— Quem poderia ser? — perguntou Leif. — A média das pessoas não é capaz de fazer esse tipo de coisa com um fio de cabelo, estou certo?
— O Lal seria — retruquei. — Ou o Kelvin.
— Provavelmente, é lícito presumir — disse Alastor, em tom seco — que nenhum dos professores esteja tentando matá-lo.
— Então, tem que ser alguém que tenha sangue dele — afirmou Leif.
Tentei ignorar a sensação de um nó na boca do estômago.
— Há uma pessoa que tem meu sangue — expliquei. — Mas acho que ela não poderia ser a responsável.
Alas e Leif viraram-se para mim e imediatamente lamentei ter dito aquilo.
— Por que alguém teria o seu sangue? — perguntou Leif.
Hesitei, depois me dei conta de que não haveria como deixar de lhes contar a história, aquela altura.
— Peguei dinheiro emprestado com a Devi no começo do período.
Nenhum dos dois reagiu como eu esperava. Ou seja, nenhum deles teve qualquer reação.
— Quem é Devi? — perguntou Leif.
Comecei a relaxar. Talvez eles não tivessem ouvido falar dela. Isso certamente facilitaria as coisas.
— Ela é uma agiota que mora do outro lado do rio — expliquei.
— Certo — disse Leif, descontraído. — O que é uma agiota?
— Lembram-se de quando fomos assistir a O fantasma e a criadora de gansos? — perguntei. — O Keter era agiota.
— Ah, um gavião de cobre — disse Leif, com o rosto iluminado pela compreensão, e depois tornando a ficar sombrio, ao perceber as implicações. — Eu não sabia que havia esse tipo de gente por aqui.
— Esse tipo de gente existe em toda parte.
— Espere aí — disse Alastor de repente, levantando a mão. — Você disse que o seu... — fez uma pausa, esforçando-se para se lembrar da palavra apropriada em aturiano — que a pessoa que lhe emprestou dinheiro, seu gatessor, se chamava Devi? — Seu sotaque cealdamo ficou carregado ao proferir o nome dela, que soou como "Deivid".
Confirmei com a cabeça. Essa era a reação que eu havia esperado.
— Ai, meu Deus! — disse Leif, alarmado. — Você está falando da Devi Demônio?
Dei um suspiro.
— Então, vocês já ouviram falar dela.
— Ouvimos falar? — disse Leif, cuja voz foi ficando estridente. — Ela foi expulsa no meu primeiro período! Deixou uma impressão e tanto.
Alastor simplesmente fechou os olhos e balançou a cabeça, como se não suportasse olhar para alguém tão estúpido como eu.
Leif levantou as mãos e disse:
— Ela foi expulsa por malfeitoria! O que deu na sua cabeça?
— Não — disse-lhe Alastor. — Ela foi expulsa por Conduta Imprópria. Não houve comprovação de malfeitoria.
— Não acho realmente que tenha sido ela — falei. — Aliás, ela é muito gentil. Amável. Além disso, é só um empréstimo de seis crimos e não estou atrasado com a quitação. Ela não tem nenhuma razão para fazer uma coisa dessas.
Alastor lançou-me um olhar demorado e firme.
— Só para explorar todas as possibilidades — disse, devagar —, será que você faria uma coisa por mim?
Fiz um sinal afirmativo.
— Pense nas últimas conversas que teve com ela. Detenha-se um instante e passe uma a uma pelo crivo, para ver se você se lembra de ter dito ou feito alguma coisa que pudesse tê-la ofendido ou aborrecido.
Relembrei nossa última conversa, reencenando-a mentalmente.
— Ela estava interessada numa certa informação que não lhe dei.
— Interessada a que ponto? - indagou Alastor, com voz lenta e paciente, como se falasse com uma criança muito imbecil.
— Bastante interessada — respondi.
— Bastante não indica um grau de intensidade.
Dei um suspiro.
— Certo. Extremamente interessada. Suficientemente interessada para... — Interrompi-me.
Alastor arqueou significamente uma sobrancelha.
— É? E o que você acabou de lembrar?
— Talvez ela também tenha-se oferecido para dormir comigo — falei, hesitante.
Alastor meneou calmamente a cabeça, como se esperasse algo dessa natureza.
— E você reagiu de que maneira à oferta generosa dessa jovem?
Senti as bochechas esquentarem.
— Eu... eu meio que a ignorei, só isso.
Alastor fechou os olhos, numa expressão que transmitia um vasto e esgotado desânimo.
— Isso é muito pior do que o Drazno — disse Leif, apoiando a cabeça nas mãos. — A Devi não tem que se preocupar com os professores nem nada. Dizem que ela sabia fazer conexões de oito partes! Oito!
— Eu estava num aperto — declarei, meio irritado. — Não tinha nada para usar como garantia. Admito que não foi uma grande ideia. Quando tudo isto houver acabado, podemos fazer um simpósio sobre como fui burro. Mas, por enquanto, será que podemos seguir adiante? — pedi, lançando aos dois um olhar suplicante.
Alastor esfregou os olhos e fez um aceno cansado.
Leif esforçou-se para se livrar da expressão horrorizada, com um sucesso apenas vago. Engoliu em seco.
— Muito bem. O que faremos?
— Neste momento, realmente não importa quem é o responsável — falei, verificando cautelosamente se meu braço tinha parado de sangrar. Tinha, e retirei minha mão ensanguentada. — Vou tomar umas medidas preventivas — afirmei, com um gesto para enxotá-los. — Vão dormir um pouco vocês dois.
