CLXXVIX. BALESTRA

— Preciso de um esquema para uma peça de artificiaria.

Slep colocou os cotovelos na mesa.

— E...?

— E ela contém material siglístico que o Kelvin restringe a quem está na categoria de A'vór ou superior.

Slep maneou a cabeça com naturalidade.

— E com que rapidez você precisa disso? Horas? Dias?

Pensei no Alas e no Leif passando as noites em claro para velar por mim.

— Quanto mais cedo, melhor.

Slep ficou pensativo, com um olhar vago.

— Vai custar caro e não há garantias de que eu consiga arranjá-lo num prazo exato. — Focou a atenção em mim: — Além disso, se você for apanhado, será acusado de Apreensão Ilegal, no mínimo.

Assenti com a cabeça.

— E sabe quais são as penalidades?

"Por Apreensão Ilegal do Arcano que não leve a danos a terceiros" — recitei —, "o estudante delituoso será multado em não mais de 20 crimos, açoitado não mais de 10 vezes, suspenso do Arcano ou expulso da Academia."

— Eles me multaram pelo valor pleno de 20 crimos e me suspenderam por dois períodos — disse Slep, com ar sombrio. — E era apenas um pouco de alquimia do nível de A'scor. Será pior com você, se isso for coisa do nível de A'vór. 

— Quanto? — perguntei.

— Para obtê-lo em alguns dias... — Ele olhou para o teto por um instante. — Trinta crimos.

Senti um vazio na boca do estômago, porém mantive a compostura do rosto.

— Há alguma margem de negociação nisso?

Ele tornou a dar um sorriso astuto, com seus dentes muito brancos.

— Também negocio favores. Mas um favor de trinta crimos será grande — disse. Olhou-me com ar pensativo. — Talvez possamos combinar alguma coisa dentro dessa linha. Mas eu me sinto obrigado a mencionar que, quando cobro um favor, ele tem que ser pago de imediato. Nesse ponto, não há negociação.

Balancei calmamente a cabeça para lhe mostrar que compreendia. Mas senti um nó gelado formar-se em meu estômago. Aquela era má ideia. Intuitivamente, eu sabia.

— Você tem dívidas com mais alguém? — perguntou Slep. — E não minta para mim, porque eu saberei.

— Seis crimos — respondi, com ar despreocupado. — Com vencimento no fim do período.

Ele meneou a cabeça.

— Imagino que você não tenha conseguido obtê-lo com um prestamista. Procurou o Hefon?

Fiz que não.

— A Devi.

Pela primeira vez em nossa conversa, Slep perdeu a compostura e seu sorriso charmoso desapareceu por completo.

— A Devi? — repetiu. Empertigou-se na cadeira, subitamente tenso. — Não. Acho que não podemos chegar a um acordo. Se você tivesse dinheiro em espécie, seria outra coisa — disse, balançando a cabeça. — Mas não. Se a Devi já é dona de um pedaço de você...

A reação dele me deu um calafrio, mas então percebi que Slep só estava jogando para conseguir mais dinheiro.

— E se eu fizesse um empréstimo com você para poder quitar minha dívida com ela?

Ele meneou a cabeça, recuperando parte de sua indiferença esfacelada.

— Isso é a própria definição de apropriação indébita. A Devi tem um interesse vigente em você. Um investimento. — Bebeu um gole de cerveja e pigarreou de forma significativa. — Ela não vê com bons olhos a interferência de terceiros onde já declarou seu interesse.

Levantei uma sobrancelha e disse:

— Acho que fui enganado pela sua reputação. Foi bobagem minha, realmente. — Abanei as mãos com indiferença. — Por favor, confie em que eu tenho pelo menos metade da inteligência de que você ouviu falar. Se não pode obter o que quero, é só admitir. Não desperdice o meu tempo, cobrando um preço que está fora do meu alcance ou vindo com desculpas floreadas.

Slep pareceu não saber ao certo se deveria ofender-se.

— Qual é a parte disto que lhe parece floreada?

— Ora, vamos. Você se dispõe a desrespeitar as leis da Academia, a se arriscar à ira dos professores, aos condestáveis e à Lei Férrea de Aturia, mas um fiapinho de garota o deixa com as pernas bambas?

Funguei e imitei o gesto que ele fizera antes, fingindo amassar uma coisa e a jogar fora por cima do ombro.

Slep me olhou por um instante e caiu na gargalhada.

— É, é exatamente isso — disse, enxugando lágrimas de autêntica diversão. — Ao que parece, também fui tapeado pela sua reputação. Se você pensa que a Devi é um fiapinho de garota, não é realmente tão inteligente quanto eu supunha.

