Capítulo 46: O Relógio da Lua Vermelha

Após a descida, o buraco por onde haviam passado se fechou repentinamente, como se fosse uma ferida se regenerando. O som seco da madeira se uniu ao silêncio do ambiente, e logo uma fraca luz amarelada começou a iluminar o caminho, revelando a dimensão do espaço em que estavam.

Layos e Tsukiko se entreolharam, surpresos por perceberem que agora estavam presos ali. Já Igris, ao contrário dos dois, demonstrava um medo genuíno — seus dedos tremiam, assim como suas pernas.

— Gente... o que vamos fazer agora? — ele perguntou, com a voz trêmula e hesitante.

— Vamos continuar. Nada aqui assusta — disse Tsukiko, tentando tranquilizá-lo, enquanto tocava a parede à sua direita.

As paredes, feitas de pedras úmidas, davam ao local um aspecto antigo e abafado. As escadas sob seus pés eram de madeira marrom, marcadas por listras vermelhas que pareciam envelhecidas. A cada passo, os degraus rangiam de forma estranha, como se estivessem prestes a ceder.

Mesmo assustado com os sons que ecoavam a cada passo, Igris se forçou a seguir em frente, colado aos dois, sem coragem de ficar para trás.

Aquele lugar exalava uma aura estranha, quase opressora, como se algo — ou alguém — os observasse em silêncio. As fracas luzes que iluminavam o ambiente vinham debaixo das escadas, mas não era possível identificar a fonte exata. Não se via lâmpadas, apenas um brilho constante e enigmático.

— Será que eles realmente passaram por aqui? — perguntou Layos, em dúvida, sentindo um calor inesperado no ambiente fechado.

— Sinceramente? Acho que não — respondeu Tsukiko com convicção. — É mais provável que tenham seguido por outro caminho.

Quando Igris se preparava para dizer algo, chegaram ao final da longa descida.

Um fraco brilho azul os recebeu, iluminando o fim da escada. Assim que pisaram no novo ambiente, sentiram o chão mais denso, como se o peso do local recaísse também sobre os corpos. 

O piso era feito de um material semelhante a tijolos antigos, cobertos de rachaduras e poeira. O ar era seco e o cheiro, incômodo, carregado pela poeira acumulada ao longo do tempo.

No centro da sala, havia uma pequena mesa de madeira, coberta por uma espessa camada de pó. No canto direito, pedaços de madeira estavam espalhados sem ordem aparente. 

Para completar o cenário, pequenos parafusos enferrujados rodeavam a mesa, como se algo tivesse sido desmontado ali há muito tempo.

— Isso... é estranho — murmurou Igris, quase num sussurro.

Até então, ninguém havia notado, mas ao darem mais alguns passos, sentiram algo estranho sob os pés. Quando olharam para baixo, viram pedaços de carne com tons entre marrom e azul grudando nas solas de seus calçados. 

Rapidamente, afastaram-se e tentaram limpar, mas ao olharem à frente, perceberam que a substância se espalhava em maior quantidade pelo caminho.

— Aquilo é bizarro... — Tsukiko disse, com visível repulsa na expressão.

A carne pulsava suavemente, como se tivesse vida, batendo num ritmo parecido com o de um coração. As paredes ao redor estavam rachadas, mas pareciam estruturalmente firmes, como se resistissem ao tempo e ao próprio ambiente.

Continuaram avançando com cautela, atentos aos detalhes do lugar. Logo à frente, depararam-se com uma porta de ferro. No entanto, a mesma carne pulsante cobria sua superfície, impedindo qualquer tentativa de abri-la ou mesmo enxergar o que havia do outro lado.

— Melhor nem encostar nessas coisas — disse Layos, observando a porta coberta pela carne pulsante com uma expressão cautelosa.

Enquanto os outros ainda olhavam a cena à frente, Igris se afastou discretamente, seguindo para o lado esquerdo da sala. 

Seus olhos captaram algo incomum encostado na parede — uma estrutura triangular parcialmente encoberta pela poeira e pela penumbra.

Curioso, ele se aproximou com passos lentos. Era um objeto semelhante a um relógio, embora completamente estranho. No centro do triângulo, havia um osso giratório, e no meio dele, uma lua vermelha. 

