CLXXVIII. GRAMO

Kelvin levantou a cabeça quando me aproximei de seu gabinete. Fiquei aliviado ao ver que seu forno estava frio e escuro.

— Imagino que esteja bem, não é, A'scor Vanitas? — perguntou-me, sem se levantar da bancada. Segurava um grande hemisfério de vidro numa das mãos e um estilo de diamante na outra.

— Estou, Mestre Kelvin — menti.

— Andou pensando no seu próximo projeto? Tem tido sonhos inteligentes?

— Na verdade, andei à procura do esquema de um gramo, Mestre Kelvin. Mas não consigo encontrá-lo em nenhum buraco dos rolos nem nos livros de referência.

Kelvin me encarou com ar curioso.

— E por que você precisaria de um gramo, A'scor Vanitas? Esse desejo não reflete confiança em seus companheiros arcanistas.

Sem saber ao certo se ele estava brincando ou não, resolvi jogar limpo.

— Estivemos estudando o escape nas aulas de Simpatia Especializada. Fiquei pensando que, se um gramo funciona para repelir afinidades externas...

Kelvin deu um risinho gutural.

— O Lal andou metendo medo em você. Ótimo. E você tem razão, o gramo ajudaria a proteger contra o escape... — Seus negros olhos cealdamos fitaram-me com expressão séria. — Até certo ponto. Mas um aluno inteligente, ao que me parece, simplesmente aprenderia suas lições e evitaria o escape, por meio do cuidado e da cautela adequados.

— Pretendo fazê-lo, Mestre Kelvin. Mesmo assim, o gramo me parece uma coisa útil para se possuir.

— Há certa verdade nisso — admitiu Kelvin, balançando a cabeça desgrenhada. — Mas, com os consertos e a entrega de nossas encomendas de outono, estamos com falta de pessoal — disse, apontando a janela que dava para a oficina. — Não posso prescindir de nenhum trabalhador para fazer uma coisa dessas. E, mesmo que pudesse, existe o problema do custo. Isso requer um trabalho delicado e é preciso ouro para a incrustação.

— Eu preferiria fazer o meu, Mestre Kelvin.

Ele balançou a cabeça.

— Há uma razão para o esquema não estar nos livros de referência. Você ainda não avançou o bastante para fazer o seu. É preciso ter cuidado quando se mexe com a siglística e com o próprio sangue.

Abri a boca para dizer alguma coisa, mas ele me interrompeu:

— E, o que é mais importante, a siglística necessária para um dispositivo desses só é confiada aos que chegaram à categoria de A'vór. As runas referentes a sangue e ossos têm um potencial grande demais de serem mal utilizadas. 

Seu tom deixou claro que eu não ganharia nada discutindo, por isso descartei o assunto com um dar de ombros, como se não desse a mínima importância.

— Não faz mal, Mestre Kelvin. Tenho outros projetos com que ocupar meu tempo.

Ele me deu um sorriso largo.

— Tenho certeza que sim, A'scor Vanitas. Estou aguardando com grande ansiedade para ver o que você fará para mim.

Ocorreu-me uma ideia:

— Para isso, Mestre Kelvin, será que eu poderia usar uma das oficinas particulares? Eu preferiria não ter todo mundo espiando por cima do meu ombro enquanto trabalho nos meus experimentos.

As sobrancelhas de Kelvin se arquearam diante disso.

— Agora estou duplamente curioso — disse-me. Pousou o hemisfério de vidro, levantou-se e abriu uma gaveta da escrivaninha. — Será que uma das oficinas do primeiro andar lhe serve? Ou existe a possibilidade de alguma coisa explodir? Eu lhe darei uma no terceiro andar, se for esse o caso. Elas são mais frias, mas o telhado se presta melhor para esse tipo de coisas.

Olhei-o por um instante, tentando determinar se estava brincando.

— Uma sala no primeiro andar estará ótima, Mestre Kelvin. Mas vou precisar de um fundidor pequeno e de um espacinho extra para respirar.

Kelvin resmungou alguma coisa e pegou uma chave.

— De quanta respiração você precisa? A sala 27 tem 45 metros quadrados.

— Isso é amplo o suficiente. Talvez eu também precise de permissão para pegar metais preciosos no Estoque.

Kelvin deu um risinho e fez que sim, entregando-me a chave.

— Vou providenciar para que seja feito, A'scor Vanitas. Estou ansioso para ver o que você fará para mim.

