CLXXIII. ESCAPE

Até esse ponto do período letivo, Lal Mirch estivera nos ensinando teoria na Simpatia Especializada. Quanta luz era possível produzir com 10 taumas de calor contínuo, usando o ferro? E usando o basalto? E usando o corpo humano? Decoramos tabelas numéricas e aprendemos a calcular sequências crescentes de quadrados, momentos angulares e decomposições conjuntas.

Em termos simples, era extremamente entediante.

Não me entenda mal. Eu sabia que eram informações essenciais. As conexões do tipo que mostráramos à Alys eram simples. Mas, quando as coisas se complicavam, o simpatista especializado tinha que fazer cálculos bastante complexos.

Em termos de energia, não há muita diferença entre acender uma vela e derretê-la, transformando-a numa poça de sebo. A única diferença é de foco e controle. Quando a vela está à sua frente, essas coisas são fáceis. Você simplesmente olha fixo para o pavio e para de verter calor quando vê o primeiro lampejo da chama. Entretanto, quando a vela está a uns 400 metros de distância ou num aposento diferente, o foco e o controle são exponencialmente mais difíceis de sustentar.

E há coisas piores do que velas derretidas à espera do simpatista descuidado. A pergunta que Alys me fizera na Foles era importantíssima: "Para onde vai a energia extra?"

Como Alas tinha explicado, parte dela ia para o ar, parte para os objetos conectados e o restante ia para o corpo do simpatista. O termo técnico era transbordamento taumico, mas até Lal Mirch tendia a se referir ao fenômeno como escape.

Em média, uma vez por ano um simpatista descuidado e de Vileza forte canalizava calor suficiente através de uma conexão ruim para fazer sua temperatura corporal dar um salto e deixá-lo delirando de febre. Lal nos falou de um caso extremo, no qual um estudante havia conseguido cozinhar-se por dentro.

Mencionei esse caso ao Monet, um dia depois de Lal compartilhar a história conosco. Esperava que ele se juntasse a mim numa zombaria saudável, mas acontece que Monet tinha sido um dos alunos na época em que isso havia acontecido.

— Cheirava a carne de porco — comentou ele, com ar lúgubre. — Foi o que há de mais pavoroso. Tive pena dele, é claro, mas há um limite para a pena que se pode sentir de um idiota. Um escapezinho aqui e ali a gente mal chega a notar, mas ele deve ter deixado escaparem uns 200 mil taumas, em menos de dois segundos. — Monet balançou a cabeça, sem levantar os olhos do pedaço de estanho que estava gravando. — Toda a ala do Magnólio ficou fedendo. Ninguém pôde usar aqueles quartos por um ano.

Olhei fixamente para ele.

— Mas o transbordamento taumico é bastante comum — prosseguiu Monet. — Agora, o transbordamento cinético... — levantou as sobrancelhas com ar de apreciação. — Vinte anos atrás, um A'vór idiota tomou um porre e tentou levantar uma carroça de esterco e jogá-la no telhado do Prédio dos Professores, por causa de uma aposta. Arrancou o próprio braço, na altura do ombro.

Tornou a se debruçar sobre seu pedaço de estanho, gravando cuidadosamente uma runa. Em seguida acrescentou:

— É preciso um tipo especial de estupidez para fazer uma coisa dessas.

No dia seguinte, prestei atenção especial ao que Lal tinha a dizer.

Ele nos submeteu a exercícios implacáveis. Cálculos de entalpia. Gráficos para mostrar a distância da desintegração. Equações descritivas das curvas entrópicas que o simpatista especializado precisa compreender num nível quase instintivo.

Mas Lal não era bobo. Assim, antes que ficássemos entediados e descuidados, ele transformou a coisa numa competição.

Fez-nos extrair calor de fontes estranhas, de ferros em brasa, de blocos de gelo, do nosso próprio sangue. Acender velas em cômodos distantes era a parte mais fácil. Acender uma dentre uma dúzia de velas idênticas era mais difícil. Acender uma vela que nunca tínhamos visto realmente, num local desconhecido... era como fazer malabarismo no escuro.

Havia concursos de precisão. Concursos de sutileza. Concursos de foco e controle. Após duas vintenas, eu era o aluno classificado em primeiro lugar em nossa turma de 23 A'scores. Marzus vinha nos meus calcanhares, em segundo lugar.

