Fukuoka - 2048 - 12:34 PM
UM ANO E MEIO APÓS O APOCALIPSE
Kazuhiko estava sentado em meio às ruínas do que um dia foi seu quarto, observando o céu alterado através do teto parcialmente destruído. Sua voz ecoava em seus pensamentos, relembrando os eventos que mudaram tudo.
"É engraçado como tudo pode mudar tão rápido. Há pouco mais de um ano, eu era só um garoto normal preocupado com besteiras do dia a dia. Agora... bem, agora eu sou um dos sobreviventes do literal fim do mundo.
Primeiro veio a Guerra Santa. Miguel e seus seguidores quase conseguiram destruir tudo em que acreditávamos, eu fui forçado a lutar, eu ainda lembro o dia que me tiraram Akiko em apenas um piscar de olhos, eu queria fazer justiça naquela época. Depois, mal tivemos tempo de respirar, e boom - Apocalipse. Não aqueles apocalipses de filme onde você tem um herói salvando o dia no último segundo. Não... foi muito pior.
As placas tectônicas se moveram como se fossem papel sendo amassado. Continentes inteiros mudaram de lugar. O céu... bem, ele nem parece mais o mesmo céu que conhecíamos. Tem dias que acordo e ainda levo um susto quando olho pela janela.
E o mais estranho de tudo? Kokuei. Aquele idiota que não calava a boca, que vivia fazendo piadas sem graça nos piores momentos possíveis... Simplesmente sumiu. Nem um pio. Nada de comentários sarcásticos, nada de provocações. Às vezes me pego quase sentindo falta daquelas piadas horríveis dele. Quase.
O mundo que conhecíamos... acabou. Não tem outra palavra pra isso. Cidades inteiras desapareceram. Outras emergiram do oceano como se fossem ilhas perdidas voltando à superfície. A população mundial foi reduzida drasticamente. Os poucos de nós que sobrevivemos... bem, estamos tentando reconstruir algo do zero.
Miyako continua por perto. Ela é uma das poucas coisas que me mantém são nessa loucura toda. Mãe também, claro. E meu pai... bem, ele está no Inferno agora. Literalmente. Às vezes me pego pensando se ele está bem por lá, tendo que lidar com demônios toda hora.
A ironia é que depois de tanta destruição, depois de literalmente enfrentarmos o fim do mundo... aqui estamos nós, preocupados com coisas como conseguir comida para o dia seguinte ou encontrar um lugar seguro para dormir.
E Kokuei... cara, sério mesmo, nunca pensei que diria isso, mas até aquelas piadas sem graça dele fariam esse mundo parecer um pouco mais normal agora. Mas não... silêncio total. Até parece que ele resolveu tirar umas férias prolongadas na minha cabeça.
Um ano e meio... parece uma eternidade e ao mesmo tempo parece que foi ontem. O mundo está irreconhecível, mas de alguma forma, continuamos seguindo em frente. Porque é isso que humanos fazem, não é? Sobrevivemos. Nos adaptamos. Mesmo quando o próprio planeta decide dar uma chacoalhada e mudar tudo de lugar.
E aqui estou eu, Kazuhiko Shogo, com 18 anos, quase 19. Um ex-estudante normal, ex-guerreiro do apocalipse, atual... bem, atual sobrevivente, eu acho. Tentando fazer sentido de um mundo que não faz mais sentido nenhum.
Pelo menos não tenho mais que ouvir as piadas do Kokuei sobre isso tudo..."
O céu, antes de um azul familiar, agora apresentava uma coloração diferente, resultado das alterações atmosféricas causadas pelo deslocamento das placas tectônicas. Novos continentes haviam surgido, outros haviam submergido, e a própria geografia do planeta estava irreconhecível.
Em um dos poucos prédios habitáveis da cidade, Kazuhiko agora observava a paisagem alterada através de uma janela improvisada. O horizonte era pontuado por acampamentos de refugiados e estruturas temporárias.
Miyako entrou no cômodo, carregando suprimentos recém-distribuídos pelo centro de racionamento.
Miyako: — As filas estão aumentando novamente. — Ela comentou, sua voz cansada — Parece que o último terremoto afetou as rotas de distribuição no continente.
Kazuhiko assentiu, sem desviar o olhar da janela.
Kazuhiko: — Já faz um bom tempo... — Ele murmurou — E ainda parece que foi ontem que o mundo que conhecíamos deixou de existir.
Misao, que estava preparando uma refeição com os poucos ingredientes disponíveis, juntou-se à conversa.