Era irritante que o esquema de que eu precisava fosse restrito. Mas há sempre outras maneiras de descobrir informações e sempre há pessoas que sabem mais do que se esperaria.

Por exemplo, eu não duvidava que o Monet soubesse fazer um gramo. Todos tinham consciência de que ele só era A'lun no título. Mas não houve meio de ele dividir as informações comigo, contrariando os desejos de Kelvin. Fazia 30 anos que a Academia era seu lar e, provavelmente, ele era o único estudante que temia mais a expulsão do que eu.

Isso significou a limitação das minhas opções. Afora uma busca prolongada no Arquivo, eu não conseguia pensar em nenhum modo de obter um esquema sozinho. Por isso, após vários minutos quebrando a cabeça em busca de melhor opção, fui até a Fardo & Cerveja.

Essa era uma das tabernas mais mal-afamadas da cidade, nesse lado do rio. A Grilo não era fuleira no sentido mais rigoroso, apenas não tinha pretensões. Era limpa sem recender a flores e barata sem ser vulgar. As pessoas frequentavam a Grilo para comer, beber, ouvir música e, vez por outra, ter uma briga amistosa.

A Fardo ficava vários graus abaixo na escala. Era encardida, a música não era uma prioridade e as brigas só costumavam ser recreativas para uma das pessoas envolvidas.

Veja bem, a Fardo não era tão ruim quanto metade dos lugares de Notrean. Mas era o pior que se tendia a encontrar tão perto da Academia. Assim, embora fosse reles, tinha pisos de madeira e vidros nas janelas. E, se você desmaiasse de tão bêbado e acordasse sem sua bolsa, poderia contentar-se por ninguém ter lhe dado uma facada e roubado suas botas também.

Como ainda era cedo, mal havia um punhado de pessoas espalhadas pelo salão. Fiquei satisfeito ao ver o Slep sentado nos fundos. Eu não o conhecia realmente, mas sabia quem ele era. Tinha ouvido histórias.

Slep era uma dessas pessoas raras e indispensáveis que têm o dom de arranjar coisas. Pelo que eu ouvira dizer, tinha sido estudante, intermitentemente, nos últimos 10 anos.

Naquela hora, estava conversando com um homem que parecia nervoso e percebi que não convinha interromper. Por isso, comprei dois canecos de cerveja leve e fingi beber um deles enquanto esperava.

Slep era bem-apessoado, de cabelos e olhos pretos. Embora não tivesse a barba característica, presumi que fosse pelo menos meio cealdamo. Sua linguagem corporal esbanjava autoridade. Ele se movia como se controlasse tudo a seu redor.

O que, aliás, não me surpreenderia se fosse verdade. Ao que eu soubesse, talvez fosse o dono da taberna. O dinheiro não é estranho para pessoas como o Slep.

Ele e o rapaz nervoso finalmente chegaram a algum tipo de acordo. Slep deu um sorriso caloroso quando eles apertaram as mãos e um tapinha no ombro do homem quando ele se afastou.

Esperei um momento e fui até sua mesa. Ao chegar mais perto, notei que havia um espaço vazio no piso entre ela e as outras mesas do salão. Não era muita coisa, apenas o bastante para dificultar a bisbilhotice.

Slep levantou a cabeça à minha aproximação.

— Eu estava pensando se poderíamos conversar — comecei.

Ele fez um gesto largo para a cadeira vazia.

— Isto é uma certa surpresa — disse-me.

— Por quê?

— Não recebo muitas visitas de pessoas inteligentes. Recebo pessoas desesperadas. — Olhou para os canecos: — Os dois são para você?

— Pode ficar com qualquer um, mas já pus a boca neste — respondi, fazendo sinal com a cabeça para o da direita.

Ele olhou desconfiado para os canecos por uma fração de segundo, depois abriu um sorriso branco e largo e pegou o da esquerda.

— Pelo que ouvi dizer, você não é de envenenar as pessoas.

— Você parece saber muito sobre mim.

Seu dar de ombros foi tão descontraído que imaginei que ele o treinasse.

— Sei muita coisa sobre todo mundo. Porém sei mais sobre você.

— Por quê?

Slep chegou para a frente, apoiando-se na mesa e falando em tom confidencial:

— Você tem alguma ideia de como a média dos estudantes é chata? Metade deles é de turistas ricos que não dão a mínima para as aulas. — Revirou os olhos e fez um gesto, como se jogasse algo para trás, por cima do ombro. — A outra metade é de imbecis livrescos que passaram tanto tempo sonhando com este lugar que mal conseguem respirar quando chegam aqui. Andam pisando em ovos, mansos feito clérigos, com medo de que os professores lancem um olhar reprovador em sua direção.

