— Eu contei à Mila — afirmei, embaralhando as cartas. — Ela disse que estava tudo na minha cabeça e me empurrou porta afora.
— Bem, só posso imaginar como é a sensação — disse Leif, em tom aborrecido.
Levantei os olhos, surpreso com a rispidez atípica de sua voz, mas, antes que pudesse perguntar o que havia, Alastor captou minha atenção e meneou a cabeça, alertando-me a não falar. Conhecendo a história de Leif, imaginei que se tratasse do término rápido e doloroso de mais um relacionamento rápido e doloroso.
Fiquei de boca fechada e distribuí outra mão do bafo-de-cão. Nós três estávamos matando tempo, esperando o salão encher para que eu começasse a tocar para meu público típico do dia-da-sega na taberna Grilo.
Hesitei, com medo de que, se falasse de meus medos em voz alta, de algum modo eles se tornassem reais.
— Talvez eu tenha me exposto a alguma coisa perigosa na Ficiaria.
Alas olhou para mim.
— Como o quê?
— Um dos componentes que usamos. Eles passam direto pela pele e matam a pessoa devagarzinho, de 18 maneiras diferentes.
Recordei o dia em que meu vidro havia rachado na Ficiaria. Aquela única gota de agente transportador que havia caído na minha camisa. Fora apenas uma gota minúscula, que mal chegava a ser maior que a cabeça de um prego. Eu tinha certeza de que não havia tocado a minha pele.
— Espero que não seja isso - comentei —, mas não sei o que mais pode ser.
— Talvez um efeito retardado da poda de ameixa — disse Leif, com ar sombrio. — O Drazno não é grande coisa como alquimista. E, pelo que sei, um dos principais ingredientes dessa droga é o chumbo. Se ele mesmo calculou os componentes, pode ser que haja princípios latentes afetando o seu organismo. Você comeu ou bebeu alguma coisa diferente hoje?
Pensei um pouco antes de responder:
— Bebi uma boa quantidade de metheglin na Foles.
— Aquele troço deixa qualquer um doente — disse Alas, com ar sinistro.
— Eu gosto — retrucou Leif. — Mas ele sozinho é praticamente uma panaceia. Há uma porção de tinturas diferentes que entram na composição. Nada de alquímico, mas leva noz-moscada, tomilho, cravo, toda sorte de especiarias. Pode ser que uma delas tenha desencadeado algum dos princípios livres que estão espreitando no seu organismo.
— Que maravilha — resmunguei. — E o que eu faço para consertar isso?
Leif abriu as mãos, com ar desamparado.
— Foi o que eu pensei — falei. — Mesmo assim, parece melhor do que envenenamento por metais.
Leif ganhou quatro vazas seguidas, forçando uma carta com inteligência, e, no fim da rodada, estava sorrindo de novo. Nunca foi mesmo dado a longas ruminações.
Alastor alinhou suas cartas e eu afastei minha cadeira da mesa.
— Toque aquela da vaca bêbada e do batedor de manteiga — pediu Leif.
Não pude deixar de sorrir.
— Mais tarde, talvez — respondi, pegando o estojo cada vez mais caquético do meu alaúde e me dirigindo à frente da lareira, em meio ao som de aplausos dispersos e conhecidos. Levei um bom tempo para abrir o estojo, desatando o fio de cobre que ainda usava no lugar da fivela.
Toquei durante as duas horas seguintes. Cantei "Panela de fundo de cobre", "Ramo de lilás" e "A tina da tia Mia". A plateia riu, bateu palmas e deu vivas. A medida que ia dedilhando as canções, senti minhas preocupações diminuírem. A música sempre foi o melhor remédio para meus azedumes. Enquanto eu cantava, até os machucados pareciam doer menos.
Então senti uma friagem, como se um vento forte de inverno soprasse pela chaminé atrás de mim. Lutei contra um calafrio e terminei o último verso de "Licor de maçã", que finalmente havia tocado para deixar o Leif contente. Quando finalizei o último acorde, a multidão aplaudiu e, aos poucos, a conversa cresceu, tornando a encher o salão.
Olhei para a lareira às minhas costas, mas o fogo ardia animadamente, sem sinal de correntes de ar. Desci da soleira, na esperança de que uma pequena caminhada espantasse o meu frio. Mal dei alguns passos, porém, vi que não era o caso. O frio se instalou diretamente em meus ossos. Voltei para a lareira e abri as mãos para aquecê-las.
Alas e Leif apareceram do meu lado.
— O que está havendo? — perguntou Leif. — Você parece que vai vomitar.