Misao: — O mundo está diferente, sim. — Ela disse, sua voz serena — Mas a humanidade é resiliente. Nos adaptamos, sobrevivemos.
O som distante de máquinas pesadas ecoava pela cidade - equipes de reconstrução trabalhando incansavelmente para recuperar o que podiam da infraestrutura destruída.
Miyako: — Ouvi dizer que em algumas regiões, já conseguiram estabelecer novas rotas comerciais. — Ela comentou, tentando soar otimista — Através dos novos oceanos formados.
Kazuhiko finalmente se virou da janela.
Kazuhiko: — E também ouvi que estão mapeando as novas formações continentais. — Ele acrescentou — Dizem que algumas áreas que emergiram são habitáveis.
Misao serviu a refeição modesta, o vapor subindo no ar frio do ambiente.
Misao: — Um passo de cada vez. — Ela disse suavemente — É assim que reconstruiremos nosso mundo.
O silêncio que se seguiu foi interrompido pelo som familiar de uma sirene - o alerta para mais um dos frequentes tremores que ainda sacudiam a região.
Era assim a nova realidade. Um mundo transformado, onde a humanidade lutava não apenas para sobreviver, mas para se adaptar a uma Terra que mal reconheciam. As guerras haviam acabado, mas seus efeitos continuariam a moldar a existência de todos por gerações.
Kazuhiko se virou para Miyako, que estava organizando alguns suprimentos.
Kazuhiko: — Ei, Miyako... — Ele hesitou por um momento — Como estão Ryuji e Rafael? Faz tanto tempo que não consigo visitar o covil dos anjos caídos.
Miyako parou o que estava fazendo, um pequeno sorriso surgindo em seus lábios.
Miyako: — Ah, eles estão... bem, sendo eles mesmos. Ryuji continua tentando manter alguma ordem naquele lugar caótico. — Ela riu suavemente — Você não vai acreditar, mas ele transformou o covil em uma espécie de refúgio para sobreviventes.
Kazuhiko ergueu as sobrancelhas, surpreso.
Kazuhiko: — Sério? Ryuji?
Miyako: — Pois é. — Ela assentiu, divertida — Rafael tem sido uma boa influência nele. Os dois trabalham juntos agora, usando seus poderes para fortalecer as estruturas do covil e proteger os refugiados.
Ela fez uma pausa, lembrando-se de algo.
Miyako: — Na última vez que os vi, Ryuji estava tentando ensinar Rafael a ser mais... como ele diz... "durão". — Ela imitou a voz grave de Ryuji — E Rafael estava tentando ensinar Ryuji a ser mais paciente. Você precisava ver, é hilário.
Kazuhiko não conseguiu conter uma risada.
Kazuhiko: — Consigo imaginar perfeitamente. Ryuji tentando ensinar alguém a ser durão enquanto Rafael provavelmente está citando algum texto antigo sobre a importância da serenidade.
Miyako: — Exatamente! — Ela sorriu — Mas sabe que está funcionando? Os dois se complementam de uma forma estranha. O covil nunca esteve tão organizado... bem, dentro do possível, considerando que estamos falando de um grupo de anjos caídos.
Kazuhiko balançou a cabeça, ainda sorrindo.
Kazuhiko: — Quem diria... — Ele murmurou — Depois de tudo que aconteceu, Ryuji e Rafael acabaram se tornando uma dupla e tanto.
Miyako: — É... — Ela concordou, seu olhar suavizando — Acho que às vezes precisamos passar pelo fim do mundo para descobrir quem realmente somos.
Kazuhiko se levantou, ajeitando sua jaqueta surrada.
Kazuhiko: — Sabe de uma coisa? Acho que está na hora de fazer uma visita a eles.
Miyako o olhou com surpresa.
Miyako: — Agora? Com esse tempo instável?
O céu estranho acima deles pulsava com tons de verde e roxo, um fenômeno comum desde que as placas tectônicas haviam se reorganizado.
Kazuhiko: — Por que não? — Ele deu de ombros — Não é como se tivéssemos muito mais o que fazer hoje. Além disso... — Ele hesitou — Talvez seja bom ver alguns rostos familiares.
Misao, que estava ouvindo a conversa, interveio.
Misao: — Vão. — Ela sorriu gentilmente — Só tomem cuidado com as áreas instáveis no caminho.
Kazuhiko e Miyako se prepararam para sair, pegando suas máscaras de proteção - um item essencial desde que a composição do ar havia mudado em algumas regiões.