Quis a sorte que o dia seguinte à minha invasão aos aposentos do Drazno fosse também o dia em que começamos a duelar na Simpatia Especializada. Duelar exigia toda a sutileza e controle das nossas competições anteriores, com o desafio adicional de haver outro estudante opondo-se ativamente à nossa Vileza.

Assim, apesar da minha ida recente à Iátrica por exaustão térmica, derreti um buraco num bloco de gelo num cômodo distante. Apesar de duas noites quase insones, elevei a temperatura de um quartilho de mercúrio em exatamente 10 graus. Apesar de meus ferimentos latejantes e da comichão no braço enfaixado, rasguei o rei de espadas ao meio, enquanto deixei intactas as outras cartas do baralho.

Fiz todas essas coisas em menos de dois minutos, apesar de Marzus ter reunido toda a sua Vileza para se opor a mim. Não foi à toa que passaram a me chamar de Vanitas, o Arcano. Minha vileza parecia uma lâmina de aço Orion.

— É mesmo de impressionar — disse-me Lal depois da aula. — Faz anos que não vejo um aluno se manter invicto por tanto tempo. Será que alguém mais vai ousar apostar contra você?

Balancei a cabeça.

— Essa fonte secou há muito tempo.

— O preço da fama. — Lal sorriu, depois pareceu um pouco mais sério. — Eu queria avisá-lo antes de fazer o anúncio à turma. Na próxima onzena, provavelmente começarei a pôr os estudantes contra você em pares.

— Terei que me opor ao Marzus e ao Broy ao mesmo tempo? — perguntei.

Lal fez que não com a cabeça.

— Vamos começar pelos duelistas com a classificação mais baixa. Será uma boa introdução para os exercícios em equipe que faremos mais adiante, neste período. — Sorriu e acrescentou: — E vai impedir que você fique cheio de si. — Deu-me um olhar atento, enquanto o sorriso desaparecia. — Você está bem?

— É só um calafrio — respondi sem convicção, tiritando os dentes. — Será que podemos ficar perto do braseiro?

Cheguei o mais perto que pude, sem me encostar no metal quente, e abri as mãos sobre a cuba reluzente de pedaços de carvão em brasa. Depois de um momento, o calafrio passou e notei que Lal me olhava com curiosidade.

— Hoje cedo fui parar na Iátrica, com um pouquinho de exaustão térmica — admiti. — Meu corpo só está meio confuso. Agora estou bem.

Ele franziu o cenho.

— Você não deve vir à aula se não estiver passando bem. E com certeza não deveria duelar. Esse tipo de simpatia esgota o corpo e a mente. Você não deve correr o risco de agravar isso com uma doença.

— Eu estava me sentindo bem quando vim para a aula — menti. — Meu corpo só está me lembrando de que eu lhe devo uma boa noite de sono.

— Pois trate de dar repouso a ele — disse Lal em tom severo, esticando suas próprias mãos para o fogo. — Se você se forçar demais, pagará por isso depois. Você anda com uma aparência meio desmazelada ultimamente. Desmazelado não é a palavra certa, na verdade.

— Esgotado? — sugeri.

— Sim. Esgotado. — Lal me olhou com ar especulativo, alisando a barba com uma das mãos. — Você tem o dom da palavra. Essa é uma das razões de ter ido parar na turma do Elohkar, imagino.

Não teci nenhum comentário a esse respeito. E deve ter sido um silêncio bem alto, porque Lal lançou-me um olhar curioso.

— Como vão os seus estudos com o Elohkar? — perguntou, com ar displicente.

— Bastante bem — esquivei-me.

Ele me olhou.

— Não tão bem quanto eu esperaria — admiti. — Estudar com Mestre Elohkar não é o que eu tinha imaginado.

Lal meneou a cabeça.

— Ele sabe ser difícil.

Uma pergunta me ocorreu:

— O senhor conhece nomes, Mestre Lal?

Ele balançou a cabeça com ar solene.

— Quais são? — pressionei-o.

Ele se enrijeceu ligeiramente, depois relaxou, girando as mãos para cima e para baixo sobre o fogo.

— Essa realmente não é uma pergunta educada — disse, com delicadeza. — Bem, não é indelicada, é apenas o tipo de pergunta que não se faz. Como indagar a um homem com que frequência ele faz amor com sua mulher.

