As folhas farfalharam sob meus pés quando segui pela floresta para o norte da Academia. O luar pálido que se filtrava por entre as árvores desnudas não era suficiente para se enxergar com clareza, mas eu tinha feito esse percurso várias vezes na onzena anterior e conhecia o caminho de cor. Senti o cheiro de fumaça de madeira muito antes de ouvir vozes e vislumbrar a luz da fogueira por entre as árvores.
Não era realmente uma clareira, mas um espaço sossegado, escondido atrás de um afloramento de rocha. Alguns pedaços de pedra bruta e o tronco de uma árvore caída serviam de bancos improvisados. Eu mesmo tinha escavado o poço alguns dias antes. Tinha mais de 30 centímetros de profundidade e 1,80 metro de comprimento, forrado de pedras. Ele tornava ainda menor a pequena fogueira que ardia lá nesse momento.
Todos os outros já haviam chegado. Mila e Faela dividiam o banco de tronco. Alastor estava acocorado numa pedra. Leif sentava-se no chão, de pernas cruzadas, cutucando o fogo com um graveto.
Alas levantou a cabeça quando saí do arvoredo. À luz bruxuleante da fogueira, seus olhos pareciam escuros e fundos. Fazia quase duas onzenas inteiras que ele e Leif velavam por mim.
— Você está atrasado — disse ele.
Leif ergueu os olhos para mim, animado como sempre, mas em seu rosto também havia marcas de exaustão.
— Terminou? — perguntou-me, agitado.
Fiz que sim.
Desabotoei o punho da camisa, enrolei a sua manga e revelei um disco de ferro, ligeiramente maior que um lumen da República. Era recoberto por uma siglística delicada e tinha incrustações de ouro. Meu gramo recém-concluído. Ficava preso na parte interna do meu antebraço por um par de fios de couro.
Um viva elevou-se do grupo.
— Modo interessante de usá-lo — comentou Mila. — Elegante, num estilo que lembra o de um invasor bárbaro.
— Ele funciona melhor em contato com a pele — expliquei. — E preciso mantê-lo fora de vista, já que eu não deveria saber fazê-lo.
— Prático e elegante — disse Mila.
Leif aproximou-se e deu uma espiada, estendendo a mão para tocá-lo com um dedo.
— Parece tão pequeno... aaaai! — gritou, dando um pulo para trás e retorcendo a mão. — Maldito negrume! — praguejou, embaraçado. — Desculpe. Ele me assustou, só isso.
— Kist e crayle — falei, com meu próprio coração disparado. — O que foi?
— Você já tocou um guílder do Arcano? — perguntou ele. — Daqueles que a gente recebe quando se torna arcanista pleno?
Fiz que sim.
— Ele meio que zumbiu. Deixou minha mão insensível, como se estivesse dormente — falei.
Leif apontou com a cabeça para o meu gramo, sacudindo a mão.
— A sensação é parecida. E me pegou de surpresa.
— Eu não sabia que os guílderes também funcionavam como gramos — comentei. — Mas faz sentido.
— Você o testou? — perguntou Alastor.
Fiz que não com a cabeça.
— Achei que seria meio estranho se eu mesmo o testasse — admiti.
— Quer que um de nós o teste? — ofereceu Leif, com uma risada. — Tem razão, isso é perfeitamente normal.
— Também pensei que seria conveniente ter um fisiopata por perto — comentei, fazendo um sinal na direção de Mila. — Só por precaução.
— Eu não sabia que meus serviços profissionais seriam necessários hoje — protestou ela. — Não trouxe meu equipamento.
— Não deve ser necessário — falei, tirando um cubo de cera de simpatia da capa e agitando-o no ar. — Quem quer fazer as honras?
Houve um momento de silêncio, depois Faela estendeu a mão.
— Eu faço o boneco, mas não vou espetar alfinetes nele.
— Vhenata — disse Alastor.
Leif deu de ombros e falou:
— Tudo bem, eu o espeto. Eu acho.
Entreguei o cubo de cera a Faela, que começou a aquecê-lo entre as mãos.
— Você quer usar cabelo ou sangue? — perguntou-me, baixinho.
— Os dois — respondi, tentando não deixar transparecer minha ansiedade crescente. — Preciso ter certeza absoluta de que ele funciona, se quiser dormir à noite.
Peguei um alfinete de chapéu, espetei o dorso da mão e observei uma brilhante gota de sangue se formar.
— Isso não vai servir — disse Faela, ainda trabalhando a cera nas mãos. — Sangue não se mistura com cera. Simplesmente forma uma gota e escorre.
— E como você chegou a essa esplêndida informação? — perguntou Leif, implicando com ela, um pouco apreensivo.
Faela corou e abaixou um pouco a cabeça, fazendo o cabelo comprido cair em cascata dos seus ombros.
— Velas. Para fazer velas coloridas, não se pode usar tintura à base de água. Tem que ser em pó ou a óleo. É uma questão de solubilidade. Alinhamentos polares e não polares.
