A tela se ilumina, revelando um estúdio de televisão bem iluminado. No centro, uma mesa de mogno refinado com um tabuleiro de xadrez meticulosamente arranjado. De um lado, um entrevistador de meia-idade, de terno escuro e olhar atento. Do outro, um homem alto, atlético, com olhos verdes penetrantes e um corte de cabelo rente, sem as laterais. Sua barba está bem feita, e sua postura reta transmite confiança.
"Xadrez é um jogo peculiar. Alguns dizem que ele reflete as nossas vidas como um todo. Outros, que é apenas uma distração sofisticada. O que significa para você?" O entrevistador capturou um cavalo com o peão.
"Xadrez é um jogo de absolutos. Não há sorte, não há acidentes. Se você perde, a culpa é inteiramente sua. Um movimento errado, um cálculo falho, uma distração momentânea. Todos os erros são exclusivamente seus."
O entrevistado move um cavalo para a frente, capturando uma peça do adversário. Ele olha para o entrevistador, estudando sua expressão.
"Nesse sentido, realmente é uma baita de uma lição."
"Responsabilidade. Assumir responsabilidade total pelos seus atos. No xadrez, assim como na vida, os fracos culpam o acaso, os fortes aprendem com os erros e melhoram." O entrevistado faz seu movimento, capturando a rainha do entrevistador de graça.
"Merda!" Ele respirou fundo, olhando a subcelebridade à sua frente com um sorriso no rosto, balançando a cabeça e voltando seu foco para a entrevista. "E o que dizer da relação entre xadrez e inteligência? Muitos o consideram o jogo dos gênios."
"Jogar bem xadrez não significa ser inteligente. Significa reconhecer padrões, memorizar sequências, ter raciocínio espacial apurado. Um grande enxadrista não é necessariamente um grande pensador."
"Mas reconhecer padrões é uma forma de inteligência."
"Sim, mas não é tudo. Existe mais do que cálculo e previsão. A vida é diferente do tabuleiro. No xadrez, todas as informações estão à sua frente. Na vida, você luta contra a incerteza. No tabuleiro, não há enganos, não há peças escondidas. Mas no mundo real..."
...
Na manhã seguinte ao silêncio carregado de tensão, Borba apareceu mais cedo do que o habitual na sala de estudos. Sua bengala ressoou sobre o assoalho com uma batida compassada, e seu olhar varreu o salão como um general avaliando suas tropas. As crianças já estavam sentadas, cada uma à sua forma — alguns despertos demais, outros ainda presos à bruma do sono.
"Hoje," anunciou ele, com voz solene "não estudaremos xadrez. Nem lógica. Nem matemática."
As crianças se entreolharam. Dorian manteve os olhos fixos no quadro-negro, como se ali já estivesse escrita a resposta para o mistério. Helena, uma garota do outro quarto, sentada ao lado dele, sussurrou:
"Será castigo? Por ontem?"
"Hoje, falaremos sobre o Paradoxo." continuou Borba, ignorando os murmúrios.
Ele caminhou até o centro da sala, os olhos brilhando com algo entre severidade e reverência.
"O Paradoxo é o nome que damos à reação do universo quando a realidade é violada de maneira grosseira. Quando um mago impõe sua vontade de forma evidente demais, quando quebra a ilusão consensual diante daqueles que ainda dormem, o mundo responde. E não responde com delicadeza."
Ele tocou sua têmpora com dois dedos.
"Às vezes, vem como dor. Como febre. Como maldição. Outras vezes, como uma falha súbita, inexplicável. E nas piores ocasiões... como uma criatura. Um agente do próprio tecido da realidade, que vem reparar o erro e punir o responsável."
Um arrepio percorreu os ombros de algumas crianças. Rafael, o mais cético entre eles, ergueu a mão.
"Criatura de verdade? Tipo... um montro?"
Borba hesitou um instante antes de responder:
"Às vezes. Mas o pior é que ela entende. Sabe o que você fez. Sabe por quê. E te obriga a encarar."
