Um Refúgio Que Se Chama Levítio

Capítulo 12 – Um Refúgio Que Se Chama Levítio

O dia amanheceu tranquilo, com o sol invadindo o quarto devagarinho. Helena acordou com um suspiro profundo, como se pela primeira vez em dias sua alma estivesse mais leve. A presença de Levítio, constante e silenciosa, tinha se tornado o lugar onde ela se sentia segura.

Quando ela desceu as escadas, encontrou Levítio sentado no chão da sala com Isolde no colo, fazendo vozes engraçadas enquanto lia um livrinho infantil. A pequena gargalhava sem parar.

— Vocês dois já estão aprontando logo cedo? — Helena perguntou, encostando na porta com um sorriso nos lábios.

— Ela que começou. — Levítio ergueu uma sobrancelha. — Disse que queria ouvir a história do príncipe burro que caiu do cavalo... achei apropriado.

Helena parou. Piscou. — Espera... ela falou isso?

Levítio assentiu, sorrindo. — Com todas as letras.

Helena se ajoelhou, emocionada, e Isolde correu até ela, agarrando sua perna.

— Lena! Ele fala engraçado!

Foi como se o mundo parasse por um segundo. Aquela tinha sido... a primeira frase de Isolde. Os olhos de Helena se encheram de água. Ela abraçou a irmãzinha com força, sentindo o coração derreter por dentro.

— Você falou, Isolde... você falou mesmo...

Levítio se aproximou e sorriu, respeitando o momento. — Acho que ela só precisava do ambiente certo... das pessoas certas.

Helena a pegou no colo e deu um beijo estalado em sua bochecha. — Você é muito esperta, sabia?

Levítio levantou e olhou para Helena com aquele brilho no olhar que a deixava com o coração batendo acelerado. Ele se aproximou devagar e tirou uma flor do bolso, uma margarida.

— Achei no jardim. Lembrei de você. Bonita e teimosa.

Helena pegou a flor e segurou o riso. — Teimosa? Olha quem fala.

— É sério — ele disse, agora num tom mais baixo, mais íntimo. — Desde que você chegou... esse lugar tem cheiro de casa.

Helena sentiu as bochechas corarem. Seus olhos se encontraram, e por um instante o mundo pareceu desacelerar.

Ela desviou o olhar e foi até a cozinha, com Isolde ainda no colo, tentando esconder o sorriso bobo.

— Vai ficar me olhando ou vai ajudar com o café?

— Só se eu puder fazer panquecas em formato de coração.

Resmungou Levítio.

— Se fizer, eu deixo você comer primeiro. Helena brincou.

E naquele café da manhã, entre risadas, farinha espalhada e panquecas malformadas, Helena sentiu algo que não sabia nomear. Não era só gratidão. Era mais. Algo nascido devagar, entre conversas ao luar e brincadeiras com Isolde. Algo que crescia toda vez que Levítio segurava sua mão ou encostava a testa na dela.

Algo que parecia amor.

Mais tarde naquela manhã, os três saíram para o jardim. Isolde corria de um lado pro outro enquanto Helena e Levítio sentavam na grama. Ele passou o braço em volta dela e ela não recuou.

— Você ainda pensa no Eduardo? — ele perguntou, com cuidado.

Helena suspirou.

— Penso... mas não do mesmo jeito. Não como antes. Tem coisas que não fazem mais sentido, sabe?

— Eu sei. — Levítio falou, puxando-a com delicadeza pra mais perto. — Mas se um dia você quiser parar de pensar nele... eu tô aqui.

Helena olhou pra ele e sorriu, encostando a cabeça no ombro dele.

— Eu sei.

E ali, com Isolde girando entre as flores e rindo como se o mundo fosse só alegria, Helena sentiu que, talvez, o amor não fosse uma prisão. Talvez fosse isso: um lugar de paz no meio do caos. E aquele lugar... estava dentro de Levítio.

