CLXXIV. LEGÍTIMO

Depois da aula de Lal Mirch, cruzei o rio a caminho de Torrente. Não encontrei Alys na pousada em que estava hospedada, por isso fui para a Foles, mesmo sabendo que era cedo demais para encontrá-la ali.

Mal havia uma dúzia de pessoas lá dentro, mas vi um rosto conhecido na outra ponta do bar, conversando com Radagon. O conde Augus acenou e caminhei até eles.

— Vanitas, meu rapaz! — exclamou Augus, com entusiasmo. — Faz uma era mortal que não o vejo!

— As coisas andaram meio caóticas do outro lado do rio — retruquei, pousando meu estojo com o alaúde.

Radagon me olhou de cima a baixo.

— Dá para perceber — disse. — Você está pálido. Devia comer mais carne vermelha. Ou dormir mais. — Apontou para uma banqueta próxima. — Afora isso, eu lhe ofereço um caneco de metheglin.

— Eu lhe serei grato por isso — respondi, subindo na banqueta. Foi maravilhoso tirar o peso de minhas pernas doloridas.

— Se é de carne e sono que você precisa — disse Augus, em tom sedutor —, deve ir jantar na minha residência. Prometo-lhe uma comida esplêndida e uma conversa tão maçante que você poderá dormir ao longo dela, sem se preocupar em estar perdendo algo. — Lançou-me um olhar suplicante. — Vamos lá. Eu imploro se for preciso. Não haverá mais de 10 pessoas. Faz meses que morro de vontade de exibi-lo.

Peguei o caneco de metheglin e olhei para o conde. Sua jaqueta de veludo era azul-real e as botas de camurça eram tingidas no mesmo tom. Eu não poderia aparecer num jantar formal na casa dele vestindo roupas de bater de segunda mão, que eram o único tipo que eu possuía.

Augus não tinha nenhuma ostentação, mas era nascido e criado na nobreza. Provavelmente nem lhe ocorria que eu não tivesse roupas finas. Eu não o censurava por presumir isso. A vasta maioria dos alunos da Academia era pelo menos modestamente abastada. De que outra maneira eles poderiam pagar as taxas?

A verdade era que nada me agradaria mais do que um bom jantar e a oportunidade de interagir com alguns nobres locais. Eu adoraria jogar conversa fora enquanto bebericava drinques, consertar parte do estrago que Drazno fizera na minha reputação e, quem sabe, despertar a atenção de um mecenas em potencial.

Mas não podia arcar com o preço do ingresso. Uma muda de roupa medianamente fina custaria pelo menos um crimo e meio, mesmo que eu a comprasse de um mascate. O traje não faz o personagem, mas a pessoa precisa da roupa adequada quando quer representar um papel.

Sentado atrás de Augus, Radagon fez um meneio exagerado com a cabeça.

— Eu adoraria ir jantar — declarei ao conde. — Prometo que irei. Assim que as coisas se acalmarem um pouco na Academia.

— Excelente — respondeu ele, com entusiasmo. — E vou cobrar-lhe a promessa. Nada de recuar. Eu vou lhe arranjar um mecenas, meu rapaz. Um que seja adequado. Eu juro.

Atrás dele, Radagon balançou a cabeça com ar de aprovação.

Sorri para os dois e tomei outro gole de metheglin. Olhei de relance para a escada que levava ao segundo andar.

Radagon viu meu olhar.

— Ela não está aqui — disse, em tom de desculpa. — Não a vejo há uns dois dias, na verdade.

Um grupo de pessoas cruzou a porta da Foles e gritou alguma coisa em ylliano. Radagon acenou para elas e se levantou.

— O dever me chama — disse, afastando-se para cumprimentar os fregueses.

— Por falar em mecenas — comentei com Augus —, há uma coisa sobre a qual venho querendo pedir sua opinião. — Baixei a voz. — Uma coisa que prefiro que você mantenha entre nós.

Os olhos de Augus luziram de curiosidade e ele chegou mais perto.

Tomei outro gole de metheglin enquanto ordenava os pensamentos. A bebida estava subindo mais depressa do que eu havia esperado. Na verdade, isso era muito bom, porque entorpecia a dor dos meus diversos ferimentos.

— Imagino que você conheça a maioria dos mecenas potenciais num raio de 160 quilômetros daqui.

Augus deu de ombros, sem falsa modéstia.

— Um bom número. Todos os que são sérios a esse respeito. Todos os que tem dinheiro, pelo menos.

— Eu tenho uma amiga, uma musicista que está apenas começando. Ela tem um talento natural, mas sem muita formação. Alguém a abordou com uma oferta de ajuda e uma promessa de eventual patrocínio... — Parei de falar, sem saber ao certo como explicar o resto.