Enquanto caminhavam pelas ruas destruídas de Fukuoka, Kazuhiko não pôde deixar de notar como alguns prédios pareciam ter sido torcidos como papel, congelados em posições impossíveis após o rearranjo tectônico.
Miyako: — Está pensando nele de novo, não é?
Kazuhiko: — Quem?
Miyako: — Seu pai. No Inferno.
Kazuhiko suspirou, chutando uma pedra do caminho.
Kazuhiko: — É estranho, sabe? Antes eu me preocupava com ele estar morto. Agora me preocupo com ele estar... bem, literalmente no Inferno, lidando com demônios e sabe seu lá o que mais...
Miyako: — Ele é forte. Sempre foi. E agora... — Ela sorriu — Agora ele deve ter um propósito lá embaixo.
Um tremor leve sacudiu o chão, fazendo-os parar momentaneamente. Era algo comum agora - a Terra ainda se ajustando às mudanças drásticas.
Kazuhiko: — Sabe o que é mais irônico? — Ele riu sem humor — Depois de tudo que passamos, às vezes me pego sentindo que aqueles dias de batalha eram mais simples. Pelo menos sabíamos quem eram nossos inimigos.
Miyako: — E agora nosso maior inimigo é...
Kazuhiko: — A própria sobrevivência.
Eles continuaram caminhando em silêncio, passando por grupos de pessoas reconstruindo suas vidas entre as ruínas. O covil dos anjos caídos não estava longe agora - uma das poucas estruturas que havia resistido relativamente bem às mudanças, mesmo não sendo conhecido por ninguém, ela era uma boa montanha de rochas no meio do mar, mas provavelmente deve estar lotada, já que virou um refúgio.
Ao chegar, Kazuhiko observava o horizonte alterado, onde o mar de Fukuoka se estendia de forma diferente do que costumava ser. O covil dos anjos caídos ainda persistia lá, parcialmente submerso entre as novas formações rochosas que emergiram após o cataclismo.
Kazuhiko: — Faz tempo que não vejo aqueles dois... — Ele murmurou, seus olhos fixos no horizonte distante.
Miyako, que estava ao seu lado, assentiu silenciosamente. O vento forte agitava seus cabelos enquanto observavam as ondas violentas batendo contra as rochas recém-formadas.
Kazuhiko fechou os olhos por um momento, concentrando-se. Um brilho suave emanou de suas costas, e suas asas negras se materializaram.
Miyako: — Vai mesmo fazer isso? O mar está mais instável que o normal hoje.
Kazuhiko abriu os olhos, um pequeno sorriso se formando em seus lábios.
Kazuhiko: — Depois de enfrentar o literal fim do mundo, algumas ondas bravas não são nada. — Ele esticou as asas, testando-as — Além disso, ainda consigo usar os meus pecados se as coisas ficarem muito ruins.
Ele deu alguns passos para trás, preparando-se para levantar voo.
Kazuhiko: — Quer que eu dê algum recado para eles?
Miyako balançou a cabeça.
Miyako: — Só... tome cuidado. Essas alterações tectônicas ainda estão causando turbulências atmosféricas imprevisíveis.
Kazuhiko assentiu e, com um impulso poderoso, lançou-se ao ar. Suas asas negras cortavam o céu alterado, enquanto ele navegava através das correntes de ar instáveis em direção ao covil distante.
Lá embaixo, o oceano revolto parecia mais selvagem que nunca, com redemoinhos e correntes que não existiam antes do Apocalipse. Mas Kazuhiko havia aprendido a dominar seus poderes - tanto o voo quanto suas transformações - e mantinha um curso firme apesar das condições adversas.
O covil dos anjos caídos foi ficando maior à medida que ele se aproximava - uma estrutura imponente que agora servia como refúgio, parcialmente exposta acima da água devido às mudanças geológicas.
Assim que Kazuhiko pousou na entrada do covil, os anjos caídos que faziam a guarda imediatamente se curvaram em respeito.
Guarda: — Kazuhiko-sama! — Um deles exclamou, seu rosto iluminando-se com reconhecimento — É uma honra tê-lo aqui novamente.
Outros guardas se aproximaram, todos demonstrando o mesmo respeito. Kazuhiko ainda se sentia um pouco desconfortável com toda essa reverência, mas entendia o motivo - suas palavras haviam dado esperança a esses guerreiros quando eles mais precisavam.
Kazuhiko: — Como estão as coisas por aqui?
