Nós caminhávamos em silêncio, os passos ecoando pelo vazio. Os Pecados me seguiam sem questionar, sem hesitação. Eles não precisavam de palavras para entender. Eu não os guiava com promessas, não os alimentava com ilusões—eles estavam aqui porque queriam estar.
Luxúria andava um pouco à frente, seus olhos percorrendo os destroços com um brilho divertido.
— É engraçado — ela disse, sem olhar para ninguém em particular —, como eles imploram para serem salvos até o último segundo. Como se houvesse algo além desse instante.
— A esperança é a droga mais viciante de todas — comentou Gula, lambendo os lábios, como se provasse a própria teoria.
— E a mais inútil — completou Avareza.
Eu sorri.
— Não subestimem a esperança. Ela mantém a ilusão viva. E enquanto a ilusão vive, a mentira continua a se espalhar.
— Você quer acabar com a mentira? — perguntou Inveja, cruzando os braços.
— Não — respondi. — Quero que eles a vejam pelo que realmente é.
Nosso caminho nos levou até uma praça destruída, onde um homem se ajoelhava entre os destroços. Ele não parecia notar nossa presença. Seus dedos magros arrancavam penas de um serafim morto, e ele as mastigava lentamente, como se fossem o último alimento do mundo.
Parados ali, observamos em silêncio. O som das penas estalando entre os dentes dele era sufocante.
Senti Avareza se aproximar um pouco mais, curioso. Gula deu um passo à frente, mas eu levantei a mão, interrompendo-o.
O homem, finalmente, ergueu o olhar. Seu rosto estava coberto pelo sangue celestial, seus olhos fundos carregavam um brilho febril.
Ele sorriu.
— Quem é você e a quem você segue?
A voz dele não tremia. Não havia medo, apenas certeza.
Eu me aproximei, abaixando-me até ficar à sua altura.
— Eu deveria perguntar o mesmo.
Ele piscou lentamente, ainda sorrindo.
— Eu sigo Cristo e Maomé. Meu nome é Marco.
Olhei para os restos do serafim morto. Para as penas mastigadas em seus dentes.
— E como é esse Cristo e esse Maomé que você segue?
— São os dois maiores!
— Maiores em quê?
— Em sua plenitude!
O fervor em sua voz era um eco do que um dia governou esse lugar.
Respirei fundo, sem desviar o olhar.
— Você acredita nisso porque viu ou porque disseram para você acreditar?
Marco franziu a testa, hesitante pela primeira vez.
— Eu… eu sei que é verdade.
— Como?
— Porque… porque precisa ser!
Inclinei a cabeça levemente.
— E se não for?
O desespero cruzou seu rosto.
— Você não entende. Se não for… então… então tudo foi em vão.
— Foi.
Ele congelou.
As palavras pesaram sobre ele como uma sentença. Sua respiração acelerou. Seus olhos tremularam.
— Não…
— Sim.
Os Pecados estavam em silêncio, observando. Não precisavam intervir. O próprio Marco já estava se desfazendo.
Ele tentou rir, mas o som saiu trêmulo.
— Você está errada. Cristo… Maomé… eles… eles são a verdade!
— A verdade não precisa ser engolida como as penas de um serafim morto.
Marco olhou para suas próprias mãos, cobertas de sangue dourado.
— Não…
— Sim.
Ele tremia. Seus olhos brilhavam com lágrimas que nunca caíram.
Eu me levantei e olhei para Avareza.
— Mate ele da forma mais cruel que conseguir. Como sempre.
Avareza sorriu.
Sem hesitação, enfiou o braço na garganta de Marco.
O homem se contorceu, os pés arranhando o chão. Seus olhos pediam misericórdia, mas sua boca não podia mais falar.
Os ossos quebraram um por um.
"Aquela" fé não salvou Marco.