— Sinto muito.

— Não há por quê. Não haveria razão para você saber. Isto é um remanescente dos velhos tempos, acho. De quando tínhamos mais a temer dos nossos colegas arcanistas. Se você soubesse que nomes seu inimigo conhecia, poderia adivinhar os pontos fracos e fortes dele.

Ambos nos calamos por um momento, aquecendo-nos junto às brasas.

— Fogo — disse ele, passado um bom momento. — Eu sei o nome do fogo. E mais um.

— Só dois? — soltei, sem pensar.

— E quantos você sabe? — perguntou ele, numa caçoada gentil. — Sim, só dois. Mas dois são um grande número de nomes para se saber hoje em dia. O Elohkar diz que as coisas eram diferentes, muito tempo atrás.

— Quantos o Elohkar conhece?

— Mesmo que eu soubesse, seria excepcionalmente deselegante eu lhe dizer isso — respondeu ele, com um toque de reprovação. — Mas é seguro dizer que ele sabe alguns.

— O senhor poderia me mostrar alguma coisa com o nome do fogo? Se isso não for impróprio?

Lal hesitou um instante, depois sorriu. Olhou atentamente para o braseiro entre nós, fechou os olhos e apontou para o braseiro apagado, do outro lado da sala. "Fogo" Pronunciou a palavra como uma ordem e o braseiro distante irrompeu numa coluna de chamas.

 Fogo? — repeti, desconfiado. — É isso? O nome do fogo é fogo?

Lal Mirch sorriu e balançou a cabeça.

— Não foi exatamente isso que eu disse. Uma parte de você apenas preencheu o vazio com uma palavra conhecida.

— Minha mente adormecida o traduziu?

Mente adormecida? — repetiu ele, com um olhar intrigado.

— É como o Elohkar chama a parte de nós que sabe os nomes — expliquei.

Lal deu de ombros e passou a mão sobre a barba preta e curta.

— Chame-a como quiser. O fato de você ter ouvido eu dizer alguma coisa provavelmente é um bom sinal.

— Às vezes não sei por que me incomodo com a denominação — reclamei. — Eu podia ter acendido aquele braseiro com simpatia.

— Não sem uma conexão — assinalou Lal. — Sem uma conexão, uma fonte de energia...

— Ainda assim, parece inútil. Todos os dias aprendo coisas na sua aula. Coisas úteis. Não tenho nada para mostrar por todo o tempo que passei na denominação. Ontem, sabe sobre o que foi a aula do Elohkar?

Lal fez que não com a cabeça.

— A diferença entre o despido e o nu — revelei, em tom categórico.

Lal caiu na gargalhada.

— Estou falando sério — continuei. — Lutei para entrar na turma dele, mas agora só consigo pensar em todo o tempo que estou desperdiçando lá, um tempo que eu poderia gastar em coisas mais práticas.

— Há coisas mais práticas do que nomes — admitiu Lal. — Mas observe.

Concentrou-se no braseiro em frente a nós e seu olhar tornou-se distante. Voltou a falar, dessa vez murmurando, e baixou lentamente a mão, até ela ficar poucas polegadas acima das brasas incandescentes.

Em seguida, com uma expressão atenta no rosto, afundou a mão no coração do fogo, aninhando os dedos afastados nas brasas alaranjadas, como se nada mais fossem que cascalho solto.

Percebi que eu estava prendendo a respiração e a soltei baixinho, sem querer interromper a concentração dele.

— Como? — indaguei.

— Nomes — disse Lal com firmeza e retirou a mão do fogo. Estava suja de cinzas esbranquiçadas, porém perfeitamente intacta. — Os nomes refletem a verdadeira compreensão de algo e, quando você realmente compreende uma coisa, exerce poder sobre ela.

— Mas o fogo não é uma coisa em si — protestei. — É apenas uma reação química exotérmica. Ele... — gaguejei e parei.

Lal respirou fundo e, por um momento, pareceu prestes a oferecer uma explicação. Mas em vez disso deu uma risada e encolheu os ombros, com ar de desamparo.

— Não tenho inteligência para lhe explicar. Pergunte ao Elohkar. É ele quem diz compreender essas coisas. Eu só trabalho aqui.