Guarda: — Sobrevivendo, senhor. Cada dia é uma nova batalha, mas suas palavras ainda ecoam em nossos corações. "Mesmo que o mundo acabe, continuaremos lutando."
Kazuhiko observou o interior do covil enquanto era guiado. O que antes era um local de treinamento e preparação para guerra agora havia se transformado em um verdadeiro refúgio. Pessoas feridas descansavam em macas improvisadas, algumas com bandagens ensanguentadas, outras apenas exaustas da luta pela sobrevivência.
No centro de uma das câmaras principais, Rafael estava ajoelhado próximo a uma criança ferida. Seu cabelo, agora na altura dos ombros, balançava levemente enquanto ele concentrava sua energia curativa. Seu rosto, antes sempre sereno e quase infantil, agora carregava uma seriedade que Kazuhiko nunca havia visto antes.
Rafael terminou o tratamento e se levantou, virando-se ao sentir a presença familiar.
Rafael: — Kazuhiko... — Sua voz estava mais grave, mais madura — Finalmente decidiu nos visitar.
Não havia o costumeiro tom inocente e imaturo em sua voz. O Apocalipse havia mudado a todos, até mesmo o sempre otimista Rafael.
Kazuhiko: — Rafael... você está...
Rafael: — Diferente? — Ele completou, um pequeno sorriso surgindo em seu rosto cansado — Um ano e meio pode mudar muito uma pessoa. Principalmente quando você passa cada dia tentando salvar vidas e vendo algumas se perderem, não importa o quanto você tente. Eu posso ser a 'Cura de Deus', mas eu ainda tenho meu limite de alcance...
Kazuhiko: — Entendo... Mas as pessoas devem ter achado que você era o novo messias quando viram que tu podia curar tudo.
Rafael dava uma risada fraca, enquanto terminava de curar uma criança.
Rafael: — Aqui está, irmã... Tu não vai sentir mais dor no seu braço.
Criança: — Obrigado, moço!
A criança ia embora, agora com Rafael se levantando, mantendo sua postura ereta.
Rafael: — Aquela criança pode achar que sou Jesus... Mas sempre tem aqueles que julgam você, dizendo que eu era inútil ter um poder desses se eu não podia salvar o mundo.
Kazuhiko: — Haha... Esses são os primeiros a falar esse tipo de coisa, ninguém é onipresente, e todos nós temos nossos limites, não deixe que estas palavras te afetam, você é uma benção pra este novo mundo.
Ele tocava no ombro de Rafael, numa tentativa de reconfortar ele, junto com um leve sorriso.
Kazuhiko: — Vamos reerguer juntos, ok?
Rafael: — Certo...
Kazuhiko olhava pro Rafael mais uma vez, e via alguém que parecia ser o Ryuji, mas ele estava de frente à um mapa mundi depois do apocalipse.
Kazuhiko: — Vou falar com seu comparsa agora, continue firme, Rafael.
Rafael acenava com a cabeça, indo em direção de mais pessoas necessitadas, Kazuhiko dava alguns passos, até chegar no Ryuji, que estava de costa pra ele.
Kazuhiko: — Hmm... Ryuji? É você?
Ryuji se virou lentamente, revelando um rosto mais endurecido pelo tempo, com uma barba malfeita que crescia de forma irregular. Seus olhos, antes sempre prontos para uma briga, agora carregavam o peso da responsabilidade.
Ryuji: — Kazuhiko... — Sua voz estava mais rouca que o normal — Achei que tinha esquecido da gente aqui embaixo.
Ele gesticulou para o enorme mapa na parede, onde linhas irregulares mostravam a nova configuração do planeta. Praticamente todos os continentes haviam se fundido em uma única massa de terra, com apenas algumas ilhas isoladas persistindo.
Ryuji: — Olha só pra isso... — Ele passou a mão pela barba — Um novo supercontinente. Como se a Terra quisesse começar tudo do zero também.
Kazuhiko se aproximou do mapa, observando as marcações que Ryuji havia feito, indicando zonas habitáveis, áreas de risco e rotas de suprimentos.
Ryuji: — Sabe o que é mais irônico? — Ele soltou uma risada seca — Depois de tanto lutar para proteger o mundo que conhecíamos, acabamos tendo que proteger um que nem reconhecemos mais.
Ele apontou para uma região específica do mapa.
Ryuji: — Aqui era a América do Sul. Agora está conectada diretamente com a África e a Ásia. As pessoas estão chamando de "Nova Pangeia". Como se isso importasse... o que importa é que mal sabemos quais áreas são seguras para habitação.
