Capítulo 3 - O Fim dos Justos.

O tempo é uma mentira.

Ele não flui. Não avança. Ele se repete, se dobra, se distorce. Ele não nos carrega, mas nos enterra, camada após camada, até que esquecemos que somos prisioneiros dele.

O céu também é uma mentira.

O paraíso prometido, o ápice da perfeição, a prova do divino—tudo isso desmoronou. O ouro dos templos virou pó. As nuvens, antes imaculadas, foram tingidas de vermelho com o sangue dos que se recusaram a aceitar a verdade. O céu morreu, não porque foi destruído, mas porque nunca existiu de verdade.

Agora, 8 milhões de anos depois, restam apenas 2.000 almas.

E mesmo assim, elas ainda rezam.

Para quem?

Deus partiu há muito tempo, ou talvez nunca tenha estado aqui. O céu não é mais uma morada celestial, mas um túmulo. Os pilares de luz divina se tornaram ossadas de pedra, os coros angelicais se calaram, dando lugar ao silêncio. Não o silêncio da paz, mas o da condenação. Um vazio tão absoluto que parece gritar.

E eu?

Eu sou Naka.

Eu fui chamada de aberração, de heresia, de erro. Fui amaldiçoada pelos que se diziam justos e perseguida pelos que se diziam santos. Mas agora, sou a única coisa que sobrou quando tudo foi reduzido ao nada.

E eu destruí o céu.

Mas para entender como chegamos até aqui, precisamos voltar ao começo.

Siddartha e Dante estavam diante de mim.

Dois homens que moldaram a compreensão da existência, que buscaram a verdade em seus próprios caminhos. Dois homens que, mesmo diante do colapso do céu, ainda tentavam encontrar sentido no caos.

Atrás de mim, os Pecados. Não como forças de corrupção, mas como manifestações purificadas daquilo que a humanidade sempre negou. Eles eram a verdade, libertos do julgamento imposto por um mundo quebrado.

Mesmo os que nunca estiveram presos haviam retornado para a jaula antes da morte de Void, como se soubessem que precisariam esperar. Mas quando Void morreu, as correntes se partiram. E agora, eles estavam aqui. Ao meu lado.

Dante me olhava com a prudência de um homem que já havia visto o inferno e ainda assim duvidava do que via. Siddartha não expressava nada além de um silêncio que pesava mais do que palavras poderiam carregar.

O céu estava em ruínas, mas eles ainda se mantinham de pé. Ainda acreditavam que algo poderia ser salvo.

Dante foi o primeiro a falar.

— O que você pretende, Naka?

Sua voz carregava mais do que simples curiosidade. Não era medo, nem raiva, mas um pesar profundo. Ele não queria acreditar na resposta que já conhecia.

Eu sorri.

— O necessário.

O tempo se estendeu.

Nenhuma lâmina cortou o silêncio. Apenas a inevitabilidade.

Meus pés se moveram sobre a terra tingida de sangue e cinzas. Não havia pressa, não havia hesitação.

Dante franziu o cenho. Siddartha não reagiu.

Meus dedos tocaram a garganta de Dante primeiro. Sua pele era fria, mas o pulso ainda vibrava, frágil como o último fio de um destino já selado.

Ele tentou se afastar, mas meu aperto foi absoluto.

Seus olhos encontraram os meus. Não havia fúria, apenas aceitação.

Eu apertei.

Seus dedos tocaram meus pulsos, não em resistência, mas como se quisesse sentir o momento em que deixaria de existir.

Siddartha observava em silêncio.

Dante ofegou. Seu corpo estremeceu. Por um instante, seu olhar se perdeu além de mim, talvez vislumbrando algo que nunca entenderemos.

Eu poderia ter dito algo. Poderia ter oferecido palavras de conforto ou condenação. Mas não havia necessidade.

Seus joelhos cederam. Seu corpo caiu.

O inferno finalmente o engolira.

Me virei para Siddartha.

Ele não se moveu.

— Você não vai lutar? — perguntei.

— Por quê? — ele respondeu.