Olhando por cima do meu ombro, Slep fez sinal com a cabeça para alguém que não pude ver e deu um aceno displicente com a mão.

— Vá cuidar da sua vida — disse-me. — Tenho negócios a tratar com pessoas racionais, que conhecem o verdadeiro funcionamento do mundo. Você está me fazendo perder tempo.

Senti-me comichar de irritação, mas me forcei a não deixá-la transparecer no rosto.

— Também preciso de uma balestra — falei.

Ele balançou a cabeça.

— Não, eu já lhe disse. Nada de empréstimos nem favores.

— Posso oferecer mercadorias em troca.

Ele me olhou com ar cético.

— Que tipo de balestra?

— Qualquer uma. Não precisa ser sofisticada. Só precisa funcionar.

— Oito crimos — disse Slep.

Olhei-o com expressão dura.

— Não me insulte. Isso é contrabando ordinário. Aposto 10 lumens contra um que você pode arranjá-la em duas horas. Se tentar me esfolar, simplesmente atravessarei o rio e pegarei uma com o Hefon.

— Pegue-a com o Hefon e você terá que trazê-la de Torrente. O guarda da cidade adoraria ver isso.

Dei de ombros e comecei a me levantar.

— Três talentos e meio — disse Slep. — Será usada, entenda bem. E de gancho, não de manivela.

Fiz as contas de cabeça.

— Você aceitaria uma onça de prata e um carretel de arame fino de ouro? — perguntei, tirando-os dos bolsos da capa.

Os olhos de Slep perderam ligeiramente o foco, enquanto ele fazia seus próprios cálculos.

— Você é duro de negociar — disse-me. Pegou o carretel de arame brilhante e o pequeno lingote de prata. — Há um barril de água da chuva atrás do Curtume Glowstone. A besta estará lá dentro de 15 minutos.

Olhou-me com ar ofendido e completou:

— Duas horas? Você não sabe mesmo nada sobre mim.

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Horas depois, Faela emergiu das estantes do Arquivo e me apanhou com uma das mãos na porta das quatro chapas. Eu não a estava propriamente empurrando, apenas fazendo pressão. Só checando para ver se estava firmemente fechada. Estava. 

— Imagino que não digam aos escribas o que está atrás disso, não é? — perguntei, sem a menor esperança.

— Se dizem, ainda não disseram a mim — respondeu Faela, chegando mais perto e estendendo a mão para deslizar os dedos pelos sulcos feitos pelas letras na pedra: Valarnitas. — Uma vez eu sonhei com essa porta. Valarnitas era o nome de um antigo rei morto. Seu túmulo ficava atrás da porta.

— Puxa, isso é melhor do que os sonhos que tive com ela.

— Como foram os seus? — perguntou Faela.

— Uma vez, sonhei que via luz pelos buracos das fechaduras. Mas, na maioria das vezes, fico apenas parado aqui, olhando para ela, tentando entrar. — Franzi o cenho e completei: — Como se parar diante dela quando estou acordado já não fosse suficientemente frustrante, faço a mesma coisa ao dormir.

Faela riu baixinho, depois se afastou da porta e se virou para mim:

— Recebi o seu bilhete. Que projeto de pesquisa é esse sobre o qual você foi tão vago?

Fomos para uma das cabines de leitura e, uma vez fechada a porta, contei-lhe a história toda, com os embaraços e tudo o mais. Alguém estava praticando malfeitoria contra mim. Eu não podia recorrer aos professores, por medo de revelar que tinha sido eu que invadira os aposentos do Drazno. Precisava de um gramo para me proteger, mas não conhecia siglística o bastante para produzi-lo.

— Malfeitoria — disse ela em voz baixa, meneando lentamente a cabeça, desolada. — Tem certeza?

Desabotoei a camisa e baixei-a no ombro, revelando a mancha roxa do ataque que eu só conseguira deter parcialmente.

Faela se inclinou para olhá-la.

— E você não sabe mesmo quem seria?

— Na verdade, não — respondi, procurando não pensar na Devi. Por enquanto, queria guardar segredo dessa decisão errada em particular. — Sinto muito envolvê-la nisto, mas você é a única...

Faela abanou as mãos em sinal negativo.

— Nada disso. Eu lhe disse para me pedir se um dia precisasse de um favor e fico contente que o tenha feito.

— Fico contente por você estar contente. Se você puder me ajudar nisto, sou eu que vou ficar lhe devendo. Estou melhorando em matéria de encontrar o que quero por aqui, mas ainda sou novato.

Faela meneou a cabeça.

— Leva anos para se aprender a circular pelo Acervo. Ele é como uma cidade.

Sorri.

— Também é assim que penso nele. Não moro aqui há tempo suficiente para conhecer todos os atalhos.