Kazuhiko aproximou-se mais do mapa, analisando as marcações detalhadas que Ryuji havia feito.
Kazuhiko: — E como vocês estão lidando com isso? Com toda essa... reorganização?
Ryuji suspirou pesadamente, passando a mão pelos cabelos.
Ryuji: — Dia após dia. Rafael cuida dos feridos, eu organizo as patrulhas e expedições. — Ele apontou para algumas áreas marcadas em vermelho no mapa — Essas regiões aqui são zonas mortas. Radiação, gases tóxicos, solo instável... perdemos três equipes de reconhecimento antes de entender isso.
Seu rosto endureceu por um momento, e Kazuhiko percebeu que cada marca no mapa provavelmente carregava uma história, uma perda.
Ryuji: — As áreas em verde são habitáveis. Por enquanto. — Ele continuou — Mas com as placas tectônicas ainda se ajustando... — Ele balançou a cabeça — O que é seguro hoje pode virar um pesadelo amanhã.
Kazuhiko notou várias anotações espalhadas pela mesa, algumas com a letra organizada de Rafael, outras com a escrita mais agressiva de Ryuji.
Ryuji: — Mas sabe o que é mais louco? — Ele se virou para Kazuhiko — As pessoas continuam vindo. Refugiados de todos os lugares. E de alguma forma... — Ele olhou ao redor do covil — De alguma forma, estamos conseguindo fazer isso funcionar.
Kazuhiko: — Entendo... Você tem alguma estimativa de quando tudo isso pode voltar ao "normal"? Digo, pelo menos pra um estado menos crítico quanto esse.
Ryuji soltou uma risada curta e sem humor.
Ryuji: — Normal? — Ele pegou um dos relatórios da mesa — Segundo nossos geólogos sobreviventes, as placas tectônicas podem levar décadas até se estabilizarem completamente. E mesmo assim... — Ele fez uma pausa, olhando novamente para o mapa — Esse é nosso novo normal agora.
Ele apontou para algumas áreas marcadas em amarelo.
Ryuji: — Essas regiões aqui são o que chamamos de "zonas de transição". Áreas que estão lentamente se tornando habitáveis. Rafael tem trabalhado com alguns cientistas, tentando entender como a composição do ar e do solo mudou.
Kazuhiko percebeu marcações de datas e observações detalhadas em várias partes do mapa.
Ryuji: — O mais próximo de "normal" que podemos esperar é aprender a viver nesse mundo novo. — Ele coçou a barba malfeita — Temos comunidades se formando nas áreas seguras. Pessoas reconstruindo, adaptando... — Ele deu um meio sorriso cansado — Humanos são teimosos assim mesmo. Jogou um apocalipse na nossa cara e ainda estamos aqui, tentando fazer dar certo.
De repente, uma voz familiar ecoou na mente de Kazuhiko, tão natural e casual como se nunca tivesse partido.
Kokuei: (Ah, então agora você entende... Engraçado como a clareza só vem depois que tudo desmorona, não é?)
Kazuhiko congelou por um momento, seus olhos se arregalando levemente. Depois de tanto silêncio, Kokuei simplesmente voltava assim, como se estivesse apenas fazendo um comentário sobre o tempo.
Kokuei: (O que João fez... foi claro. O resultado que ele esperava não veio, o apocalipse não se concluiu como deveria. E num momento de desespero, ele tentou completar a profecia com suas próprias mãos...)
Kazuhiko: — Foi nossa culpa afinal, nós causamos tudo isso, não sabíamos da existência de João, e por causa disso, ficamos distraídos com os cavaleiros do apocalipse, invés de ter focado no verdadeiro inimigo, o Falso Messias.
Kokuei: (Um mundo partido pela metade, preso entre o que era e o que deveria ter sido. Nem destruído por completo, nem salvo de verdade. Essa foi a herança que João nos deixou.)
Kazuhiko: — Mas por quê?! Por quê tudo isso tinha que acontecer, justo quando queria apenas uma vida normal?!
Ryuji olhava pra Kazuhiko, entendendo desde o primeiro encontro que eles tiveram, que tinha algo dentro de Kazuhiko, uma entidade.
Ryuji: — Huh... Ele voltou?
Kazuhiko ficava parcialmente ofegante, já que realmente não entendia o motivo pelo Kokuei ter ficado quieto por tanto tempo.