Desde que entrei acorrentada aqui, minha mente mudou. A percepção do mundo se fragmentou e se reorganizou em formas que antes pareciam impossíveis. A ordem que me ensinaram a respeitar, a santidade que prometeram ser inquebrável, os julgamentos que me impuseram como verdades absolutas... Tudo se mostrou frágil, uma mentira tão bem contada que até os mais céticos acreditaram nela.
Eu sou um erro. Um erro que nunca deveria ter existido.
E se tudo é um erro, então não há erro algum em destruí-lo.
Onde houver santos, eu irei fazê-los duvidar da própria santidade.
Onde houver Demônios eu irei fazê-los duvidar da própria gança.
Onde houver Deuses eu irei fazê-los mudar o trajeto da vida.
E onde houver Deus eu irei fazê-lo desestabilizar sua própria criação.
Meu olhar se ergueu, fitando o caminho adiante. O céu estava morto. O que antes era a morada dos justos agora era um cemitério a céu aberto, onde corpos angelicais se empilhavam como oferendas a uma divindade que já não olhava mais para baixo. Eu caminhei por entre asas decepadas, halos manchados de sangue, lanças quebradas. Nada mais brilhava. O ouro e a luz foram sufocados pela ferrugem e pela sombra.
E no meio desse cenário profano, uma cena me chamou atenção.
Um homem, ajoelhado sobre um seraphim morto, arrancando suas vísceras com os dentes, mastigando como um animal selvagem. O som era grotesco, um estalar úmido e asqueroso. Ele não se importava comigo, nem com a presença dos Pecados. Só queria devorar.
Parei diante dele. Ele sequer levantou os olhos.
— Por que comete pecados?
Sua boca mastigava devagar. Os olhos, vazios, demoraram a me encarar.
— Porque...
Levantei a mão.
— Não diga.
Ele congelou. O silêncio entre nós se tornou um peso esmagador.
— Depravado da mente e da carne. — Minha voz saiu fria, arranhando a garganta como lâminas. — Prazeres carnais definham sua mente e apodrecem sua carne. Cada suspiro de prazer é um passo rumo à própria decomposição, cada desejo saciado é um prego a mais no caixão da sua sanidade.
Os olhos dele tremeram, uma faísca de entendimento piscando por trás da fome animalesca.
— Você já sentiu isso, não é? O vazio. A necessidade insaciável de se preencher. Mas não há preenchimento, só uma fome cada vez maior, uma dor que cresce e cresce até consumir tudo. Você é uma casca. Um corpo em movimento, mas sem um espírito real dentro. E ainda assim, ainda assim você acha que está certo.
Ele não respondeu. Continuou me olhando, o queixo sujo de sangue, o olhar oscilando entre medo e confusão.
— Quem é você? A quem segue?
Ele piscou. A boca abriu num sorriso sujo.
— Eu sigo os dois maiores.
Meus olhos se estreitaram.
— Quem são eles?
— Eu sigo...
Não deixei ele terminar.
Suas palavras já estavam envenenadas. Eu já sabia quais nomes ele cuspiria. Ele era um dos incontáveis que se renderam ao falso conforto, ao dogma envenenado. Um dos que ajudaram a destruir o Céu.
Meus dedos se fecharam em torno de sua garganta. Ele arfou, as mãos indo automaticamente para os meus pulsos, mas não havia força real em sua resistência. Eu sentia o pulsar fraco sob minha pele, a vida se esvaindo lentamente.
— Você não merece falar.
Arranquei sua língua.
O grito dele foi sufocado pelo próprio sangue. Ele se contorceu, os olhos arregalados em puro horror, a boca se abrindo e fechando como a de um peixe agonizante.
Joguei a língua no chão.
Atrás de mim, os Pecados observavam em silêncio.
Eu não precisava dizer nada.
O recado já estava dado.
Onde houver santos, eu irei fazê-los duvidar da própria santidade.
Onde houver Demônios eu irei fazê-los duvidar da própria gança.
Onde houver Deuses eu irei fazê-los mudar o trajeto da vida.
E onde houver Deus eu irei fazê-lo desestabilizar sua própria criação.