— É qualquer coisa assim — retruquei, cerrando os dentes para não baterem. — Vá dizer ao Grilo que estou passando mal e tenho que encurtar a apresentação. Depois, acenda uma vela nesse fogo e leve-a para o meu quarto. — Olhei para os rostos sérios dos dois. — Alas, você pode me ajudar a sair daqui? Não quero fazer uma cena.
Alastor fez que sim e me deu o braço. Apoiei-me nele e me concentrei em impedir que meu corpo sacudisse, enquanto nos dirigíamos à escada. Ninguém prestou muita atenção em nós. Provavelmente, eu parecia mais bêbado que qualquer outra coisa. Minhas mãos estavam dormentes e pesadas. Senti os lábios gelados.
Depois do primeiro lance de escada, não pude mais controlar meu tremor. Ainda consegui andar, mas os músculos grossos de minhas pernas entravam em espasmos a cada passo.
Alas parou.
— Devíamos Iátrica — disse.
Embora não soasse diferente, seu sotaque cealdamo estava mais carregado e ele começava a engolir palavras. Sinal de que estava verdadeiramente preocupado.
Balancei a cabeça com firmeza e me verguei para a frente, sabendo que ele teria de me ajudar a subir a escada ou me deixar cair. Alastor passou o braço em volta de mim e meio que me equilibrou, meio que me carregou o resto do caminho.
Uma vez no meu quartinho, cambaleei para a cama. Alas pôs um cobertor sobre meus ombros.
Ouvimos passos no corredor e Leif espiou pela porta, nervoso. Segurava um toco de vela, protegendo a chama com a outra mão ao andar.
— Peguei. Para que você a quer, afinal?
— Ali — respondi, apontando para a mesa ao lado da cama. — Você a acendeu na lareira?
Os olhos de Leif estavam assustados.
— Os seus lábios — disse. — Não estão com uma cor boa.
Arranquei uma lasca da madeira da mesinha de cabeceira e a cravei com força no dorso da mão. O sangue brotou e rolei a lasca por ele, molhando-a.
— Feche a porta — instruí.
— Você não vai fazer o que penso que está fazendo — disse Leif em tom firme.
Enfiei a lasca comprida na cera macia da vela, junto ao pavio incandescente. Ela crepitou um pouco, depois foi envolvida pela chama. Resmunguei duas conexões, uma atrás da outra, falando devagar, para que meus lábios dormentes não engrolassem as palavras.
— O que está fazendo? — perguntou Leif. — Está tentando se cozinhar?
Quando não respondi, ele deu um passo à frente, como se fosse derrubar a vela.
Alas o segurou pelo braço.
— As mãos dele estão geladas — disse, baixinho. — Ele está gelado. Gelado mesmo.
Os olhos de Leif correram nervosamente entre nós dois. Ele deu um passo atrás:
— Só... só tome cuidado.
Mas eu já o estava ignorando. Fechei os olhos e liguei a chama da vela ao fogo lá embaixo. Então, com cuidado, fiz a segunda conexão entre o sangue da lasca e o sangue do meu corpo. Foi muito parecido com o que eu tinha feito com a gota de vinho na Foles. Com a diferença óbvia de que eu não queria que meu sangue fervesse.
No princípio, houve apenas uma breve comichão de calor, nem de longe suficiente. Aumentei a concentração e senti todo o meu corpo relaxar, à medida que o calor me inundava. Mantive os olhos fechados, conservando a atenção nas conexões, até conseguir respirar fundo várias vezes, sem nenhum calafrio nem tremor.
Abri os olhos e vi meus dois amigos me observando, expectantes. Sorri para eles.
— Eu estou bem.
Mas, antes que acabasse de proferir as palavras, comecei a transpirar. De repente, fiquei quente demais, quente de dar náusea. Rompi as duas conexões com a rapidez de quem retira a mão de uma estufa de ferro quente.
Respirei fundo algumas vezes, depois fiquei de pé e fui até a janela. Abri-a e me debrucei pesadamente sobre o parapeito, desfrutando o frio ar outonal que recendia a folhas mortas e à chuva que se aproximava.
Fez-se um longo silêncio.
— Isso pareceu um congelamento por conexão — disse Leif. — Um caso realmente feio de congelamento.
— A sensação foi mesmo essa — confirmei.
— Talvez o seu corpo tenha perdido a capacidade de regular a própria têmpera, será? — sugeriu Alastor.
— Temperatura — corrigiu-o Leif, distraído.
