Localização; Calisto
Baltazar
No alvorecer, Baltazar estava com os olhos fundos, a visão embaçada e uma sonolência querendo se apossar de seu corpo.
Com toda coragem que restava, jogou a água de seu odre no rosto para despertar, e se levantou com a ajuda de uma vara que descansava na parede. Seu joelho velho demorou para responder aos seus comandos, mas logo a dormência diminuiu.
Espiando pela janela, se deparou com uma estrada sem nenhuma alma viva, não havia vozes, choros, gritos, nada. Não se parecia com a cidade em que estava ontem.
Lendas diziam que fantasmas eram o oposto da luz, desfrutavam melhor da noite, usando-a para cometer as atrocidades com mais facilidade, e durante o dia descansavam.
Não tão convencido dessas histórias, Baltazar resolveu investigar, apesar de na maioria das vezes ser prudente, não suportava presumir assuntos mais sérios com tanta frieza, tinha que examinar com seus próprios olhos.
Lançando um último olhar nas crianças dormindo profundamente, hesitou, em seguida atravessou a porta sentindo a brisa da manhã.
De um lado da rua não se via nada, as casas simples estavam abandonadas, sem vestígio de existência, os poços eram secos como se nem vida tivesse ali um dia. As trepadeiras cobriam edifícios sem delicadeza e ameaçavam forrar a cidade inteira.
Inquieto, ele andou alguns passos para ver o que mais encontrava, parte dele se perguntava como esse lugar está tão caótico? Como aquelas pessoas morreram e se tornaram fantasmas? E o que comandava aquele mal que pesava o ar e tornava-o opressor mesmo estando deserta.
Não parecia ser algo simples de se desvendar, curioso, ele bateu em várias casas para saber se os espíritos o atendiam. O ranger das madeiras antigas que pisava e as janelas quebradas, traziam pontadas desde a região da sua nuca até a ponta de sua espinha.
Após horas repetindo as mesmas ações, de ir até uma casa, chamar por moradores, bater e ir embora, se cansou.
—Droga. — Se afastando do batente da porta perguntou a si mesmo — Para onde será que os fantasmas vão uma hora dessa?
Um barulho soou, e Baltazar se virou até a direção onde ouviu, ele podia jurar que se parecia com uma pisada que logo foi silenciada no mesmo instante, como se quem estivesse andando por ali soubesse que tinha sido descoberto.
Baltazar olhava para todos os lados, preparado para qualquer movimento, se fosse um fantasma tinha uma carta na manga, ele cerrou os dedos no livro grosso que trouxera consigo e esse foi o gatilho para ser atacado com tanta agilidade que o atordoou.
Ainda assim conseguiu se defender por pouco e parou o golpe que vinha em direção a sua cabeça, seu livro bloqueou uma arma enfeitiçada que atravessaria seu olho. A precisão e força colocadas eram certamente bem articuladas. E o fato da arma ser do tamanho de uma pena e da espessura de um graveto era ainda mais intrigante. Seu inimigo tinha uma vantagem: era veloz.
Cauteloso, disse.
— Talvez devesse se revelar, — sua voz estava tensa, e ele pedia aos deuses que seu inimigo não percebesse, — uma conversa cara a cara soa melhor.
Como se dissesse não, outro ataque foi dirigido e Baltazar usou seu livro novamente, a essa altura seu guia de viagem estava todo danificado, mas Baltazar não podia se importar menos.
Naquele momento, ele se perguntou o que aconteceria se aquela quase agulha o atingisse. Ele sabia que deveria ter algum poder dentro dela, o suficiente para deteriorar o corpo e a mente, talvez fosse fatal. Contudo, não tinha certeza.
— Não quero problemas, — contou tentando descobrir de onde os golpes vinham e deu alguns passos para trás, — não sou fantasma e sei que também não é. A essa altura um fantasma já teria me devorado se eu olhasse em seus olhos.
Pela forma como falava poderia soar relaxado, mas as mãos de outras pessoas nunca foram confiáveis para segurarem as suas. E só os deuses sabiam como suas costas estavam suadas.
Baltazar queria encontrar a saída só depois de entender como a cidade funciona. Assim poderia vir a calhar se por acaso ele tivesse que vir no local de novo. No entanto, sua busca foi interrompida, ele tinha certeza que não era alguém tolo que o observava, uma pessoa que não reconhecesse a cidade não viria com uma arma tão letal. Por isso, ele sabia exatamente com quem estava lidando.
— Bruxa, apareça.
