capítulo 12

Localização; Calisto

Baltazar

A época seca judiava da família de Baltazar em caminho ao Norte de Montes Claros, onde a mensageira havia ordenado que ele passasse.

A estrada era estreita, e ele cruzava por diversas áreas de plantações que sentiam falta do verde e da chuva. As cercas tremiam de onde estava, o suor pingava e grudava por todo seu corpo, seu fedor e o das crianças deveria exalar por onde andavam.

Pegando seu odre, ele tomou um gole de água quente, que mais o deixava com sede do que a saciava. E isso fez com que se lembrasse do rio que tinha quase na porta de casa. Se quisesse bebe-lo em qualquer hora do dia, a água sempre estaria fria e agradável à garganta, era uma pena, lamentou. Lamentou mais ainda sobre como a cada passo se sentia longe de onde estava protegido, como se naquele quase deserto estivesse frágil e indefeso, tanto ele quanto Lira e Menel.

Quando saiu da vila Pequena já sabia que a sensação não seria das melhores, no entanto estar vivendo conseguia ser pior.

Barulhos ao redor o deixavam em alerta apenas para quando olhasse para todos os lados visse que era apenas um vento forte batendo na cerca, sempre esperando que viesse alguém para surpreendê-los. Se pegava encarando pela estrada que já passou temendo que alguém o seguisse.

O tempo poderia ter levado tanto, mas a cautela ainda andava de mãos dadas com ele.

Baltazar não sabia quem poderia estar observando-o desde a última vez. Desde a última vez que já esteve vulnerável.

eram saltos no escuro. Lira dessa vez, parecia aérea, não se dando conta da preocupação do pai ou se estivesse, se recusava a se importar, seu olhar estava perdido e seus lábios em linha fina. Menel adormeceu durante o trajeto, quando acordado falava mais do que costume, perdendo então as energias. Baltazar não podia se dar ao luxo de cansar.

Ele não estava nem na metade de onde deveria, e sua esperança era chegar ao anoitecer. Os deuses ajudariam se desse.

Então apressou os passos e obrigou Fedor a dirigir a carroça mais rápido dando palmadas em suas costas.

O avanço não foi muito, mas foi significativo e com o mapa improvisado de Calisto pode ver onde mais ou menos estava. Faltavam dias até seu destino final, mas chegaria até uma cidade próxima se continuasse até o fim da noite. Infelizmente ele não optou por isso e sim em parar em algum lugar para descansar.

Enquanto ponderava as alternativas e decisões, alguém vinha em direção a eles com passos de cavalo, o barulho chamou a atenção de Baltazar que logo procurou a origem do som, e quando avistou estreitou os olhos, por estranho que fosse a pessoa que andava a pé, tinham som dos passos semelhantes ao de uma montaria.

Menel e Lira, que estavam acordados e conscientes do barulho e da pessoa franziram a testa enquanto se entreolharam. Pensavam que talvez algum cavalo estivesse mais atrás com o cavaleiro galopando. Baltazar que não era tão ingênuo, só de ouvir e olhar sabia do que se travava, ele evitou contato visual, segurou a corda de Fedor fortemente e ordenou baixinho.

— Não olhem no olho da coisa, aconteça o que acontecer! — avisou.

— Como?

Lira se virou no mesmo instante em que sua voz saiu. E o que vira foi a coisa mais horrível que se deparou. A cabeça do homem pendia como se estivesse quebrada e o som fino que soltou era como se tivesse algo em sua garganta, o grito arrepiou todos os pelos corporais da moça que faltou correr quando o homem começou a voar pelo vento forte como se fosse um lençol para perto deles, sua cabeça torta ainda estava ali, mas seu corpo se desfez em uma fumaça branca que o seguia.

Baltazar com hesitação deu um passo para trás, já esperando tanto a reação dos filhos quanto a do fantasma e sem muitas opções do que fazer brandiu o punhal que trouxeram o bateu com força bem na testa do fantasma, fora apenas um golpe e ele se tornou pó misturado com roxo diante deles.

Lira levantou quase caindo, seus olhos eram tampados pelos seus dedos e Menel tinha a mão nos lábios, ambos aterrorizados com a fumaça deixada para trás.

Todos respiravam rápido. Lira bastante assustada que saltou da carroça e foi até o pai

Ela estava aterrorizada.