Kazuhiko: — Afinal, o que você quer, demônio?! Você me abandonou nesse lugar por 1 ano! Sem me dar satisfações ou comentários sarcásticos, e do nada, quando resolvo sair do meu lugar de "conforto", você fala sobre o que João fez?!
Kokuei ficava quieto por um momento, tentando juntar as palavras certas para tudo aquilo.
Kokuei: (Olha, não vou me justificar perante a nenhuma acusação sua... Porém, você sabe que nosso objetivo é o mesmo, recriar este mundo inteiro. Eu me conectei por quê eu senti que tu teria essa ambição necessária pra tal feito.)
Kazuhiko: — E do que adianta tentar mudar alguma coisa agora?! Está tudo um caos absoluto, se isso que tu queria, então parabéns, você conseguiu o contrário disso!
Kokuei: (Calma, você fala como se eu tivesse culpa, eu sabia exatamente que isso iria acontecer, mas você tem que questionar é... O que João estava querendo ver? Um homem que desceu dos céus, e nasceu como um humano, não pra simpatizar, era pra mudar e dar uma esperança aos humanos, ele fez a mesma coisa que tu está tentando fazer, nós estamos tentando fazer.)
Kazuhiko: — Por acaso... Você está falando do...
Kokuei: (Exatamente, Jesus Cristo. O homem que se tornou um santo após a sua morte, após sua falha ao fazer os humanos enxergarem a verdade de suas vidas, ele subiu para o céu, ou era isso que a história original te espera você acreditar.)
Kazuhiko: — Como assim, aonde você está querendo chegar nisso?
Kokuei: (Você tem ideia do que aconteceu depois? A humanidade o transformou em um ícone sagrado, uma entidade divina acima de qualquer questionamento. Mas há uma verdade que poucos ousam encarar - ele era exatamente como nós, Kazuhiko. Um ser que desceu à Terra com um propósito, que tentou desesperadamente fazer com que os humanos vissem além de suas próprias limitações, que tentou mostrar um caminho diferente. E quando seus esforços não foram suficientes... ele simplesmente se dissolveu na história, como névoa ao amanhecer. João carregava esse conhecimento. Durante milhares de anos, ele mergulhou nessa narrativa, estudou cada detalhe, cada nuance, até que chegou a uma revelação perturbadora.)
Kazuhiko: — Qual revelação?
Kokuei: (Que talvez estivéssemos todos interpretando errado o verdadeiro propósito. Que a salvação universal, instantânea, nunca foi o objetivo real. A verdadeira mudança, a transformação genuína, precisa germinar lentamente, crescer através daqueles que verdadeiramente compreendem sua necessidade. João, em seu desespero, tentou catalisar essa mudança através do apocalipse, forçando uma transformação que deveria ser natural. E assim como Jesus antes dele, seu método estava fadado ao fracasso. Mas agora, olhe ao seu redor com atenção...)
Kazuhiko deixou seu olhar vagar pelo refúgio. Observou cada detalhe: anjos caídos auxiliando humanos feridos, antigas rivalidades esquecidas em nome da sobrevivência, pessoas que antes se considerariam inimigas agora compartilhando o pouco que tinham.
Kokuei: (O que você presencia não é o fim que João planejou, nem é o fracasso total que alguns poderiam pensar. É uma janela de oportunidade única, uma chance de realizar corretamente o que eles tentaram fazer no passado. Não através de grandiosos milagres que ofuscam a visão, nem através de destruição em larga escala que apenas gera mais caos. A verdadeira mudança virá através de pequenas ações, decisões diárias, transformações graduais que se acumulam ao longo do tempo. É curioso perceber que, às vezes, precisamos despedaçar completamente uma estrutura para poder reconstruí-la de forma mais sólida e significativa. Não é irônico como o caos pode ser o catalisador da ordem que sempre buscamos?)
Kazuhiko: — Bem... Mas não podemos simplesmente mudar o destino das coisas. Eu nem sei exatamente aonde começar...
Kokuei: (É aí que você se engana. Jesus não está morto, nem ascendeu aos céus como dizem as escrituras. Ele está desaparecido, Kazuhiko. Em algum lugar deste multiverso devastado, ainda existe o homem que carrega consigo o conhecimento que precisamos. Ele experimentou o mesmo que nós - a frustração de ver seus esforços mal interpretados, a dor de ver seus ensinamentos distorcidos. Ele é a chave.)
Kazuhiko: — Espera... Multiverso? Mas eu pensei que estávamos falando apenas de Terra.
