No ventre da escuridão, uma presença se mexe.
Um par de olhos se abre lentamente.
Takeshi desperta, ofegante, sentindo o frio cortante da neve tingida de vermelho sob seu corpo. Seu peito sobe e desce com dificuldade. Ele vira a cabeça, a visão ainda turva… até ouvir uma voz familiar.
— Mestra, ele acordou — anunciou a garota de cabelos azul-escuro, ajoelhada ao lado dele, com um olhar entre o alívio e a paralisia.
Antes que ele pudesse reagir, passos firmes ecoaram sobre a neve. Uma figura imponente se aproximava.
Era um homem com cerca de dois metros de altura, corpo musculoso como o de um guerreiro experiente. Seus olhos eram negros e intensos, e os cabelos castanho-escuros caíam até os ombros. Vestia uma camisa vermelha simples e uma calça larga, como se não precisasse de nada extravagante para impor respeito.
A mulher de cabelos roxos estava ao lado dele, silenciosa, mas Takeshi mal percebia sua presença.
A dor em sua testa latejava como uma lembrança viva do que havia acontecido. Seus pensamentos estavam lentos, embaralhados, como se sua mente estivesse imersa em um nevoeiro espesso. Ele não sentia o gosto da própria boca. Não sentia nada direito. Tudo dentro dele parecia fora do lugar — como peças soltas de um quebra-cabeça quebrado.
A energia em seu corpo esvaía pouco a pouco.
O homem e as duas garotas ao redor começaram a conversar, mas suas vozes eram distantes, distorcidas… como um rádio antigo com interferência, zumbindo em sua mente. Um som que incomodava e o isolava completamente da realidade.
Seus olhos tremiam, não sabia por quê. E então… uma voz suave, infantil, atravessou o ruído como uma lâmina cortando o silêncio.
— Foi bom chegar até esse momento... Foi bom sacrificar a vida das pessoas.
As palavras foram como uma facada. Pesadas. Sinceras. Cruéis.
Takeshi virou o rosto lentamente, e ao longe — afastado do grupo, quase fundido com a paisagem — ele viu. A si mesmo.
Uma versão criança. Parada. Observando.
A criança — ou melhor, uma versão mais jovem de si mesmo — tinha a altura de um garoto de cerca de nove anos. Vestia roupas inteiramente brancas, em nítido contraste com os pequenos machucados em seu rosto. Sua pele era pálida, mais clara que a do Takeshi adulto, quase como se fosse feita de luz antiga, desgastada pelo tempo.
— A gente não é um assassino... não é? — a criança perguntou, com a voz serena, mas vazia.
A garganta de Takeshi apertou, os lábios tremularam, e quando olhou para suas mãos... estavam cobertas de sangue.
As pessoas ao seu redor desapareceram. O mundo escureceu, exceto por ele mesmo e aquela criança.
— O que é você, de verdade...? — Takeshi sussurrou, confuso, tentando entender o que estava vendo. — O que... está fazendo aqui?
A figura não respondeu. Só o olhava. Um olhar sem emoções. Sem luz. Sem alma.
A criança se aproximava com lentidão. Cada passo parecia carregar anos de lembranças soterradas. Seus olhos continuavam vazios, mas havia um peso sufocante em sua presença. Então, ela falou com uma calma perturbadora:
Os olhos vazios continuavam os mesmos. Mas sua presença... essa parecia pesar toneladas
— Matamos Akira… matamos aquelas duas pessoas. Mas será que esse é o nosso limite? A gente não é um monstro por fazer isso, não é?
A cabeça da figura se inclinava levemente, como se já soubesse a resposta… e zombasse de Takeshi em silêncio, rindo dentro dele.
Uma dor aguda atravessou a mente de Takeshi. Sua cabeça latejou como se estivesse sendo perfurada. Imagens surgiram sem controle — os rostos, os gritos, os corpos... as mortes. Tudo o que ele havia feito para sobreviver até aquele momento. Tudo o que ele destruiu.
A criança continuou, sem parar, sem hesitar:
— A gente nunca gostou de Layos e Mark. A verdade é que só usamos eles pra chegar até aqui, não foi? — sua voz agora era mais baixa, mas mais afiada. — No fundo, a gente só faz o que for preciso pra sobreviver. Sentimos medo o tempo todo. Cada luta nesse mundo, cada pessoa, cada escolha... foi sempre medo. Sempre medo.
As palavras perfuravam o peito de Takeshi como espinhos. E, no fundo, ele sabia que algumas daquelas verdades estavam enterradas em seu coração. Mas não queria aceitá-las. Não daquele jeito.