— O que foi aquilo?

Ele segurou firme em seus ombros para ela não cair, quando viu suas pernas bambas.

— Porque não podemos olhar nos olhos, pai?

— Fantasma.

— O que?

— Fantasma! A centenas em Calisto que vagam à procura de almas. Se olham para seus olhos eles possuem vocês. Os olhos são a porta para a alma.

Fantasmas eram criaturas que Baltazar não vira tanto em sua vida, em Avalon eles não conseguiam habitar por conta da alta magia concentrada no reino, em Zamoria e Arcádia era quase impossível a existência de tão longe que os reinos eram localizados. Em Calisto era onde eles mais se criaram e produziram com mágoa acumulada de quando vivos e o sentimento de rancor de terem suas vidas roubadas.

Havia lendas que contavam que em sua maioria eram bruxos injustiçados que tiveram suas vidas caçadas, e após terem mortes dolorosas procuravam corpos humanos para se vingar.

Baltazar nunca pensou encontrar um pessoalmente, mas tinha dia para tudo, até para se ter azar. Por sorte as crianças obedeceram um de seus comandos e não olharam nos olhos do morto. Infelizmente sua alma ainda não foi aniquilada, apenas expulsada por enquanto, horas mais tarde o espírito vagaria novamente em busca de uma nova vítima o que não era tranquilizador para o homem.

— Fantasmas? Porque nunca ouvimos falar?

Metade do ódio que sentira mais cedo havia se dissipado depois do perigo iminente, e agora Lira procurava conforto em seu pai.

— Eles moram em certos pontos em Calisto. Tenham cuidado.

Sua explicação era meia boca, mas seria suficiente por enquanto.

— Onde ficávamos não tinha.

Baltazar pensou um pouco, depois disse — Realmente não tinha Menel, mas agora tem. Vai ser recorrente a vista deles. Então se tranquilizem um pouco.

— Como?

— Protegerei vocês como sempre fiz.

Menel se abraçava com medo, olhando a todo momento para qualquer lugar que tinha movimento, no fim eram apenas animais selvagens vagando por ali. Lira também estava atenta, ainda mais insatisfeita com a viagem.

Para acalmá-los, Baltazar disse.

— Já passou, qualquer barulho que ouvir saberei se é ou não, não se preocupem.

Ouvindo essas palavras o coração de ambos ficou mais calmo, mesmo que não soubessem quem era o inimigo, como poderiam duvidar das palavras de um pai que acabou de salvá-los e sabia exatamente como se defender? O que restava era confiar em Baltazar.

Seguindo o caminho eles se ajeitaram novamente e seguiram todos de olhos bem abertos.

Após algumas horas Baltazar já não enxergava mais os arredores com clareza, sua visão estava comprometida pelo crepúsculo.

Fedor estava cansado e as crianças não falavam, mas ele conhecia quando estavam assustadas. Ficavam em silêncio, com olhares perdidos e alheios.

Ele não estava distante da reação deles e conduzia todos com o olhar pesado e as pernas fracas de tanto caminhar.

Brilhando de longe, luzes apareceram em seu campo de visão para salvá-lo, e um leve sorriso surgiu em seus lábios, era a cidade próxima a Vila Pequena.

As crianças não conheciam as estradas bifurcada que levavam até as feiras e praças, e era uma pena, não para Baltazar, que não queria trazê-los para cá, não considerava seguro e o que tinha em comum com eles era a falta de conhecimento nos novos moradores.

Quando olhou para o lado, talvez buscando alguém que o reconhecesse, reparou nos olhares que recebeu, e isso o atordoou por um segundo, fazendo-o parar de andar com a carroça, ele queria se esconder, negar quando qualquer um fosse lhe apontar o dedo e dizer que o conhecia, mas os olhares que recebeu eram mais de curiosidade do que de julgamento, as pessoas estavam ocupadas com seus afazeres, guardando os mantimentos e indo para suas casas, talvez boa parte não sabia quem ele era ou talvez fosse porque já estava anoitecendo e não podiam repará-lo direito, fosse o que fosse, ele só andou depois que Menel perguntou.

— Porque parou, papai?

O fio de medo então surgiu em si e por algum motivo o passado voltou a atormentá-lo.