— Isso não explicaria a queimadura no meu peito — falei.
Leif inclinou a cabeça.
— Queimadura?
Eu estava molhado de suor, por isso fiquei contente com a desculpa para desabotoar a camisa e tirá-la pela cabeça. Grande parte do meu peito e do braço tinha uma tonalidade de vermelho-vivo, em nítido contraste com minha pele comumente pálida.
— A Mila disse que era uma assadura e que eu estava resmungando feito uma velha. Mas isso não estava aí antes de eu pular no rio.
Leif inclinou-se para olhar.
— Ainda acho que são princípios desvinculados — disse. — Eles podem fazer coisas bizarras com as pessoas. No último período, tivemos um A'lun que não tomou cuidado com a fatoração. Acabou sem conseguir dormir nem focar os olhos por quase duas onzenas.
Alastor arriou numa cadeira.
— O que faz um homem ficar frio, depois quente, depois frio de novo?
Leif deu um sorriso desanimado e comentou:
— Isso parece uma adivinhação.
— Detesto adivinhações — declarei, estendendo a mão para pegar a camisa.
Então soltei um grito, segurando com força o bíceps despido do meu braço esquerdo. Brotou sangue entre meus dedos.
Leif levantou-se de um salto e olhou em volta, desvairado, obviamente sem saber o que fazer.
A sensação foi de eu ter sido golpeado por uma faca invisível.
— Por Deus enegrecido. Maldição — xinguei, entre os dentes cerrados. Tirei a mão e vi o pequeno ferimento redondo em meu braço, vindo de lugar nenhum.
Leif assumiu uma expressão horrorizada, olhos arregalados, as mãos cobrindo a boca. Disse alguma coisa, mas eu estava ocupado demais com minha concentração para ouvi-lo. Já sabia o que ele ia dizer, de qualquer modo: malfeitoria.
Tudo isso era malfeitoria.
Havia alguém me atacando.
Desci ao Coração de Pedra e fiz valer toda minha Vileza.
Mas meu agressor desconhecido não estava perdendo tempo. Veio uma dor aguda em meu peito, perto do ombro. Não rompeu a pele dessa vez, mas vi uma mancha azul-escura brotar embaixo dela.
Enrijeci minha Vileza e a facada seguinte foi pouco mais que um beliscão. Depois, dividi depressa a minha mente em três partes e dei a duas delas a função de manter a Vileza que me protegia.
Só então soltei um longo suspiro.
— Estou bem.
Leif deu uma risada que se engasgou num soluço, ainda tapando a boca com as mãos.
— Como é que você pode dizer isso? — perguntou, visivelmente horrorizado.
Olhei para mim. Ainda havia sangue brotando por entre meus dedos, escorrendo pelo dorso da mão e pelo braço.
— É verdade — insisti. — Sinceramente, Leif.
— Mas malfeitoria — objetou ele. — Isso simplesmente não se faz.
Sentei-me na beirada da cama, mantendo a pressão no ferimento.
— Acho que temos provas bem claras do contrário.
Alastor voltou a se sentar.
— Eu estou com o Leif. Jamais acreditaria nisso — falou, com um gesto enraivecido. — Os arcanistas não fazem mais isso. É loucura. — E, olhando para mim: — Por que você está sorrindo?
— Eu me sinto aliviado — respondi, com sinceridade. — Estava com medo de ter me envenenado com cádmio ou de ter uma doença misteriosa. Isto é só alguém tentando me matar.
— Como é que alguém poderia fazer isso? — perguntou Leif. — Não digo em termos morais. Como foi que alguém conseguiu seu sangue ou seu cabelo?
Alastor o fitou.
— O que você fez com as ataduras depois que o suturou?
— Queimei-as — foi a resposta defensiva. — Não sou idiota.
Alas fez um gesto tranquilizador.
— Só estou descartando as opções. Provavelmente, também não foi a Iátrica. Eles são cuidadosos com esse tipo de coisa.
Leif levantou-se.
— Temos que contar a alguém — disse. Olhou para Alastor. — Será que o Jamis ainda está no escritório dele a esta hora da noite?
— Leif — interpus —, que tal se apenas esperarmos um pouco?
— O quê? Por quê?
— A única prova que tenho são meus ferimentos — expliquei. — Isso significa que vão querer que alguém da Iátrica me examine. E quando isso acontecer...
Com uma das mãos ainda pressionando o braço ensanguentado, balancei meu cotovelo e seu curativo.
— Tenho uma notável semelhança com alguém que caiu de um telhado há uns dois dias.