— Adoro a Academia — disse Leif a Alastor, do outro lado da fogueira. — As mulheres instruídas são muito mais atraentes.
— Eu gostaria de dizer o mesmo, porém jamais conheci homens instruídos — retrucou Mila, em tom seco.
Inclinei-me, peguei uma pitada de cinza do braseiro escavado no chão e a joguei no dorso da mão, onde ela absorveu meu sangue.
— Isso deve funcionar — disse-me Faela.
— Essa carne queimará. Às cinzas tudo retornará — entoou Alastor, com voz soturna, e se virou para Leif. — Não é isso que diz o seu livro sagrado?
— Não é o meu livro sagrado — retrucou Leif. — Mas você chegou perto. "Às cinzas tudo retornará e também assim essa carne queimará."
— Vocês dois estão mesmo se divertindo — observou Mila, seca.
— Fico zonzo só de pensar numa noite inteira de sono — disse Alastor. — A diversão da noite é o café depois do bolo.
Faela me estendeu o pedaço de cera macia, no qual pressionei a cinza molhada. Ela tornou a trabalhar a massa, depois começou a moldá-la, dando-lhe tapinhas com os dedos. Com alguns movimentos hábeis transformou-a num boneco em forma de homem. Exibiu-o para que o grupo o visse.
— A cabeça do Vanitas é muito maior que isso — disse Leif, com seu sorriso de garoto.
— Também tenho órgãos genitais — retruquei, pegando o boneco da mão de Faela e fincando um fio do meu cabelo no alto da sua cabeça. — Mas há um ponto em que o realismo se torna improdutivo.
Fui até Leif e lhe entreguei o simulacro e o alfinete de chapéu. Ele segurou um em cada mão, correndo os olhos entre um e outro, constrangido.
— Você tem certeza disso? — indagou.
Fiz que sim.
— Muito bem.
Leif respirou fundo e endireitou os ombros. Sua testa franziu-se de concentração e ele contemplou o boneco.
Curvei-me, gritando e segurando minha perna.
Faela soltou um grito abafado. Alastor levantou-se de um salto. Leif arregalou os olhos de pânico, segurando o boneco e o alfinete com os braços esticados, um longe do outro. Olhou aflito para todos em volta e disse:
— Eu... eu não...
Estiquei o corpo e ajeitei a camisa.
— Eu só estava treinando — falei. — O grito foi muito de menina?
Leif amoleceu de alívio.
— Miserável — disse em tom débil, rindo. — Não tem graça, seu safado.
Continuou a rir, sem conseguir conter-se, enquanto enxugava a camada de suor da testa.
Alastor resmungou alguma coisa em kiaru e voltou para seu assento.
— Vocês três são tão bons quanto uma trupe itinerante — disse Mila.
Leif respirou fundo e soltou lentamente o ar. Tornou a endireitar os ombros e ergueu o boneco e o alfinete à sua frente. Sua mão tremia.
— Ora, por Ardonai — falou. — Você quase me matou de medo. Agora eu não consigo fazer isso.
— Pelo amor de Deus! — disse Mila, que se levantou e contornou o braseiro no chão, parando ao lado de Leif. Estendeu as mãos: — Dê isso aqui — ordenou. Pegou o boneco e o alfinete, virou-se para mim e me encarou: — Está pronto?
— Só um segundo — pedi.
Após duas onzenas de vigilância constante, relaxar a Vileza que me protegia era como abrir à força um punho enrijecido por ter se agarrado a alguma coisa durante tempo de mais.
Passado um instante, balancei a cabeça. Senti-me estranho sem a Vileza. Quase nu.
— Não se contenha, mas me acerte na perna, por via das dúvidas.
Mila fez uma pausa, murmurou uma conexão e cravou o alfinete na perna do boneco.
Silêncio.
Todos me observaram, imóveis.
Não senti nada.
— Estou bem — informei. Todos recomeçaram a respirar e lancei um olhar curioso a Mila. — Isso foi mesmo tudo o que você podia fazer?
— Não — respondeu ela com franqueza, puxando o alfinete da perna do boneco e se ajoelhando para segurá-lo acima do fogo. — Isso foi um teste delicado. Eu não queria ouvir seu grito de menininha de novo.
Trouxe o alfinete de volta do fogo e se levantou.
— Desta vez vou atacar pra valer — disse. Posicionou o alfinete acima do boneco e me olhou: — Está pronto?
Fiz que sim.
Ela fechou os olhos um instante, murmurou uma conexão e cravou o alfinete aquecido na perna do boneco. O metal do gramo esfriou na parte interna do meu braço e senti uma pressão rápida no músculo da panturrilha, como se alguém me houvesse cutucado. Baixei os olhos para ter certeza de que o Leif não estava se vingando, espetando-me com um graveto.
Por não estar olhando, perdi o que Mila fez em seguida, mas senti outras três cutucadas secas, uma em cada braço e a terceira no músculo logo acima do joelho. O gramo esfriou mais.