O mecanismo parecia antigo, mas ainda funcionava de forma sobrenatural. Igris observou, intrigado, quando o osso girou lentamente em direção ao final do círculo — e, assim que chegou ao ponto final, a lua vermelha brilhou intensamente por um breve instante.

Ele recuou um passo, assustado, com o brilho repentino.

— Acho que… ativei alguma coisa — murmurou, olhando para os outros.

Tsukiko e Layos se aproximaram de Igris, que ainda encarava o estranho mecanismo como se esperasse que algo horrível surgisse do nada.

— A gente mal chega e já acontece alguma coisa estranha... — comentou Tsukiko, cruzando os braços com um suspiro, como se já estivesse acostumada com esse tipo de azar.

A lua vermelha no centro do triângulo continuava brilhando intensamente. O trio ficou observando em silêncio, esperando uma explosão, uma criatura, ou ao menos um som ameaçador.

— Hã? — Igris piscou algumas vezes, confuso. — Nada aconteceu?

Tsukiko olhou para ele com um semblante morto por dentro, como se tivesse desperdiçado toda sua tensão à toa.

— Você realmente tem medo de tudo, né? — ela disse, já se virando. — Layos, vem cá.

Sem esperar resposta, ela puxou Layos pelo braço até a porta recoberta pelas carnes pulsantes, parando bem perto.

— Você não disse que uma das suas habilidades é a força? — Tsukiko perguntou, encarando a porta com desdém. — Então... que tal usar esses músculos e abrir caminho? Vai que funciona no grito e no braço mesmo.

Layos engoliu em seco e respondeu com um meio sorriso:

— Claro, posso ajudar com isso… — Layos respondeu, hesitante. — Mas… só de olhar essa carne se movendo e sentir esse cheiro de coisa morta… já me dá náusea.

Ele fez uma careta de nojo, tentando afastar o impulso de recuar.

Tsukiko apenas lançou um olhar impaciente, como se aquilo fosse o menor dos problemas.

— Você consegue… esse tipo de coisa é normal pra mim — disse com frieza, cruzando os braços.

Ao dizer isso, involuntariamente se lembrou dos tempos em que precisava lidar com sacos de lixo pesados, alguns com odores insuportáveis… e, pior ainda, das vezes em que era obrigada a limpar banheiros. Memórias que ela preferia enterrar.

— Como assim ‘normal’? Você fazia algo antes disso? — Layos perguntou, com um tom curioso.

Tsukiko sentiu um arrepio subir pela espinha. O olhar dela se desviou por um instante.

— Não era nada especial. Enfim, vamos continuar — respondeu rapidamente, encerrando o assunto antes que se aprofundasse. Ela não queria que ninguém ali soubesse mais do que deveriam sobre seu passado.

— Tá bom, né… — disse Layos, ainda sem entender completamente, mas reunindo coragem para encarar a situação.

Respirou fundo, ajustou a postura e cerrou os punhos, sentindo a energia dourada se concentrar neles, pulsando com intensidade.

Tsukiko, cautelosa, recuou alguns passos para evitar ser atingida pelo impacto.

Então, com um grito abafado de esforço, Layos impulsionou o punho direito contra a porta. 

O golpe foi tão poderoso que o ar ao redor se transformou em uma onda de choque, arremessando pedaços de madeira para trás e fazendo as massas de carne se soltarem violentamente da entrada.

Uma nuvem de poeira subiu com força, encobrindo completamente a visão do grupo. Durante alguns segundos, ninguém conseguia enxergar nada. Quando a poeira finalmente começou a se dissipar, o silêncio pairou no ar.

Igris estava em choque, paralisado, sem acreditar no que acabara de acontecer.

Tsukiko olhou para a porta destruída e fez um gesto de ‘ok’ com os dedos, sorrindo de leve.

— Você é realmente bom nisso — elogiou, com um tom descontraído e um breve riso.

Layos, ao ouvir o elogio, abriu um sorriso satisfeito, sentindo-se orgulhoso de sua força.

Diante deles, a imponente porta de ferro agora jazia completamente destruída, partida ao meio, como se tivesse sido feita de vidro.

Layos e Tsukiko avançaram com passos cautelosos, enquanto Igris permanecia alguns instantes para trás. Seu olhar se fixou no estranho artefato triangular, o “relógio maluco”, que ainda brilhava com um intenso tom vermelho. Sem dizer uma palavra, ele o pegou com cuidado e então apressou o passo para alcançar os outros.