Deu uma fungadela desdenhosa e se reclinou na cadeira.

— Basta dizer que você é um sopro de ar puro. Todos dizem... — parou e tornou a usar seu dar de ombros treinado. — Bem, você sabe.

— Na verdade, não sei — admiti. — O que é que dizem?

Slep deu-me um belo sorriso perspicaz.

— Ah, é esse o problema, não é? Todos conhecem a reputação de um homem, exceto ele mesmo. Para a maioria dos homens, isso não é incômodo. Mas alguns de nós batalhamos por nossa reputação. A minha, eu construí passo a passo. É uma ferramenta útil. — Deu-me um olhar matreiro e acrescentou: — Imagino que você entenda do que estou falando.

Permiti-me um sorriso.

— Talvez.

— E o que dizem sobre mim? — perguntou ele. — Conte-me e eu retribuirei o favor.

— Bem. Você é bom para encontrar coisas. É discreto, mas cobra caro.

Ele sacudiu as mãos, irritado.

— Fantasias. Os detalhes são a alma da história. Dê-me a alma.

Pensei um pouco.

— Eu soube que você conseguiu vender diversos frascos de Regim Ignaul Neratum no último período letivo. Depois do incêndio na oficina do Kelvin, quando todo ele supostamente havia sido destruído.

Slep fez que sim, sem que sua expressão revelasse nada.

— Ouvi dizer que você conseguiu mandar uma mensagem para o pai de Veyan em Emilyn, apesar de estarem sitiando a cidade. — Outro aceno. — Você arranjou para uma jovem prostituta que trabalhava em Botões um conjunto de documentos, provando que ela era prima consanguínea distante do baronete Garn, o que lhe permitiu casar-se com um certo jovem cavalheiro com um mínimo de rebuliço.

Slep sorriu.

— Dessa eu me orgulhei.

— Quando você era A'lun — continuei —, foi suspenso por dois períodos sob a acusação de Apreensão Ilegal. Dois anos depois, foi multado e novamente suspenso por Uso Indevido de Equipamento da Universidade no Cadinho. Ouvi dizer que o Jamis sabe que tipo de coisas você faz, mas é pago para fechar os olhos. Não acredito nesta última, aliás.

— Certo. Eu também não — disse ele, descontraído.

— Apesar das suas inúmeras atividades, você só foi levado a enfrentar a Lei Férrea uma vez — prossegui. — Por Transporte de Substâncias Contrabandeadas, não foi?

Slep revirou os olhos.

— Sabe o que é mais deplorável? Eu era mesmo inocente nessa história. Os garotos do Hefon pagaram a um condestável para forjar umas provas. As acusações foram retiradas depois de apenas dois dias. — Ele amarrou a cara. — Não que os professores se importassem. A única coisa que lhes interessava era que eu estava conspurcando o bom nome da Academia — afirmou, num tom ressentido. — Depois disso, minha taxa de matrícula triplicou.

Resolvi pesar um pouco a mão.

— Meses atrás, você envenenou a filha de um jovem barão com venitasina e só lhe ministrou o antídoto depois que ela lhe transferiu a posse do maior feudo que deveria herdar. Aí, você montou um cenário para fazer parecer que ela o havia perdido num jogo de faraó de cacife alto.

Ele ergueu uma sobrancelha ao ouvir isso.

— Disseram por quê?

— Não. Presumo que ela tenha tentado dar o calote numa dívida que tinha com você.

— Há certa verdade nisso. Mas foi um pouco mais complicado. E não foi venitasina. Isso teria sido extraordinariamente irresponsável.

Slep fez um ar ofendido e deu uma batidinha na manga, visivelmente irritado, perguntando:

— Mais alguma coisa?

Fiz uma pausa, tentando decidir se eu queria obter a confirmação de algo de que suspeitava havia algum tempo.

— Só que, no último período, você colocou o Drazno Grossi em contato com uma dupla de homens conhecidos por matarem pessoas por dinheiro.

A expressão de Slep se manteve impassível, o corpo solto e relaxado. Percebi uma ligeira tensão em seus ombros. Pouquíssima coisa me escapa quando observo atentamente.

— Dizem isso, é? — perguntou ele.

Usei um dar de ombros que deixou o dele no chinelo. O meu foi tão displicente que faria inveja a um gato.