As palavras pairaram no ar. Dorian sentiu um frio se instalar em sua barriga.
"O Paradoxo é o lembrete de que o mundo não é brinquedo. Que nossa arte não é ferramenta de vaidade." Ele se aproximou do quadro-negro e desenhou dois círculos, um dentro do outro. "Aqui está a realidade. Aqui, o adormecido. Aqui, os despertos. E além... tudo aquilo que não compreendemos por completo. O que chamamos de Umbra."
Ele pegou um giz vermelho e desenhou uma linha tênue entre os círculos.
"Esta é nossa posição. Nós andamos na fronteira. Sentimos o que os adormecidos não sentem. Somos os guardiões do limiar."
Virou-se para eles com olhos penetrantes.
"É por isso que existimos. Para proteger. Da Umbra. Dos horrores que rastejam além do véu. Dos espíritos que desejam tomar este mundo. E também... dos nossos. Daqueles que, como nós, despertaram mas escolheram um caminho diferente. Há magos que vendem sua alma por poder. Que dobram a realidade para satisfazer desejos mesquinhos. Vocês verão isso. E precisarão lembrar quem são."
As crianças estavam em silêncio. Algumas pareciam orgulhosas. Outras, assustadas. Helena mordeu o lábio. Michael fingiu desdém, mas seus dedos tamborilavam nervosos na carteira.
"Vocês são da Ordem de Hermes. Herdeiros de uma linhagem milenar. Responsáveis por preservar o conhecimento, por proteger os símbolos e por manter o equilíbrio. A magia é um dom. E como todo dom, traz consigo uma dívida."
Ele respirou fundo, como se deixasse escapar uma emoção contida.
"Agora sim." Sua voz suavizou-se. "Vocês irão escolher. Cada um começará o estudo de uma esfera."
As crianças foram chamadas uma a uma. Quando chegou a vez de Dorian, ele se levantou sem hesitar.
"Correspondência." disse.
Borba sorriu de lado.
Ele caminhou até uma mesa no canto e puxou um velho mapa-múndi enrolado. Pregou-o à parede com duas tachinhas enferrujadas. Mas o mapa não era comum: ao invés de países e fronteiras, ele continha diagramas de linhas de força, marcas em espiral, e pequenos símbolos que pareciam astrológicos, mas... vibravam de forma diferente.
"O mundo físico é uma ilusão consensual." murmurou Borba. "Um reflexo pálido de uma tapeçaria mais vasta. Vocês chamam de Terra. Nós chamamos de Ponto de Ancoragem."
Ele se virou para os meninos, e seus olhos cravaram-se nos de Dorian.
"Mas há mais. Há caminhos. Há lugares onde a realidade se dobra, se estende, se desmancha. E para quem tem olhos para ver..." Apontou para o mapa. "há correspondência. O primeiro nível, Dorian, é perceber. Apenas isso. Sentir o espaço como uma coisa viva. Ouvir os caminhos com os pés. Pressentir a presença de alguém antes de vê-lo.
Na semana seguinte, Borba propôs um jogo: os corredores do orfanato foram marcados com fios de barbante colorido, conectando portas, janelas e objetos. Cada criança recebeu um percurso, mas havia uma condição: não podiam usar os olhos. Apenas toque, som e intuição. Depois, nem mesmo toque ou som.
Dorian foi o primeiro a conseguir atravessar três salas inteiras sem abrir os olhos. Helena bateu em uma estante e caiu sentada, rindo alto. Michael reclamou que alguém havia trocado os fios.
"Isso não é justo!" protestou. "O espaço muda!"
"Exatamente." disse Borba, satisfeito.
Com esses e outros jogos, Dorian foi se acostumando ao espaço a sua volta. Apesar disso, usar feitiços ainda era algo a parte. Ele precisaria de criatividade e inspiração para usar feitiços no futuro.
'Ao menos está sendo um processo rápido.' Gilgamesh pensou.