Faela fez uma pequena careta.

— E acho que vai precisar deles. Se o Kelvin realmente acredita que a siglística é perigosa, a maioria dos livros que você quer deve estar na biblioteca particular dele.

Senti um aperto no peito.

— Biblioteca particular?

— Todos os professores têm bibliotecas particulares — disse Feila, com naturalidade. — Conheço um pouco de alquimia e posso ajudar a localizar livros com fórmulas que o Mondrag não gostaria de ver em mãos erradas. Os escribas que conhecem siglística fazem o mesmo pelo Kilvin.

— Todos os professores têm bibliotecas particulares — disse Faela, com naturalidade. — Conheço um pouco de alquimia e posso ajudar a localizar livros com fórmulas que o Mondrag não gostaria de ver em mãos erradas. Os escribas que conhecem siglística fazem o mesmo pelo Kelvin.

— Mas, então, isto é inútil. Se o Kelvin trancou todos esses livros, não há chance de eu achar o que estou procurando.

Faela sorriu, balançando a cabeça.

— O sistema não é perfeito. Apenas um terço do Arquivo foi adequadamente catalogado. É provável que o que você procura ainda esteja em algum lugar do Acervo. É só uma questão de encontrar.

— Eu nem precisaria de um esquema completo. Se ao menos soubesse algumas das runas corretas, provavelmente poderia apenas falsificar o resto.

Ela me olhou com preocupação.

— E isso é mesmo sensato?

— Sensatez é um luxo que não posso me proporcionar. O Alastor e o Leif já estão velando por mim há duas noites. Não podem passar os próximos 10 anos dormindo em turnos.

Faela respirou fundo e soltou o ar lentamente.

— Certo. Podemos começar pelos livros catalogados. Talvez isso de que você precisa tenha escapado aos escribas.

Recolhemos várias dezenas de livros de siglística e nos fechamos numa cabine de leitura pouco frequentada no quarto andar. Passamos então a folheá-los um a um.

Começamos com a esperança de encontrar um esquema completo do gramo, porém, com o correr das horas, reduzimos nossas expectativas. Se não fosse o esquema completo, talvez pudéssemos achar a descrição de um gramo. Talvez uma referência à sequência de runas utilizada. O nome de uma única runa. Um indício. Uma pista. Um retalho. Um pedaço do quebra-cabeça.

Fechei o último livro que leváramos para a cabine. Ele ressoou com um baque sólido quando as páginas se juntaram.

— Nada? — perguntou ela, cansada.

— Nada — respondi, esfregando o rosto com as duas mãos. — Lá se foi a esperança de ter sorte.

Faela encolheu os ombros, com uma careta durante metade do movimento, depois inclinou a cabeça de lado para esticar o pescoço.

— Fazia sentido começar pelos lugares mais óbvios — disse. — Mas esses devem ser os mesmos lugares que os escribas vasculharam para o Kelvin. Só teremos que cavar mais fundo.

Ouvi o som distante do campanário e fiquei surpreso com o número de vezes que o sino badalou. Fazia mais de quatro horas que estávamos pesquisando.

— Você perdeu sua aula — falei para Faela.

— Era só geometria.

— Você é uma pessoa maravilhosa. Qual é a nossa melhor opção, agora?

— Uma longa e lenta peneirada do Acervo. Mas será como peneirar ouro. Dezenas de horas e isso se trabalharmos juntos, para que nossos esforços não se superponham.

— Posso chamar o Alas e o Leif para ajudar.

— O Alastor trabalha aqui — disse Faela. — Mas o Leif nunca foi escriba, provavelmente só vai atrapalhar.

Lancei-lhe um olhar curioso.

— Você conhece bem o Leif?

— Não muito — admitiu ela. — Já o vi por aí.

— Você o está subestimando. As pessoas vivem fazendo isso. O Leif é inteligente.

— Todos aqui são inteligentes — retrucou Faela. — E o Leif é agradável, mas...

— O problema é esse. Ele é agradável. É gentil, o que as pessoas veem como fraqueza. E é feliz, o que elas veem como burrice.

— Não foi isso que eu quis dizer.

— Eu sei — respondi, esfregando o rosto. — Desculpe-me. Esses dois dias foram ruins. Eu pensava que a Academia seria diferente do resto do mundo, mas é como em qualquer outro lugar: as pessoas paparicam patifes pomposos e grosseiros feito o Drazno, enquanto as boas almas, como o Leif, são descartadas como simplórios.

— Qual deles é você? — perguntou Faela com um sorriso, enquanto começava a empilhar os livros. — Patife pomposo ou boa alma?

— Depois eu investigo isso. No momento, tenho preocupações mais urgentes.