Com os olhos tremendo, sentindo o peso de tudo, uma única lágrima escorreu pelo seu rosto. Ele apertou os punhos, e então gritou com raiva e dor:
— Cala a boca!
Claro que aquelas palavras o irritaram profundamente, mas dentro da mente de Takeshi, algo gritava em silêncio:
“Claro que não… eu fiz por eles… e por mim.”
Ele tentou se agarrar a essa ideia, como se fosse a última âncora que o impedia de cair. Até sentir um leve toque em seu ombro. Suave, quase inexistente, como se alguém tentasse trazê-lo de volta — de volta à realidade.
Mas não funcionou.
Algo ainda o mantinha preso naquele espaço sombrio de sua consciência, onde o passado e o presente se confundiam e onde seus medos mais profundos ganhavam forma.
Takeshi estava perdido. Confuso. Em meio a um nevoeiro interno que o sufocava.
Ela não se calou. Os olhos vazios agora pareciam brilhar com uma verdade incômoda.
— Lembra quando você disse que matar era algo horrível? — ela sussurrou, com um sorriso quase imperceptível. — Pois é. A verdade é que você nunca se perdoou. Você mente sobre o que sente. Sempre mentiu. Porque tem medo de que os outros percebam o que você realmente é.
Os dentes de Takeshi rangeram com força, e ele respondeu num tom seco, cheio de raiva mal contida:
— Fica calado. Você não sabe de nada.
Mas a figura não recuou. Pelo contrário. Aproximou-se mais, até ficar diante dele, tão próxima que Takeshi podia ouvir sua respiração calma, fria… cruel.
— Você sente medo. Raiva de todos. Vingança… É isso que te move. Desde o começo, não foi empatia. Você não chorou pelos seus amigos em perigo. Nem se desesperou quando estavam feridos. Porque, no fundo, você só queria vencer. Só queria sobreviver. Só pensava em si mesmo.
A criança inclinou o rosto, olhando diretamente nos olhos dele.
— Então me diga… o que somos de verdade?
Takeshi não respondeu. Não conseguia.
O silêncio foi mais cruel do que qualquer resposta.
Aquela versão distorcida de si mesmo falou, com a frieza de quem já desistiu de tudo:
— Somos apenas alguém que trabalhou duro… para sobreviver a uma realidade horrível. As pessoas ao nosso redor? Elas não têm valor. Só existem para serem degraus no nosso caminho.
As palavras atravessaram a mente de Takeshi como lâminas. Frias, diretas, cruéis. E, pior… familiares. Eram uma mistura tóxica de verdade e mentira. Ele não queria acreditar, mas seu coração hesitava. A dúvida era um veneno silencioso.
— A gente diz que odeia ser usado — continuou a criança com um sorriso torto —, mas no fundo… você sabe que somos como eles.
Usamos tudo e todos nesse novo mundo para conseguir o que queremos. Chamamos de sobrevivência… mas é egoísmo, não é?
A figura estendeu a mão, como se oferecesse uma saída. Mas era uma saída sombria — um convite para abraçar o pior de si mesmo.
— Você não está errado em fazer tudo isso — disse ela, com uma calma que feria. — Então me diz, Takeshi: somos um herói… ou um vilão nessa nova vida? Gostamos de manipular, de enganar. Nada disso é errado, porque esse mundo que você vive agora… não tem leis. Não tem certo ou errado. A realidade mudou.
Takeshi sentiu a respiração falhar. Aquela presença não era apenas um reflexo — era um veneno tentando se enraizar. Queria que ele cedesse. Que aceitasse o rótulo de vilão. Que deixasse a dor crescer até virar ódio. Queria que ele afundasse… e nunca mais voltasse.
O que Takeshi não percebia era que aquele ‘eu’ não era apenas uma memória ou uma voz.
Era a semente de algo maior. Algo obscuro. Algo que só precisava de um momento de fraqueza para florescer… e transformar tudo.
A figura estendeu a mão esquerda, lentamente, tentando tocar Takeshi como se quisesse arrastá-lo para dentro daquela escuridão. Mas Takeshi, com um reflexo instintivo, a afastou com força.
Seus olhos tremiam, cheios de confusão, dor e negação.
— N-não… Eu nunca usaria o Mark… nem o Layos. As pessoas que morreram… não foi culpa minha… — sua voz falhou, engasgada pela culpa que tentava negar.
Mas a criança — sua sombra — apenas o observou com um olhar frio, vazio… e afiado como uma lâmina.
— Usamos sim — disse com firmeza. — Você sabe que sim. A dor da morte é horrível, não é? Você tentou suportar… tentou fingir que não te quebrou por dentro. Mas mentiu. De novo.