— Eu sou músico. Toco três noites por onzena numa taberna movimentada. Escuto todo tipo de coisas — expliquei. Peguei meu caneco. — E o que você ouviu sobre mim?

— As mesmas histórias que todas as outras pessoas conhecem, é claro. Você convenceu os professores a admiti-lo na Academia, embora fosse apenas um fedelho, sem querer ofender. Aí, dois dias depois, envergonhou Mestre Hilme na própria sala de aula dele e saiu impune.

— Exceto por um açoitamento.

— Exceto por um açoitamento — reconheceu ele. — Durante o qual você não se deu o trabalho de chorar nem sangrar, nem um pouquinho que fosse. Eu não acreditaria nisso, se não tivesse havido centenas de testemunhas.

— Reunimos uma boa plateia. O tempo estava bom para um açoitamento.

— Por causa disso, ouvi um pessoal exageradamente dramático chamá-lo de Vanitas, o Sem-Sangue. Mas calculo que parte disso venha do fato de você ser Therion, o que significa que está tão longe de um nobre de sangue azul quanto é possível.

— Um pouco de cada coisa, espero — falei, com um sorriso.

Ele assumiu um ar pensativo.

— Eu soube que você e Mestre Elohkar tiveram uma briga no Refúgio. Desencadearam-se mágicas vastas e terríveis e, no final, ele venceu, fazendo você atravessar uma parede de pedra e despencar do telhado do edifício.

— Disseram por que nós brigamos?

— Toda sorte de coisas — respondeu Slep, em tom indiferente. — Um insulto. Um mal-entendido. Você tentou roubar a magia dele. Ele tentou roubar sua mulher. Disparates típicos. — Slep esfregou o rosto. — Deixe ver. Você toca alaúde sofrivelmente bem e é orgulhoso como um gato que levou um pontapé. É malcriado, tem a língua afiada e não demonstra respeito pelos superiores, que são praticamente todas as pessoas, dada a sua origem humilde de ravia.

Senti uma onda de raiva começar no meu rosto e descer, quente e formigante, por toda a extensão do meu corpo.

— Sou o melhor músico que você jamais conhecerá ou verá de longe — retruquei, numa calma forçada. — E sou Therion até os ossos. Isso quer dizer que o meu sangue é vermelho. Quer dizer que respiro ar puro e vou aonde meus pés me levam. Não me encolho diante de títulos nem adulo servilmente como um cão. Isso parece orgulho a quem passou a vida inteira cultivando uma espinha dorsal flexível.

Slep deu um sorriso preguiçoso e percebi que estivera jogando verde.

— Você também tem um gênio explosivo, pelo que ouvi dizer. E há ainda muitos outros absurdos de todo tipo circulando por aí a seu respeito. Você só dorme uma hora por noite. Tem sangue de demônio. É capaz de falar com os mortos...

Inclinei-me para a frente, curioso. Esse não era um dos boatos iniciados por mim.

— É mesmo? Eu converso com espíritos ou será que dizem que ando desenterrando corpos?

— Imagino que sejam os espíritos. Não ouvi ninguém mencionar roubo de sepulturas.

Assenti com a cabeça.

— Mais alguma coisa?

— Só que você foi imprensado num beco, no último período, por dois homens que matam por dinheiro. E, apesar de eles estarem armados com facas e o terem apanhado desprevenido, você cegou um e deixou o outro desmaiado de tanta pancada, invocando o fogo e o relâmpago como o Grande Valoran.

Passamos um bom momento nos encarando. Não foi um silêncio agradável.

— Você pôs o Drazno em contato com eles? — perguntei enfim.

— Essa não é uma boa pergunta — disse Slep em tom franco. — Ela implica eu discutir transações particulares depois do acontecido. — Dirigiu-me um olhar vazio, sem o menor indício de sorriso perto da boca ou dos olhos. — Além disso, você confiaria em que eu lhe desse uma resposta sincera?

Franzi o cenho.

— Mas posso dizer que, por causa dessas histórias, ninguém mais tem grande interesse em aceitar aquele tipo de trabalho — continuou Slep, em tom coloquial. — Não que haja muita necessidade desse tipo de trabalho por aqui, para começar. Somos todos tremendamente civilizados.

— Não que você soubesse do assunto, mesmo que a coisa estivesse acontecendo.

O sorriso dele voltou.

— Exatamente — disse. Inclinou-se para a frente. — Então, chega de conversa. O que você está procurando?