Havia espécies diversas em Adira, todas inconfundíveis, até magos e bruxos que eram semelhantes aos humanos tinham suas distinções, os magos tinham cheiros fortes, certas vezes de poeira, terra molhada e outras vezes mais fortes como cheiros inigualáveis de magia.
As bruxas tinham uma presença, belezas indescritíveis, e um cheiro que seus feitiços carregavam, seja de chá, mato ou até mais podre como de carniça, dependia de que papel eles desenhavam no mundo, esse em questão exalava um cheiro forte, mas nem tanto, era de sangue, seus feitiços certamente vinham de sacrifícios.
Baltazar se endireitou, sabendo que não estava lidando com pouca coisa.
— Ou cada um pode ir pro seu caminho, — sugeriu — estou apenas de passagem.
Se fosse em outra época ele não se importaria de enfrentar o inimigo, tentar entender a cidade e resolver o problema. Mas não podia se dar ao luxo de tentar ser heroico assim. Nem tinha muito tempo.
O melhor a se fazer era se tornar prudente de novo.
Ele recuou e disse.
— Sou apenas humano…
— Não me subestime! — interrompeu uma voz feminina que apontava uma arma para Baltazar.
Ele levantou as mãos e a analisou com uma expressão contorcida, era apenas uma menina, talvez da idade de Lira, mas ainda assim não parecia ingênua e indefesa. Suas feições eram feias para ele, e ela cerrava os dentes como um cachorro pronto para mordê-lo.
— Sei o que é, é quem é! Não precisa de cerimônia.
Baltazar empalideceu, ele já esperava que fosse descoberto, mas não pensou que fosse dessa maneira, nessa situação, por uma menina que se aproximava corajosamente com uma arma direcionada a ele. Ela percebeu seu atordoamento e parou.
— O que veio fazer aqui? — Estava com a testa franzida, uma grande palidez e a voz elevada.
— Vim apenas de passagem… Não! Meu destino era outro, na verdade, Avalon, mas cai aqui por engano.
— Aqui não é um buraco para se cair. — avisou — Não deve vir até esta Vila!
— Sei disso agora.
— Está sozinho? — percebendo a hesitação que pousava em seus ombros, continuou — Não minta para mim.
— Há duas crianças em uma das casas.
Outra voz cortou o ar, era masculina, e jovem, e não demorou para Baltazar conhecer o interruptor. O homem andava com uma bengala, olhava para o chão, mas parecia não enxergar nada, sua visão estava consumida pelo branco que se misturava com a pupila e a íris de seus olhos. Também era um bruxo, um bruxo que não via a luz do dia ou a escuridão da noite.
Baltazar estava interessado em saber como esse jovem cego sabia de Lira e Menel, mas a que enxergava não.
— Como ele…
— Meu esposo vê a alma das pessoas! — respondeu a garota como se soubesse o que pensava.
— Esposo? Almas?
— Acalme-se, Genevieve. Há apenas um homem de alma pura à nossa frente. — o rapaz posicionou suas mãos pálidas na arma e a abaixou.
O olhar que trocou com sua mulher foi carinhoso, ele sorriu e pareceu ver quando ela revirou os olhos e depois assentiu quando relaxou a postura.
— Sou Malcom. — ele estendeu a mão que Baltazar aceitou desconfortavelmente e apertou — Sabemos quem é você, não precisa se apresentar. Não há como não saber.
Quem ele é. tinha medo da resposta, por isso não se apresentou para não ser corrigido, apenas ficou em silêncio enquanto o vento soprava o resto das três almas que estavam paradas ali.
O homem voltou a falar. — Porque de todos os lugares para se perder se deparou com esse?
— Acho que falhei na escolha da encruzilhada… — pensava alto enquanto Genevieve e Malcom franziam a testa — bom entrei sem querer e agora quero sair. Se importariam?
— Não seja deselegante, não combina com o senhor.
— Genevieve! — protestou o marido.
A esposa ignorou e continuou a encarar com olhos de gavião, Baltazar estava confuso.
— Não entendo.
— Quem são as duas crianças? E porque está voltando para Avalon? Não há nada além de morte lá…
— Meu filhos — ele respondeu sem querer. — os machucou?
Ele nem se deu conta de que tinha revelado o parentesco, apenas se preocupou com a segurança dos dois, Malcom então respondeu com um sorriso amigável.
— Não os machuquei, nem consegui passar pela porta na verdade. Os dois estavam adormecidos.
Baltazar acenou, querendo fugir e ir até a casa para verificar, não pensava direito naquele momento, principalmente quando olhava para a mulher fria a sua frente.