Leif tornou a se sentar em sua cadeira.
— Faz apenas três dias, não é?
Assenti com a cabeça.
— Eu seria expulso. E a Mila ficaria encrencada por não ter mencionado meus ferimentos. Mestre Armin não costuma perdoar essas coisas. E provavelmente vocês dois também seriam implicados. Não quero isso.
Ficamos calados por um momento. O único som audível era o clamor distante do salão agitado da taberna, no térreo. Sentei-me na cama.
— Será que temos alguma necessidade de discutir quem está fazendo isso? — perguntou Leif.
— O Drazno — falei. — É sempre o Drazno. Ele deve ter encontrado algum sangue meu num pedaço de telha. Eu devia ter pensado nisso, dias atrás.
— E como ele poderia saber que era seu? — indagou Leif.
— Porque eu o odeio — respondi, em tom ressentido. — É claro que ele sabe que fui eu.
Alas meneou lentamente a cabeça.
— Não. Não é o estilo dele.
— Não é o estilo dele? — questionou Leif. — Ele tinha acabado de drogar o Vanitas com aquela poda de ameixa. Aquilo é tão ruim quanto veneno. E contratou aqueles homens para atacarem o Vanitas no beco, no período passado.
— É exatamente o que eu quero dizer — insistiu Alastor. — O Drazno não faz coisas contra o Vanitas. Arranja outras pessoas para fazê-las por ele. Arrumou uma mulher para drogá-lo. Pagou a bandidos para esfaqueá-lo. Imagino que nem tenha feito isso, na verdade. Aposto que outra pessoa tomou as providências para ele.
— Dá na mesma — retruquei. — Sabemos que ele está por trás disso.
Alastor amarrou a cara para mim.
— Você não está pensando com clareza. Não é que o Drazno não seja um canalha. Ele é. Mas é um canalha inteligente. Toma o cuidado de se distanciar de qualquer coisa que faça.
Leif pareceu inseguro ao concordar:
— Nisso o Alas tem razão. Quando você foi contratado como músico da casa na Quadraria, ele não comprou o lugar e o despediu. Mandou o genro do barão fazê-lo. Sem nenhuma ligação com ele.
— Aqui também não há nenhuma ligação — retruquei. — Essa é toda a ideia da simpatia. Ela é indireta.
Alas tornou a balançar a cabeça.
— Se você fosse esfaqueado num beco, as pessoas ficariam chocadas. Mas essas coisas vivem acontecendo no mundo inteiro. E se você caísse em público e começasse a jorrar sangue, por causa de uma malfeitoria? Aí as pessoas ficariam aterrorizadas. Os professores suspenderiam as aulas. Ricos mercadores e nobres tomariam conhecimento do assunto e tirariam seus filhos dos estudos. Mandariam chamar os guardiães de Torrente.
Leif esfregou a testa e olhou para o teto, pensativo. Então, assentiu com a cabeça para si mesmo, primeiro devagar, depois com mais certeza.
— Faz sentido — disse. — Se o Drazno tivesse encontrado sangue, poderia tê-lo entregado ao Jamis e ordenado que ele descobrisse o ladrão pela rabdomancia. Não haveria nenhuma necessidade de fazer o pessoal da Iátrica procurar ferimentos suspeitos e coisas similares.
— O Drazno gosta de vingança — assinalei, em tom grave. — Poderia ter escondido o sangue do Jamis, guardando-o para si.
Leif deu um suspiro.
— O Alas tem razão. Não existem tantos simpatistas assim e todo mundo sabe que o Drazno guarda rancor de você. Ele é cuidadoso demais para fazer uma coisa dessas. É algo que apontaria diretamente para ele.
— E depois — acrescentou Alastor —, há quanto tempo isso está acontecendo? Faz dias e dias. Você acha, sinceramente, que o Drazno conseguiria passar tanto tempo sem esfregar isso na sua cara? Nem um pouquinho?
— Nisso você tem razão — admiti, relutante. — Não é do feitio dele.
Eu sabia que tinha que ser o Drazno. Intuía isso, nas profundezas das minhas entranhas. Estranhamente, eu quase queria que fosse ele. Tornaria a situação muito mais simples.
Mas querer uma coisa não faz com que ela exista. Respirei fundo e me obriguei a pensar no assunto de modo racional.
— Seria imprudente da parte dele — admiti, enfim. — E ele não é do tipo que suja as mãos — acrescentei, com um suspiro. — Ótimo. Maravilhoso. Como se uma pessoa tentando destruir a minha vida já não fosse suficiente.