Ouvi Faela prender a respiração e levantei os olhos a tempo de ver Mila, com ar sinistro e resoluto, lançar o boneco no meio da fogueira, murmurando outra conexão.
Quando o boneco de cera descreveu um arco no ar, Leif soltou um grito assustado. Alastor tornou a ficar de pé, quase se atirando em cima de Mila, porém era tarde demais para detê-la.
O boneco aterrissou entre as brasas vivas com uma explosão de fagulhas. Meu gramo esfriou a ponto de quase doer no meu braço e desatei a rir feito um louco. Todos se viraram para mim, suas expressões em vários estágios de horror e incredulidade.
— Estou bem — disse-lhes. — Mas isto é esquisito mesmo. É cambiante. Como ficar parado numa ventania quente e densa.
O gramo ficou gelado em meu braço, depois a sensação estranha foi sumindo, à medida que o boneco derretia, destruindo a conexão. As labaredas subiram quando a cera começou a queimar.
— Doeu? — perguntou Leif, aflito.
— Nem um pouquinho — respondi.
— E isso era tudo o que eu tinha — disse Mila. — Para fazer mais alguma coisa, eu precisaria de uma fornalha.
— E ela é A'vór — disse Leif, com ar convencido. — Aposto que é uma simpatista três vezes melhor que o Drazno.
— Pelo menos três vezes — concordei. — Mas, se há alguém que se disporia a fazer o impossível para arranjar uma fornalha, é o Drazno. O gramo pode ser sobrepujado se forem jogadas coisas suficientes contra ele.
— Quer dizer que vamos em frente amanhã? — perguntou Mila.
Confirmei com a cabeça.
— É melhor prevenir do que remediar.
Leif espetou um graveto no ponto da fogueira onde o boneco havia caído.
— Se a Mila pode fazer o que tem de pior e a coisa apenas roça, sem atingi-lo, talvez isso também seja suficiente para tirar a Devi das suas costas. E lhe dar um pouco de espaço para respirar.
Houve um breve momento de silêncio. Prendi a respiração, torcendo para que Faela e Mila não dessem atenção especial a esse comentário.
Mila levantou uma sobrancelha para mim.
— Devi?
Fuzilei o Leif com os olhos e ele fez uma expressão de dar pena, como um cachorro que sabe que vai levar um pontapé.
— Peguei um dinheiro emprestado com uma agiota chamada Devi — esclareci, na esperança de que ela se satisfizesse com isso.
Mila continuou a me olhar.
Dei um suspiro. Comumente, eu teria evitado o assunto, mas Mila tendia a ser insistente nesse tipo de coisa e eu precisava desesperadamente dela para o plano do dia seguinte.
— A Devi foi membro do Arcano — expliquei. — Eu lhe dei algumas gotas do meu sangue como garantia de um empréstimo feito no início do período. Quando o Drazno começou a me atacar, eu me precipitei, tirei uma conclusão errada e a acusei de malfeitoria. Depois disso, nosso relacionamento azedou.
Mila e Faela se entreolharam.
— Você se esforça mesmo para tornar a vida excitante, não é? — disse Mila.
— Já admiti que foi um erro — respondi, irritado. — O que mais você quer que eu faça?
— Você vai conseguir quitar a dívida com ela? — perguntou Faela, entrando na conversa antes que as coisas esquentassem entre mim e Mila.
— Sinceramente, não sei — admiti. — Com um pouco de sorte e umas noites longas na Ficiaria, talvez eu consiga juntar o bastante até o fim do período.
Não contei toda a verdade.
Embora eu talvez tivesse a possibilidade de ganhar o suficiente para devolver o dinheiro à Devi, não haveria a menor chance de pagar a taxa escolar ao mesmo tempo. Eu não queria estragar a noite de todo mundo com a constatação de que o Drazno tinha vencido. Ao me forçar a passar tanto tempo à caça de um gramo, ele efetivamente me expulsara da Academia.
Faela inclinou a cabeça de lado.
— O que acontece se você não puder pagar a ela?
— Nada de bom — disse Alastor, em tom sinistro. — Não é à toa que a chamam de Devi Demônio.
— Não sei ao certo — falei. — Ela poderia vender meu sangue. Disse que conhecia alguém disposto a comprá-lo.
— Tenho certeza de que ela não faria isso — declarou Faela.
— Eu não a culparia — retruquei. — Eu sabia no que estava me metendo quando fechei o negócio.
— Mas el-...
— A vida é assim mesmo — interrompi-a em tom firme, não querendo me estender no assunto mais do que o necessário. Queria que a noite terminasse num clima positivo. — Eu, por exemplo, estou ansioso por uma boa noite de sono na minha própria cama. — Olhei em volta e vi Alas e Leif meneando a cabeça numa concordância fatigada. — Vejo vocês todos amanhã. Não se atrasem.
Mais tarde, dormi no luxo da minha cama estreita, no meu quarto minúsculo. Em dado momento, fui arrastado para a vigília pela sensação de metal frio na pele. Sorri, virei de lado e tornei a mergulhar num sono bem aventurado.