Está sendo difícil manter essa máscara, não é?
Takeshi levou a mão ao peito, apertando com força como se tentasse conter um coração que estava prestes a se despedaçar.
As lembranças o atingiram de uma só vez. A primeira morte. A flor cravada em sua testa. A batalha contra Akira. A dor. O desespero. O medo de continuar.
Cada memória era como um espinho que perfurava a alma. Cada decisão, uma cicatriz.
E tudo aquilo, tudo o que tentou esquecer, agora voltava… mais vivo do que nunca. Mais cruel do que ele estava preparado para enfrentar.
A criança sorriu de forma sombria, erguendo a mão.
Uma névoa negra começou a se formar ao redor de seus dedos, girando lentamente como fumaça viva… até moldar algo.
Um terno escuro apareceu, velho, desgastado… mas inconfundível.
Takeshi arregalou os olhos. Ele conhecia aquela roupa.
— Por que você está com isso...? — perguntou, sua voz tomada pela tensão.
A criança inclinou a cabeça, a névoa ainda oscilando ao redor de si.
— Hmmm… você sabe de quem era isso, não sabe? Era do seu tio. Ele te deu… antes de tudo acontecer.
O nome dele nem foi dito, mas o peso da lembrança caiu como uma avalanche. Sem pensar, impulsionado pela fúria, Takeshi se lançou sobre a criança — sobre si mesmo.
Derrubou-a no chão com violência.
Suas mãos apertaram o pescoço da figura, como se quisesse sufocar aquela parte de si que ele tanto odiava.
A criança, porém, não resistia. Apenas o encarava. Os olhos vazios. Sem dor. Sem medo. Sem alma.
— É difícil, não é...? — sussurrou a figura, com um sorriso quase imperceptível. — Essa lembrança… essa dor… ela nunca foi embora. Mas agora, vamos… vamos fazer justiça com suas próprias mãos.
Aquelas palavras envenenavam o coração de Takeshi. Elas soavam como tentação. Como o início de uma queda.
Antes que pudesse continuar, as mãos de Takeshi perderam a força.
Seus dedos afrouxaram no pescoço da figura diante dele… e, por um instante, tudo ficou em silêncio.
Sua mente se embaralhou. As lembranças, as dores, o peso de tudo o que viveu.
E então, uma única pergunta emergiu:
“O que eu estou fazendo…?”
Ele ofegou. Respirou fundo, tentando reencontrar a si mesmo no meio daquela escuridão. Seu peito subia e descia com dificuldade, e as lágrimas, silenciosas, escorriam por seu rosto marcado pela dor e cansaço.
Com a voz trêmula, quebrada pela verdade que há tempos tentava esconder, ele sussurrou:
— Tô com medo da morte…
Mais uma lágrima caiu. Ele não olhava mais para a criança, mas para o vazio — para dentro de si mesmo.
— Eu não quero morrer… não quero sentir essa dor de novo…. Eu só… só queria ser forte… forte como eles.
Essas palavras não eram para os outros.Eram para si. Para o menino que havia perdido tanto… e que, mesmo assim, ainda lutava para continuar.
Aquela figura — o outro eu — também deixava lágrimas escorrerem. Mas eram lágrimas silenciosas, pesadas, tão antigas quanto a dor que compartilhavam. Ambos, no fim, eram o mesmo… e ambos estavam quebrando.
Takeshi tremia, ajoelhado, com o corpo fraco e a alma à beira do colapso. A voz dele saiu baixa, entre soluços, como se estivesse desabando por dentro:
— Eu… eu volto quando morro… pessoas morrem nesse mundo… monstros existem… e eu tenho medo… muito medo…
Seu choro se intensificou. As palavras vieram sem filtro, como facas cortando por dentro:
— Eu matei Akira… matei os outros… aqueles seres naquele vazio… — ele cobriu o rosto com os braços, tentando se esconder até de si mesmo. — Todo mundo tem poderes… todo mundo mata sem hesitar… até os seres divinos me causam medo…
O mundo ao redor mergulhou num silêncio pesado. Nenhum som, nenhum vento. Só a dor existia ali. E mesmo assim, ele continuou.
— Eu pensei que seria como nas histórias… onde alguém vai parar num mundo diferente e ganha tudo… poder… amigos… um propósito…
Ele gritou. Alto. Com o peso de todas as frustrações acumuladas:
— Eu não aguento esse mundo!
As palavras ecoaram como um trovão naquele vazio. E no centro de tudo, ali estava Takeshi…
Um garoto despedaçado por dentro, tentando entender quem ele era no meio de tanto sangue, medo e solidão.