangido para dentro do quarto.

— Ele vai ficar bom — disse Mila. — Desde que sua temperatura se estabilize. — Pegou um medidor e o meteu na minha boca. — Sei que será difícil para você, mas procure ficar de boca fechada por um minuto.

— Nesse caso — disse Leif, com um sorriso —, soubemos que o Kelvin o levou a um lugar privado e lhe mostrou uma coisa que o fez desmaiar feito uma mulherzinha.

Amarrei a cara para ele, mas continuei de boca fechada.

Mila dirigiu-se a Alastor e Leif:

— As pernas dele vão passar um tempo doendo, mas não há nenhuma lesão permanente. O cotovelo também deve ficar bom, embora a sutura esteja uma bagunça. Que diabo vocês estavam fazendo nos aposentos do Drazno, afinal?

Alastor simplesmente a fitou, caracteristicamente estoico e com um olhar sombrio.

Não tive essa sorte com Leif.

— O Vanitas precisava encontrar um anel para a amada dele — gorjeou, animadamente.

Mila virou-se para mim com uma expressão de fúria:

— É muita petulância sua me contar mentiras — disse, com os olhos vidrados e raivosos como os de um gato. — Graças a Deus você não tentou insultar a minha inteligência nem nada.

Respirei fundo e levantei a mão para tirar o medidor da boca.

— Maldito Leif — disse, irritado. — Um dia ainda vou ensiná-lo a mentir.

Leif correu os olhos de um lado para outro entre nós dois, rubro de pânico e vergonha.

— O Vanitas tem uma queda por uma garota do outro lado do rio — disse, em tom defensivo. — O Drazno tirou um anel dela e não quer devolvê-lo. Nós só...

Mila o interrompeu com um gesto ríspido.

— Por que você não me contou isso, simplesmente? — perguntou-me, exasperada. — Todo mundo sabe como o Drazno age com as mulheres!

— Foi por isso que não lhe contei. Pareceria uma mentira muito conveniente. E além do mais, isso não é da sua conta.

A expressão dela endureceu.

— Você é mesmo muito metido a besta para...

— Parem. Parem com isso! — exclamou Alastor, dando-nos um susto que nos fez interromper a discussão. Virou-se para Mila: — Quando o Vanitas chegou aqui, inconsciente, qual foi a primeira coisa que você fez?

— Verifiquei as pupilas dele, para ver se havia sinais de trauma encefálico — respondeu ela, automaticamente. — Que diabo isso tem a ver com alguma coisa?

Alastor apontou na minha direção.

— Veja os olhos dele agora.

Mila me olhou.

— Estão escuros — disse, parecendo surpresa. — Verde-escuros. Como um galho de pinheiro.

Alas continuou:

— Não discuta com ele quando seus olhos ficam escuros desse jeito. Nunca dá bom resultado.

— É como o barulho de uma cascavel — acrescentou Leif.

— Está mais para cachorro com o pelo arrepiado — corrigiu Alastor. — Mostra quando ele está pronto para morder.

— Vocês podem ir todos juntos para os quintos dos infernos — interpus. — Ou podem me dar um espelho, para eu ver do que estão falando. Não me importa qual das duas coisas.

Alas me ignorou.

— O nosso pequeno Vanitas tem um gênio explosivo, mas, se tiver um minuto para esfriar a cabeça, reconhece a verdade — disse, lançando-me um olhar incisivo. — Ele não está aborrecido por você não ter confiado nele, nem por ter enrolado o Leif. Está aborrecido por você ter descoberto a que grau de conduta estúpida está disposto a chegar para impressionar uma mulher. — Olhou para mim. — Estúpida é a palavra certa?

Respirei fundo e admiti:

— Bastante.

— Eu a escolhi por remeter a asno — disse Alas.

— Eu sabia que vocês dois tinham que estar envolvidos — observou Mila, com um toque de quem se desculpa na voz. — Francamente, vocês três são unidos como um bando de ladrões, e é isso mesmo que quero dizer, com todas as suas diversas implicações inteligentes.

Ela contornou a cama e deu uma olhadela crítica no meu cotovelo ferido.

— Qual de vocês fez a sutura?

— Eu — disse Leif, com uma careta. — Sei que fiz uma porcaria.

— Porcaria seria generoso — retrucou Mila, olhando-o com ar crítico. — Parece que você estava tentando costurar seu nome nele e ficou errando a grafia.

— Acho que ele se saiu muito bem — disse Alas, enfrentando o olhar de Mila —, considerando-se sua falta de treino e o fato de que ele estava ajudando um amigo em circunstâncias não propriamente ideais.

Mila corou.

— Não foi isso que eu quis dizer — apressou-se a falar. — Trabalhando aqui, é fácil a gente esquecer que nem todos... — Virou-se para Leif: — Desculpe.

Ele passou a mão pelo cabelo louro.

— Imagino que você possa me recompensar por isso, em algum momento — disse, com um sorriso de menino. — Que tal amanhã à tarde, talvez? Quando você me deixar oferecer-lhe um almoço... — completou, lançando um olhar esperançoso.

Mila revirou os olhos e deu um suspiro, entre o divertimento e a exasperação.

— Está bem.

— Meu trabalho aqui está terminado — disse Alas, em tom grave. — Vou embora. Detesto este lugar.

— Obrigado, Alas — falei.

Ele deu um aceno por cima do ombro e fechou a porta ao sair.

Mila concordou em não mencionar meus ferimentos suspeitos em seu laudo e se ateve ao diagnóstico original de exaustão térmica. Também cortou os pontos dados pelo Leif e refez a limpeza, a sutura e o curativo do meu braço. Não foi agradável, mas eu sabia que me curaria mais depressa sob os cuidados experientes dela.

Para encerrar, ela me recomendou beber mais água e dormir um pouco e sugeriu que, no futuro, eu me abstivesse de atividades físicas extenuantes numa fornalha um dia depois de cair de um telhado.