A tarde estava nublada, como se o céu pressentisse que algo estava prestes a desabar. Helena estava no quintal, ajudando Levítio a improvisar uma pipa para Isolde. O riso da menina enchia o ar, leve e contagiante.

— Ela não vai querer soltar — disse Levítio, limpando a sujeira de tinta das mãos. — Vai guardar pra dormir abraçada com ela.

— E ainda vai dizer que fui eu quem estraguei — respondeu Helena, sorrindo enquanto observava a alegria da irmã.

Mas aquele momento de paz foi interrompido quando uma batida apressada soou na porta da frente.

Helena e Levítio se entreolharam. Ela foi até lá, limpando as mãos no pano do avental. Ao abrir, seu coração deu um salto.

Eduardo estava ali. Pálido, o olhar cansado, mas ainda com aquele mesmo semblante nobre — e agora, ainda mais difícil de decifrar.

— Precisamos conversar — disse ele, a voz baixa e grave.

Helena engoliu seco. Não era medo, nem raiva. Era algo estranho, quase um pressentimento.

— Levítio, pode ficar com a Isolde um momento? — pediu, sem tirar os olhos de Eduardo.

Levítio assentiu, sério, e carregou Isolde no colo para dentro. Ela ainda brincava com as fitas da pipa.

Quando ficaram sozinhos, Eduardo respirou fundo.

Helena cruzou os braços. — Então comece a falar.

— Eu... só queria saber se você está bem Disse Eduardo, desviando o olhar por um segundo, apenas o suficiente para que Helena notasse.

Ela forçou um sorriso. — Estou. Melhor do que esperava.

Ele assentiu, tentando medir as palavras. — Eu senti sua falta, Helena.

Aquela velha forma de chamá-la.Doce, cheio de lembranças. Mas, agora, soava estranho. Um pouco vazio.

— Você foi mesmo sequestrado, Eduardo. Alguém arquitetou aquilo... e você voltou como se tudo tivesse sido só uma viagem.

— Eu tô tentando processar tudo ainda. Foi confuso. E perigoso. Só... não é hora de falar disso.

Helena estreitou os olhos. — Não? Quando vai ser?

Eduardo não respondeu. Em vez disso, pegou em sua mão como se aquilo pudesse apagar o tempo, como se ela ainda pertencesse a ele.

— Eu queria que a gente tentasse de novo. Esquecer tudo isso.

Ela puxou a mão de volta, firme. — Esquecer? Você acha que dá pra esquecer quando alguém quase morre, quando minha irmã passou dias se escondendo e quando minha vida virou um caos?

Ele calou-se. Por dentro, Helena sentia a chama da dúvida acender. Ela queria acreditar nele. Queria, de verdade. Mas algo não batia. Algo nela, talvez pela primeira vez, dizia que Eduardo estava escondendo mais do que contava.

— Eu preciso ir — disse ele, depois de um longo silêncio. — Só... pensa no que eu disse.

Helena observou enquanto ele se afastava.

Quando se virou para entrar, encontrou Isolde correndo em sua direção. A menina se jogou nos braços dela com um sorriso largo e olhos brilhando.

— "Lena!" — disse Isolde.

Helena arregalou os olhos.

— Você... falou? Você disse meu nome?

Isolde assentiu, tímida, mas orgulhosa.

Foi a segunda vez que Helena escultou Isolde falar. A segunda desde que havia saído do porão.

E naquele instante, com Isolde abraçada a ela e Levítio aparecendo logo atrás com um sorriso emocionado, Helena percebeu o que era amor de verdade. O tipo de amor que não pedia promessas, nem fazia jogos. O tipo de amor que simplesmente acontecia, como a primeira palavra de uma criança que antes só conhecia o silêncio.

Levítio se aproximou com passos calmos, mas o olhar carregava emoção. Viu Isolde aninhada nos braços de Helena e se ajoelhou ao lado delas.