Não havia medo em sua voz. Nem desafio. Apenas uma calma infinita.

Eu o encarei por um momento.

Então minha mão encontrou seu pescoço.

Ele fechou os olhos.

Nenhum suspiro. Nenhuma resistência.

A única coisa que existiu foi o silêncio.

Eu apertei.

Seu corpo cedeu como se já estivesse pronto para isso. Como se soubesse que este sempre foi o desfecho inevitável.

Quando ele caiu, seus olhos estavam serenos.

Eu não os odiei. Eu não os amei.

Eu apenas fiz o que precisava ser feito.

O céu nunca foi um prêmio. Foi uma prisão.

Desde o princípio, disseram que era o destino dos justos. Mas o que é justiça senão a moralidade de quem venceu? O que é o bem senão o conforto dos que se sentem seguros? O céu era um teatro, uma ilusão para que os mortos não percebessem que ainda estavam acorrentados.

A diferença entre o céu e o inferno nunca foi de essência, apenas de estética.

Mas então, Void destruiu o inferno.

E sem um inferno para conter os condenados, para onde iriam suas almas?

Para cá.

117 bilhões de pecadores ascenderam ao céu, mas não encontraram paraíso, apenas mais um campo de batalha. Eles trouxeram consigo sua fúria, sua fome, sua desesperança. A culpa que devorava suas almas agora precisava de um novo lugar para se alojar.

E assim, o céu apodreceu.

Eu vi a guerra que se seguiu. Vi anjos serem rasgados por mãos que antes apenas imploravam misericórdia. Vi o azul do firmamento ser manchado por torrentes de carne e sangue. Vi templos desmoronarem sob o peso dos que não aceitavam que a eternidade não lhes ofereceria mais do que seu próprio reflexo.

Eu vi Deus abandonar o que criou.

A frase de Nietzsche agora tem outro significado, Deus realmente está morto aqui.

E então, quando tudo estava prestes a se desfazer completamente, eu vi as jaulas.

Os Pecados estavam lá.

Não porque foram capturados, mas porque escolheram se trancar. Os que nunca haviam sido presos, os que andavam livres, voltaram voluntariamente para as correntes pouco antes da morte de Void. Como se soubessem que o momento chegaria. Como se esperassem algo maior do que a ruína.

E quando Void caiu, eles foram libertos.

Eu os vi saírem.

Lentamente, um por um.

E eles não eram o que a humanidade esperava.

Eles não eram monstros. Não eram forças destrutivas. Eles não eram demônios.

Eles eram verdades.

Eram os pedaços da humanidade que sempre existiram, mas que foram pintados como pecado porque não podiam ser controlados.

A Gula não era apenas voracidade—era o desejo de viver.

A Avareza não era apenas cobiça—era a recusa de ser explorado.

A Luxúria não era apenas prazer—era o reconhecimento da própria carne.

A Preguiça não era apenas inação—era a sabedoria de saber quando parar.

A Inveja não era apenas desejo—era a busca por algo maior.

A Ira não era apenas fúria—era o fogo que queimava a injustiça.

E eu?

Eu era a imoralidade.

Porque a moralidade é uma mentira.

Ela não nasce do coração, mas da conveniência. Não é uma verdade absoluta, mas uma arma usada pelos que querem controlar. A humanidade se proclama pura enquanto se alimenta da própria podridão. Criam leis para manter a ordem, mas quebram essas leis sempre que lhes convém. Dizem que certas ações são erradas, mas as justificam quando são elas que as cometem.

Eu sou o oposto disso.

Eu não minto sobre o que sou.

Eu não escondo o que quero.

E é por isso que Dante e Siddartha morreram sem hesitação.

Eles ainda acreditavam que poderiam entender. Que poderiam guiar. Que poderiam mudar algo sem se tornarem parte do caos.

Mas o caos não é algo a ser derrotado.

O caos é tudo o que resta.

E agora, nós caminhamos.

Os Pecados ao meu lado.

O céu, em ruínas atrás de nós.

E o futuro?

O futuro nunca importou.

O tempo é uma mentira.