Kokuei: (Há algo que você precisa compreender, Kazuhiko. Jesus não se encontra em nenhum canto deste plano terreno... porque ele jamais completou sua jornada. Ele existe num estado de suspensão, preso no interstício entre nossa realidade e a Grande Dimensão Celestial.)
Kazuhiko: — Dimensão Celestial? Eu já ouvi falar sobre isso, você me contou uma vez, mas faz tanto tempo que não peguei tudo na época...
Kokuei: (Então pra recapitular pra você, existe um reino vastíssimo, um plano de existência que transcende nossa compreensão limitada. Imagine uma teia infinita de realidades, onde cada fio representa um universo completo. Cada um desses universos foi meticulosamente tecido para manifestar uma crença específica. Em um, os deuses nórdicos caminham entre os mortais. Em outro, os Orixás moldam o destino dos homens. E sabe qual é a revelação mais impressionante?)
Kazuhiko aguardou em silêncio, sentindo o peso do que estava prestes a ouvir.
Kokuei: (Nosso universo, esta realidade que habitamos... é o território do Cristianismo. Nunca se perguntou por que, durante toda sua existência, as manifestações de Buda eram tão raras? Por que Shiva e os deuses hindus pareciam tão distantes? Por que os espíritos ancestrais dos nativos americanos nunca responderam aos chamados? A resposta é simples: eles não pertencem a esta realidade. Cada divindade, cada panteão, cada sistema de crenças tem seu próprio universo para governar.)
Kazuhiko: — Então você está sugerindo que, para encontrar Jesus...
Kokuei: (Exatamente. Teremos que atravessar as fronteiras entre os universos. Navegar através de diferentes realidades, cada uma regida por suas próprias leis divinas. Só assim poderemos encontrar pistas sobre seu paradeiro. Ele está lá, Kazuhiko, suspenso entre o tangível e o divino, entre nossa realidade e todas as outras. E para alcançá-lo, precisaremos fazer algo que nenhum ser jamais tentou: mapear o próprio tecido da existência multidimensional.)
Kazuhiko permaneceu imóvel, seu olhar perdido no vazio enquanto processava toda aquela informação. Ao seu lado, Ryuji o observava com uma expressão confusa, tentando entender por que seu companheiro parecia manter uma conversa unilateral, mesmo sabendo da existência da entidade que o habitava.
Kazuhiko: — Isso... isso é demais pra mim agora. Como espera que eu aceite tudo isso assim? Sim, eu consegui derrotar João, mas não fiz isso sozinho. Todos lutaram ao meu lado. Como posso sequer imaginar que sobreviverei ao início de uma jornada dessas magnitude?
Kokuei: (São apenas informações valiosas pra ajudar na nossa futura "aventura". Não estou te obrigando à nada, mas para chegar a dimensão celestial e ter uma mínima chance de encontrar Jesus. existem apenas dois caminhos possíveis. O primeiro... bem, é completamente impossível para um mortal como você. Mas o segundo...)
Kazuhiko: — O segundo?
Kokuei: (O segundo caminho está conectado ao Tártaro. Ou como os mortais preferem chamar: o Inferno. É lá que encontraremos a entrada para a dimensão superior. E é lá também que estão duas figuras que conhecemos bem: seu pai... e Lúcifer, assim como os príncipes que esteve ao seu lado na guerra.)
O silêncio que se seguiu pesava como chumbo. A simples menção daqueles nomes fez Kazuhiko sentir um arrepio percorrer sua espinha. O Inferno. O lugar onde tudo começou, onde as primeiras sementes do caos foram plantadas, agora poderia ser sua única chance de consertar tudo.
Mas, a realidade era dura.
Kazuhiko: — Eu ainda não me sinto na vontade de fazer tais coisas, Kokuei... Eu sei o qual tentador é mudar o mundo para o melhor, mas estou cansado, sabe? Você não sabe como é viver uma vida normal, de um simples mortal que era apenas um colegial, que teve seu mundo destruído com duas simples guerras, eu fico extremamente feliz apenas de ter sobrevivido por tudo isso, e acho que é o suficiente para mim.
Kokuei: *(Você acha mesmo que pode voltar a ser aquele colegial depois de tudo que viu? Depois de tudo que viveu? O conhecimento que você carrega agora... não há como desfazê-lo.)*
Kazuhiko: — Eu sei que não posso voltar atrás, mas isso não significa que preciso continuar avançando em direção ao impossível. Já não basta ter enfrentado duas guerras? Ter visto pessoas morrerem, ter sentido o peso do mundo desmoronando? Você fala como se fosse simples, como se fosse apenas mais uma missão...