Ao atravessarem completamente o que restava da porta de ferro, foram recebidos por um cenário imponente e ao mesmo tempo perturbador.

Diante deles erguia-se um coração colossal — tão grande quanto uma mansão luxuosa. A estrutura orgânica parecia feita de carne ressecada e pulsava levemente com um brilho interno, como se escondesse algo vivo. No centro do brilho, era possível distinguir a silhueta de uma figura humana, imóvel, flutuando dentro da massa carmesim como se estivesse adormecida… ou presa.

O chão onde caminhavam era formado por pedras lisas, cuidadosamente dispostas em formato circular. A plataforma se estendia até os limites do espaço, terminando em um abismo profundo e escuro que se abria logo abaixo, sem sinal de fundo visível — apenas o vazio.

Acima, o teto cavernoso era um espetáculo à parte. Rochas se projetavam em espiral, como se a própria pedra tivesse sido moldada por mãos antigas e poderosas. A formação natural criava uma espécie de cúpula, onde a luz fraca refletia nos minerais e desenhava padrões suaves e quase hipnóticos.

— Ok… agora fiquei com medo — murmurou Tsukiko, com os olhos bem abertos, encarando o enorme coração à frente.

Layos, por sua vez, ficou maravilhado com a formação espiralada no teto. Seus olhos subiram, acompanhando cada curva das rochas, e por um breve instante, esqueceu-se completamente de onde estava. Seus pés vacilaram e ele quase perdeu o equilíbrio à beira do precipício.

— Preste atenção! — exclamou Igris, com a voz tomada pelo nervosismo, puxando Layos levemente pelo braço.

Layos ficou visivelmente nervoso por um instante.

— Desculpa… e obrigado por me salvar — disse ele, sinceramente.

Igris apenas assentiu com a cabeça, ainda atento ao redor.

Enquanto isso, Tsukiko caminhava com cautela, buscando uma nova perspectiva do enorme coração. Ao se posicionar mais ao lado, conseguiu enxergar algo que não havia notado antes: pequenos fios de carne se estendiam para baixo, como veias pulsantes, conectando o coração à base da estrutura.

“Talvez esse seja o coração que devemos destruir... ou será que não? É verdade, a tarefa mencionava dois corações. Será que são diferentes?" Pensava Tsukiko, enquanto recordava mentalmente as regras da missão.

Enquanto isso, Layos e Igris se aproximaram da beirada do precipício e começaram a observar a imensidão do buraco à frente. 

A profundidade era tamanha que não conseguiam enxergar o fundo — apenas uma escuridão densa, como se engolisse tudo ao redor. A atmosfera pesada e o silêncio opressor apenas aumentavam o mistério do lugar.

Com a mão direita, Tsukiko formou um cubo azul brilhante, que flutuava levemente entre seus dedos.

“Esse coração é enorme... Se eu explodir tudo de uma vez, pode dar problema. Odeio lidar com coisas gigantes...” pensou, franzindo o cenho.

Ela girou o cubo calmamente na palma da mão, avaliando a situação, e em seguida fez um gesto sutil, chamando Igris e Layos para se aproximarem. 

Os dois entenderam o sinal e começaram a contornar o espaço circular ao redor do coração, caminhando com cautela enquanto observavam cada detalhe do ambiente.

— Talvez a gente deva explodir isso, ok? — disse Tsukiko, girando o cubo azul entre os dedos com um leve sorriso, como se a ideia fosse óbvia.

— O quê?! Não, não, isso é loucura! — Igris recuou um passo, os olhos arregalados. — E se tudo desabar? E se esse negócio estiver segurando alguma coisa?

— Pode até ser loucura… — Layos respondeu, encarando o coração colossal com seriedade. — Mas eu concordo. Esse coração não parece nada bom. Melhor nos livrarmos dele antes que seja tarde demais.

Tsukiko e Layos assentiram com a cabeça, trocando um sorriso leve, quase divertidos com a situação. Igris permaneceu entre eles, visivelmente hesitante, mas sem forças para discordar — acabou aceitando as condições.

— Vou posicionar meus cubos no coração e detoná-lo — declarou Tsukiko com firmeza, observando atentamente os pequenos fios de carne que se estendiam para baixo. — Mas antes… talvez seja melhor encontrarmos uma saída daqui. Não quero acabar presos quando tudo isso começar a desmoronar.