Augus meneou a cabeça e disse:

— Você quer saber se ele é do tipo legítimo. É uma preocupação razoável. Algumas pessoas acham que o mecenas tem direito a mais do que a música. — Apontou para Radagon e acrescentou: — Se você quiser ouvir histórias, pergunte a ele sobre a ocasião em que a duquesa Samita veio aqui em férias — disse, com um risinho que foi quase um gemido, e esfregou os olhos. — Que os pequenos Deuses me ajudem, aquela mulher era assustadora.

— Essa é a minha preocupação. Não sei se ele é de confiança.

— Posso indagar por aí, se você quiser. Como é o nome dele?

— Isso é parte do problema. Não sei o nome dele. Acho que ela também não sabe.

Augus franziu o cenho ao ouvir isso.

— Como é possível ela não saber o nome dele?

— O sujeito lhe deu um nome, mas ela não sabe se é verdadeiro. Ao que parece, ele faz muita questão de privacidade e deu instruções rigorosas para que ela nunca falasse com ninguém a seu respeito. Eles nunca se encontraram duas vezes no mesmo lugar. Nunca em público. O homem passa meses ausente de cada vez — acrescentei e olhei para Augus. — O que lhe parece?

— Bem, está longe de ser ideal — respondeu ele, com a voz carregada de reprovação. — É muito provável que esse sujeito não seja mesmo um mecenas correto. Parece que pode estar se aproveitando da sua amiga.

Assenti com a cabeça, tristonho.

— Também foi o que eu pensei.

— Por outro lado — disse Augus —, alguns mecenas realmente trabalham em sigilo. Quando descobrem uma pessoa talentosa, não é incomum cuidarem dela em particular e depois... — fez um floreio dramático com uma das mãos. — É como um truque de mágica. De repente, o sujeito tira do nada um músico brilhante.

Augus lançou-me um sorriso afável e prosseguiu:

— Eu achava que era isso que alguém tinha feito com você — admitiu. — Você surgiu do nada e ganhou sua gaita. Achei que alguém o mantivera escondido até estar pronto para fazer sua aparição grandiosa.

— Eu não havia pensado nisso.

— Essas coisas acontecem — disse o conde. — Mas pontos de encontro estranhos e o fato de ela não saber ao certo o nome dele? — Balançou a cabeça e franziu o cenho. — No mínimo, é bastante indecoroso. Ou esse sujeito está se divertindo um pouco, fingindo-se de bandido, ou é realmente suspeito.

Augus pareceu pensar por um momento, tamborilando no balcão do bar.

— Diga a sua amiga para tomar cuidado e manter a cabeça no lugar. É terrível quando um mecenas se aproveita de uma dama. É uma traição. Mas já conheci homens que fazem pouco mais que posar de mecenas para ganhar a confiança de uma mulher. — Carregou o sobrolho e concluiu: — Isso é pior.

♩ ´¨`•.¸¸.♫│▌▌▌│▌▌│▌▌▌│▌▌│▌▌▌♫´¨`*•.¸¸♭

Eu estava a caminho da Academia, com a Ponte de Pedra já despontando ao longe, quando comecei a sentir uma ardência incômoda me subir pelo braço. De início, pensei que fosse a dor dos cortes duas vezes suturados do meu cotovelo, pois eles haviam coçado e ardido o dia inteiro. 

Mas, em vez de diminuir, o calor continuou a se espalhar por meu braço e a subir para o lado esquerdo do peito. Comecei a transpirar, como se tivesse uma febre repentina.

Tirei a capa, deixando o ar fresco me esfriar, a comecei a desabotoar a camisa. A brisa outonal ajudou e eu me abanei com a capa. Mas o calor tornou-se mais intenso, até doloroso, como se eu tivesse derramado água fervendo no peito.

Por sorte, essa parte da estrada era paralela a um riacho que desaguava no rio Ometh, ali perto. Sem conseguir pensar num plano melhor, chutei as botas para longe, tirei o alaúde do ombro e pulei dentro d'água.

A água gelada do riacho me fez arquejar e esbravejar, mas esfriou minha pele ardente. Fiquei ali, procurando não me sentir um idiota, enquanto um jovem casal passava de mãos dadas, ignorando-me solenemente.

O calor estranho deslocou-se pelo meu corpo, como se um fogo aprisionado dentro de mim tentasse encontrar uma saída. Começou pelo lado esquerdo, vagou pelas pernas e tornou a subir o braço esquerdo. Quando se deslocou para minha cabeça, afundei embaixo d'água.

Parou depois de alguns minutos e saí do riacho. Tiritando de frio, embrulhei-me na capa, feliz por não haver mais ninguém na estrada. Depois, como não tinha mais nada a fazer, pendurei o estojo do alaúde no ombro e recomecei a longa caminhada para a Academia, encharcado e com um medo terrível.