Kokuei: *(Simples? Não, nunca foi simples. Mas você está enganado em um ponto crucial - você nunca foi "apenas um colegial". Desde o primeiro momento, desde que nossos caminhos se cruzaram, havia algo diferente em você. Algo que nem mesmo eu compreendi totalmente no início.)*
Kazuhiko: — O que quer dizer com isso?
Kokuei: (Pense bem, Kazuhiko. De todos os mortais neste mundo devastado, por que você sobreviveu? Por que, entre milhões, foi você quem sofreu tal incidente de eu ter entrado em você, me compreender? Você fala em descansar, em se contentar com a sobrevivência, mas no fundo sabe que cada passo que deu até aqui não foi por acaso. Cada batalha, cada cicatriz, cada lágrima derramada... tudo isso faz parte de algo maior.)
Kazuhiko: — Mas eu estou exausto, Kokuei. Fisicamente e mentalmente exausto. Não posso carregar o peso de mais uma missão impossível...
Kokuei: (A exaustão que você sente... é real. Mas também é temporária. O que estou propondo não é uma nova guerra, não é mais destruição. É a chance de finalmente entender o porquê de tudo isso. De descobrir não apenas como mudar o mundo, mas por que ele precisa ser mudado. E talvez... talvez encontrar respostas para perguntas que você nem sabia que tinha... Mas está tudo bem, não precisa ser hoje, não precisa ser amanhã, só saiba que o futuro que deseja não será apenas alguns anos, tu passará toda a sua vida neste mundo quebrado, você pode mudar ela, Kazuhiko, mudar para algo melhor.)
Kazuhiko encarou Ryuji por um momento, percebendo a confusão estampada no rosto do amigo. O silêncio entre eles era denso, carregado de questões não respondidas.
Ryuji: — O que... o que acabou de acontecer? Você estava falando sozinho e...
Kazuhiko: — Nem eu mesmo sei direito, Ryuji. A única coisa que posso te dizer é que Jesus está desaparecido. Não morto, não no céu... desaparecido. E aparentemente, para encontrá-lo, precisaríamos atravessar o inferno. Literalmente. E não só isso... tem toda essa história de diferentes universos e... — ele passou a mão pelo rosto, exausto — só de pensar nisso minha cabeça ferve.
Ryuji: — Parece que está vivenciando um apocalipse em forma de informação na sua cabeça, quer ir pra cozinha tomar um chá pra melhorar a dor na sua cabeça e relaxar um pouco?
Kokuei: (Foi mal, não sou o melhor em achar o momento certo pra dizer tais coisas)
Kazuhiko: — Cala a boca, você pode calar a boca agora...
O jovem passava a mão na sua cabeça, tentando esquecer um pouco de informação antes de seu cérebro explodir.
Kazuhiko: — Enfim, eu adoraria, agora eu vejo por quê a praga que está dentro de mim ficou tanto tempo quieto, ele falou tanta coisa que qualquer cérebro derreteria, e aliás... Desde quando aqui tem uma cozinha?
Ryuji: — Bem, sabe como é, humanos precisam de suas necessidades, então tive que improvisar.
Ryuji soltou uma risada leve, reconhecendo a exaustão no rosto do amigo. Os dois caminharam em direção à cozinha, deixando para trás o peso daquela conversa surreal. O aroma suave do chá começou a preencher o ambiente enquanto Ryuji preparava a bebida.
Kazuhiko se permitiu relaxar um pouco, observando o vapor que subia da chaleira. Era estranho como momentos tão simples como aquele pareciam ainda mais preciosos agora, depois de tudo que havia descoberto. O mundo continuava o mesmo lá fora - quebrado, ferido, necessitando de conserto. Mas por enquanto, naquele momento específico, tudo que importava era o cheiro do chá e a presença reconfortante de um amigo.
A voz de Kokuei permaneceu em silêncio, respeitando o momento de paz que seu hospedeiro tanto precisava. As revelações sobre Jesus, sobre os múltiplos universos e sobre o caminho através do inferno poderiam esperar. Afinal, algumas vezes o maior ato de sabedoria é saber quando parar de falar.
O sol começava a se pôr lá fora, pintando o céu com tons de laranja e vermelho, como se a própria natureza estivesse tentando lembrar que, mesmo nos dias mais difíceis, ainda existe beleza no mundo. E às vezes, isso é o suficiente.
Continua no próximo capítulo.