— Deveria agradecer a nós por poupá-los, a sorte é que meu marido quis me acompanhar nessa caçada e investigar, senão mataria os três sem remorso algum enquanto os vi vagar pela cidade.
— Caçada, o que isso quer dizer? — era a primeira vez que Baltazar ouvia uma raça dizer algo assim. Uma leve curiosidade surgiu.
— Somos bruxos, mas sempre vamos ver como a cidade fantasma está. Às vezes forasteiros se perdem nas estradas e tentamos assustá-los para que corram para fora. Como foi ontem quando o seguimos, assistimos vocês entrarem já escurecendo, eu pensei que fosse suas mortes, então vinhemos hoje de manhã para verificar, é a hora onde as almas se dispersam.
— Agora sabemos quem e o porquê sobreviveu a um dia nessa cidade. Não é para qualquer um.
No fim o casal sabia sobre os três e estiveram perseguindo-o, mas desde quando? Tanto ela quanto ele sabiam de quem ele se tratava o vendo agora, e só não o mataram porque o bruxo deveria ter um poder capaz de ver a aura das pessoas mesmo cego.
Baltazar não sabia o que falar, queria fazer um tanto de perguntas, mas estava receoso. Como sair? Como o bruxo tinha esse poder? O que tinha na cidade? O que eram os fantasmas e porque eles se dispensaram durante o dia. No entanto, a única pergunta que fez foi a que mais precisava saber.
— Vocês conhecem uma bruxa chamada Agnes?
O questionamento foi tão súbito que ambos piscaram e depois se olharam, como se conversassem em silêncio. O que era estranho quando um dos dois não podia enxergar nada.
Baltazar esperou e após alguns momentos ouviu dela.
— Porque a procura?
Ele ficou sem resposta, mas pensou mais rápido.
— Conhecem ela então?
O casal parecia não querer colaborar facilmente, talvez a conhecessem e eram próximos afinal eram todos bruxos, ou talvez ela fosse tão perigosa que não queriam se envolver. Ou os dois. Ele tinha que pensar em uma desculpa convivente
— Ela conhece alguns feitiços que tenho interesse, preciso de ajuda para conseguir algo.
— Não subestime nossa inteligência. — Genevieve reclamou. — Deve saber como funciona para nós bruxos. Informações vem com um preço, poder, magia…
Malcom sorriu. — Se quer ajuda deve negociar.
— Não tenho dinheiro.
— Tem esse livro. — Genevieve apontou — O protegeu dos meus ataques.
— Não posso entregá-lo.
— Quarenta folhas, quarenta folhas é tudo que precisamos.
Malcom dizia como se soubesse do que estivesse falando, por mais que Genevieve parecesse perigosa. Quem de fato era mais assustador era Malcom. Ele parecia inocente, ingênuo, mas carregava uma aura sombria e sábia que arrepiava a espinha de Baltazar.
Ele olhou para as folhas amareladas por um tempo se questionando o que os bruxos fariam com apenas uma delas, eles saberiam por onde Baltazar andava se a tivessem? Eles poderiam de alguma forma controlar, ou era uma desculpa para logo depois se ter o livro? Fosse o que fosse ele podia viver sem um folha.
— Certo…
Doeu ouvir o barulho da folha se rasgar, e dilacerou Baltazar entregar a mesma para Genevieve que a analisou com desinteresse e depois a queimou com seus próprios dedos. Como se não fosse nada.
Baltazar encarou a cena boquiaberto, quase pronto para reclamar da inutilidade que a folha teve para ela, mas ao observá-la, notou uma jovem revigorada, a palidez em sua pele desaparecendo e a deixando mais corada. Como se de repente ganhasse vida.
Malcom massageou o ombro de sua esposa ao dizer.
— Agnes é seu sobrenome.
— Disso eu sei.
— Não existe um lugar fixo para encontrá-la, — continuou — mas da última vez que trombamos, ela ia em direção a Avalon, ela paira em Montes Claros bem ao norte, em uma lugar que o que mais verão são bruxos tentando atravessar a barreira.
— Porque? O que ganham com isso?
— Já disse o que tem que saber sobre ela. A saída fica para lá, — apontou Genevieve para onde acabara de vir. — Agora saia.
Baltazar não esperou ouvir de novo, acenou e deu passos largos para a casa que deixou seus filhos, olhou para trás o tanto de vezes que foi necessário para acreditar que eles não iriam segui-lo, e sua respiração só se acalmou quando os encontrou como havia deixado.