Quando apareceu em Calisto e fora recebido pela família de sua falecida esposa ficou algumas semanas sob a presença deles sem coragem de ir enfrentar o mundo, se recusava a dar passos para fora da floresta pequena pois estava com medo, medo de ser reconhecido, lembrado ou castigado.

Era claro que seus sogros não compreendiam tal sentimento, nem Luzia, que em um dia que precisava comprar mantimentos, questionou enquanto cortava a lenha.

— O pai disse que o senhor se nega a ir a cidade próxima, ele não entende o porquê, mamãe insiste que é pela sua falta de entendimento com o presente, que não quer lidar com outras pessoas quando não se lembra de nada.

Ela falava rápido demais, como se fosse ousar falar devagar não conseguiria terminar o que tinha para dizer.

Naquela época eles ainda não tinham nada, ela não lhe dirigia a palavra, talvez por medo ou por falta de coragem, eram apenas olhares discretos, roçar de dedos quando entregavam alguma vasilha um pro outro e uma vontade enorme de se verem.

Baltazar também não avançava até ela, não se sentia confortável em fazer, desde a conversa com o pai de Luzia ele evitava se manter a sós com ela, tanto por respeito, quanto por não querê-la envolvida com ele.

Ele não queria essa família envolvida em todo o caos que sua vida era, mas estava dividido entre ficar e recomeçar ou ir embora mais uma vez.

O único motivo que o fazia permanecer era que a família conseguiu engolir sua perda de memória e que ele não se lembrara de onde era, mas essa mentira estava ficando insustentável quando ele se negava a interagir com viajantes que passavam pela estrada da cabana, se escondendo nas árvores para não ser visto ou quando ignorava os pedidos do pai de Luzia para ir a cidade, ficando cada vez mais evidente que ele tinha algum problema.

Baltazar de fato tinha, e não podia sair contando, então mentia.

— Ela está certa, eu me recordo vagamente de algumas coisas e prefiro ficar isolado enquanto não lembro exatamente quem eu sou.

Mentir nunca havia sido fácil, principalmente para alguém que acreditava facilmente em suas palavras.

— Não deveria ser assim.

— Mas é. Eu não quero que as pessoas me vejam… — sussurrou — descubram sobre mim.

— Porque? — ela estranhou, levantando a sobrancelha clara, — não é como se você fosse um criminoso que todos odiassem a existência e precisasse se esconder.

O sorriso que soltou era tímido e Baltazar a encarou profundamente, assentindo inconsequentemente com a cabeça, Luzia continuou, dessa vez mais séria.

— Tem medo de descobrir sobre quem era antes? Se era bom ou ruim?

Baltazar ficou sem palavras, e seu silêncio era como se fosse um sim para Luzia, que pôs uma mão amiga em seu ombro e apertou.

— Não há qualquer vestígio de maldade no senhor.

Sua afirmação era rasa, sem fundamento. Ela não o conhecia, nem sua família, o que eles sabiam era que Baltazar queria que eles soubessem, e ainda assim ter a confiança dela era devastador.

Suas palavras eram tão cheias de certeza que até Baltazar acreditava. Por um momento ele se sentiu culpado por essa farsa, por enganá-los tão descaradamente. Não era de propósito que estava lá, e ainda assim estava.

Ele encolheu os ombros e Luzia se afastou, toda envergonhada de seu gesto, pensando que ele não gostara da sua aproximação e a julgara em pensamento.

Mal sabia ela o que ele divagava.

— Me desculpe, senhor, se não quiser ir até a cidade, não há problema, irei só.

Como se fosse uma despedida, ela se afastava, mas Baltazar recuperou a fala e segurou seu pulso, fazendo-a parar e se virar até ele.

— Me perdoe pela indelicadeza, — ele a soltou — mas… quando você aceitou que eles são seus pais? E Como? Como se desvencilhou do passado e da antiga família?

Luzia era uma moça envergonhada e discreta, falava somente o necessário, mas ainda assim era simpática e curiosa, e nesse dia ela tomara coragem para falar com Baltazar, que a evitava como se tivesse uma doença.

Desde que o conheceu o julgou como interessante, e quando o viu pela primeira vez não conseguiu desviar seu olhar, ele era um homem bonito, muito bonito. Não que visse tantos homens, mas ainda assim ele era encantador e educado, chamara sua atenção, diferente dos outros que eram brutos e ignorantes.