Leif esfregou a testa, rindo consigo mesmo.
— Pelo corpo de Deus, às vezes você é irritante. E se for atacado de novo?
— Já aconteceu duas vezes neste tempo em que estamos sentados aqui — respondi, desenvolto. — Formiga um pouquinho.
Ri da expressão dele e continuei:
— Eu estou bem, Leif. De verdade. Há uma razão para eu ser o melhor duelista da turma do Lal Mirch. Estou perfeitamente seguro.
— Desde que fique acordado — interpôs Alastor, com seriedade no olhar sombrio.
Meu sorriso cristalizou-se.
— Desde que eu fique acordado — repeti. — É claro.
Alastor levantou-se e deu a entender que ia embora.
— Pois bem. Lave-se e tome as suas medidas preventivas — disse, lançando-me um olhar incisivo. — Será que o jovem mestre Leif e eu devemos esperar pelo melhor duelista do Lal Mirch no meu quarto, esta noite?
Senti-me corar de vergonha.
— Ora, é claro. Eu agradeceria muitíssimo.
Alas fez uma reverência exagerada, abriu a porta e saiu para o corredor.
A essa altura, Leif exibia um largo sorriso.
— Então, está combinado. Mas vista uma camisa antes de ir. Vou zelar por você esta noite como o bebezinho cheio de cólicas que é, mas me recuso a fazê-lo se você insistir em dormir nu.
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Depois que Alas e Leif se foram, saí pela janela para os telhados. Deixei a camisa no quarto, já que estava todo ensanguentado e não queria destruí-la. Confiei na noite escura e no horário tardio, torcendo para que ninguém me visse correr pelos telhados da Academia, seminu e sangrando.
É relativamente fácil a pessoa se proteger da simpatia, quando sabe o que está fazendo. Alguém tentando me queimar, me esfaquear ou tirar o calor do meu corpo até eu entrar em hipotermia, tudo isso lidava com a aplicação simples e direta da força, de modo que a oposição era fácil. Agora que sabia o que estava acontecendo e que mantinha minha guarda levantada, eu me sentia seguro.
Meu novo temor era que a pessoa que estava me atacando ficasse entediada e tentasse algo diferente. Algo como descobrir minha localização e recorrer a um tipo de agressão mais corriqueiro, que eu não pudesse prevenir com minha força de vontade.
A malfeitoria é aterrorizante, mas um bandido com uma navalha afiada nos mata 10 vezes mais depressa se nos pegar numa viela escura. E apanhar alguém desprevenido é incrivelmente fácil quando se pode acompanhar cada movimento dele através do uso do seu sangue.
Por isso, saí andando pelos telhados. Meu plano era pegar um punhado de folhas de outono, marcá-las com meu sangue e jogá-las para que rolassem interminavelmente pela Casa do Vento. Era um truque que eu já havia usado.
Mas, ao saltar sobre uma ruela estreita, vi o clarão do relâmpago nas nuvens e senti cheiro de chuva no ar. Uma tempestade se aproximava. A chuva não apenas amontoaria as folhas, impedindo-as de se mexerem, como também lavaria o meu sangue.
Parar ali no telhado, com a sensação de ter sido surrado até ver 12 cores diferentes do inferno, trouxe de volta ecos inquietantes dos meus anos em Notrean. Observei os relâmpagos distantes e procurei não me deixar dominar por essa sensação. Forcei-me a me lembrar que eu não era a mesma criança faminta e desamparada que havia sido naquela época.
Ouvi um som vago e tamborilado, quando uma parte do telhado de zinco curvou-se atrás de mim. Enrijeci o corpo, depois relaxei, ao ouvir a voz de Hani:
— Vanitas?
Olhei para a direita e vi sua forma miúda, parada a uns 3 metros de distância. As nuvens escondiam a lua, mas pude perceber um sorriso em sua voz quando ela disse:
— Vi você correndo pelo alto das coisas.
Acabei de me virar para ela, contente pelo fato de não haver muita luz. Não me agradava pensar em como Hani reagiria ao me ver seminu e coberto de sangue.
— Olá, Hani. Vem aí uma tempestade. Você não devia estar no alto das coisas esta noite.
Ela inclinou a cabeça e disse, simplesmente:
— Você está.
Dei um suspiro.
— Estou. Mas só...
Feito uma enorme aranha, um relâmpago faiscou no céu e iluminou tudo, pelo espaço de um longo segundo. Então se foi, deixando-me ofuscado pelo clarão.
— Hani? — chamei-a, temendo que a visão do meu corpo a tivesse feito fugir, assustada.
Houve outro clarão de raio e eu a vi, parada mais perto. Ela apontou para mim, com um sorriso encantado, e disse:
— Você está parecendo um Mayr. O Vanitas é um dos Souaches.
Baixei os olhos para mim e, ao clarão do relâmpago seguinte, vi o que ela queria dizer. Havia sangue seco no dorso das minhas mãos, da hora em que havia escorrido e eu tinha tentado estancá-lo. Parecia uma das antigas tatuagens com que os Mayr costumavam marcar seus membros mais importantes.
Fiquei tão surpreso com a referência dela que me esqueci da primeira coisa que havia aprendido sobre Hani. Esqueci de ser cuidadoso e lhe fiz uma pergunta:
— Hani, como você sabe dos Souaches?
Não houve resposta. O clarão seguinte não me mostrou nada além de um telhado vazio e um céu inclemente.