— Ela falou... — Helena sussurrou, ainda surpresa, os olhos marejados.

— Eu ouvi... — Levítio respondeu, sorrindo com ternura. — Foi a terceira vez que ela falou hoje?

Helena assentiu, acariciando os cabelos da irmã. — "Lena". Foi "Lena"...

Levítio estendeu a mão, tocando com delicadeza os dedos pequenos de Isolde, que sorriu, tímida, e enlaçou os dedinhos nos dele. Helena observou a cena em silêncio, com o coração apertado de ternura. Ali, naquele instante, havia algo que nenhuma guerra, traição ou rei conseguiria tirar dela: paz.

Eles ficaram assim por um tempo. O vento soprava devagar, levantando fios do cabelo de Helena. O céu, que antes estava nublado, agora começava a clarear, como se até o tempo estivesse torcendo por eles.

— Você quer deitar um pouco? — Levítio perguntou, suave.

— Só se for do seu lado.

Ele sorriu, envergonhado, e estendeu o braço. Sentaram-se sob uma árvore, com Isolde entre eles, abraçada a um ursinho de pano. Helena encostou a cabeça no ombro de Levítio. Era aconchegante, seguro… diferente de tudo o que ela conhecera antes.

— Levítio... tem uma coisa que eu preciso te contar.

Ele virou o rosto devagar para ela, atento.

— Hoje mais cedo, o Eduardo veio me ver.

O olhar de Levítio se apagou um pouco, mas ele não disse nada.

— Ele falou como se quisesse recomeçar. Como se nada tivesse acontecido. E não me contou nada sobre o sequestro. Nada. Disse que não era hora de falar disso.

— Isso soa estranho... — Levítio murmurou.

Por um tempo os dois ficaram em silêncio.

— Levítio... — ela quebrou o silêncio com a voz baixa. — Tem mais uma coisa que preciso te contar.

Ele virou novamente o rosto, prestando atenção.

— Lembra quando eu fui falar com o Dorian?

— Sim... você voltou bem estranha aquele dia.

— É porque... na noite anterior, alguém deixou uma carta por debaixo da porta. Não tinha nome, nem selo, mas dizia que Eduardo não deveria ter retornado,lendo eu percebi que havia muita coisa que eu ainda não sabia... E sabe o que é mais estranho?.

Ela se ajeitou com cuidado, para não acordar Isolde,que já adormecia em seu colo.

— O Dorian confirmou que o sequestro do Eduardo não foi bem como contaram. Que algo ali parecia encenado. E o jeito que o Eduardo falou comigo hoje... como se nada tivesse acontecido, como se ele só tivesse sumido por uns dias e tudo estivesse bem...

— Você acha que ele mentiu?

Perguntou Levítio.

Ela olhou nos olhos de Levítio, e seus olhos estavam cheios de uma dor contida.

— Eu não sei... mas tô começando a achar que sim. Tô começando a achar que o Eduardo não é quem eu pensava. E isso... isso me assusta.

Levítio não disse nada no início. Só puxou Helena mais pra perto, apoiando o queixo na cabeça dela.

—Eu ...estou aqui, tá? Se ele tiver mentido, se o mundo virar de cabeça pra baixo de novo, você ainda vai ter a mim. E à Isolde. A gente vai passar por isso junto.

Helena fechou os olhos por um momento, sentindo o calor do abraço e o peso das verdades que começavam a aparecer. Por dentro, uma guerra silenciosa se formava: entre o passado e o presente, entre o amor que ela achava que conhecia… e o amor que estava começando a descobrir.

E ali, sob a sombra daquela árvore, com Isolde dormindo tranquila entre eles, Helena compreendeu algo que nem todas as cartas ou reencontros poderiam mudar: o verdadeiro amor não precisa de grandes gestos ou promessas quebradas.

O verdadeiro amor… era aquele que permanecia.