E quando seu pai pediu que fosse para a cidade comprar algumas coisas, aceitou a proposta dele de chamar o jovem para acompanhá-la. Ficará feliz. Teria um motivo para conversar com ele e não ser evitada.

E agora que ele perguntara algo tão íntimo, seu espanto estava evidente em seu rosto.

Percebendo sua reação, Baltazar se corrigiu com arrependimento.

— Me perdoe, não deveria perguntar esse tipo de coisa.

— É estranho…

— O que?

Luzia não tinha com quem falar sobre isso, só tinhaseus pais e agora Baltazar, mas só ele poderia ouvi-la sem julgamento.

— Tudo! Porque eu tinhauma vida antes. erapara mim continuar tendo, mas tudo mudou porque alguém disse que não me queria ali, que aquele lugar não me cabia. — seus olhos brilhavam enquanto contava. — Desde então não foi mais bem vinda, e tive que escolher outro lugar. Ser aceita em outro, me aceitar. Por sorte eles me acolheram, me fizeram bem e consegui me acostumar aqui, desde então não me vejo mais sem eles.

Os dois não se olharam, não precisavam, mas os olhos de Baltazar encaravam o céu em busca de respostas.

Um silêncio torturante se passou entre eles, até ela questionar.

— Você pensa que está passando por algo parecido?

Ele parou para pensar, sua respiração também, e só depois de um instante que tomou ar negou.

— Não.

No entanto, ele queria que ela fizesse de novo a pergunta, só assim para contar a verdade.

Diria que era exatamente como se sentia, que ele enxergava o mundo como grande demais, mas que ultimamente ele se tornou tão pequeno que desconhecia qualquer lugar onde pudesse pertencer, onde pudesse chamar de lar. Onde pudesse ser ele mesmo de novo.

Luzia infelizmente não fez a pergunta, e Baltazar com decepção trocou de assunto com um sorriso fingido. Ele estava ficando bom nisso.

— Ainda quer minha companhia até a cidade? Acho que tenho que parar de ser medroso.

Ela acenou com os lábios curvados, como se sua presença fosse importante. A partir daí não tiveram mais essa conversa melancólica, Baltazar imaginou que talvez ela não queria falar dela quando se tratava daquele assunto, e por isso não insistia que ele falasse também já que ele poderia pedir que ela compartilhasse algo.

Ambos saíram juntos tendo conversas aleatórias e menos pesadas. Ela era leve, fácil de levar o assunto e muito atenciosa. Parecia gostar de falar tanto quanto de sorrir e Baltazar ouvia, quase se esquecendo completamente de onde estava. Como se não importasse.

No entanto, ele sentiu medo, ficou olhando para os lados para ver quem o olhava, e procurava por pessoas nas ruas que passava.

Como se a qualquer momento pudesse ser desmascarado.

Seus olhos terrosos tentavam começar nela e terminar também, mas ele sempre se pegava olhando para o céu ou pros arredores como se buscasse algo que não estivesse ali, sempre alheio demais.

Tentava ajudá-la a levar os mantimentos e contribuir quando queria na conversa assim se passou naquela tarde, e nas muitas outras que vieram até ele descobrir que ela sentia algo por ele.

Baltazar só saiu de seu torpor quando Menel segurou em seu ombro.

— Pai?

Sobressalto, se virou para seus filhos, ao passar a mão pelo pescoço deixou um pequeno sorriso surgir em seus lábios, mas era apenas fingimento.

— Deixei minha mente vagar por um momento, desculpe.

Menel apenas assentiu, e Lira continuou a observar a cidade com atenção e curiosidade, parecendo uma criança quando vira doce pela primeira vez, seu brilho nos olhos contagiava seu peito.

Baltazar desejava estar na mesma euforia, mas apenas se sentia fora do lugar, e Menel parecia envergonhado, com medo das pessoas enquanto seus passos estavam incertos.

Baltazar então se culpou novamente por tirá-los dessa sensação de pertencimento, os privando de conhecerem o mundo e as pessoas. Mas como seria diferente em sua situação? Que outra escolha ele tinha? Se punia ao mesmo tempo que tentava se enganar, e seguiu em frente. As crianças logo atrás com Fedor que foi interrompido de tomar um gole de água em um bebedouro.

Na placa da cidade dizia "cuidado, não saia a noite" e embaixo estava escrito "Bem vindo a Montes Claros".