O Olho Verde na Escuridão

O som de passos leves quebrou o silêncio. Mara descia as escadas com cuidado, equilibrando uma bacia de água morna em uma das mãos enquanto segurava um punhado de panos limpos na outra. Lia a seguia, os pezinhos descalços pisando com hesitação nos degraus rangentes, os cabelos castanhos desgrenhados emoldurando um rosto pálido de cansaço e medo. A menina segurava a barra da blusa da mãe como se fosse uma âncora, os olhos arregalados ainda carregando os ecos da noite horrível que haviam enfrentado.

Mara parou diante de Aiden, depositando a bacia sobre uma mesa torta ao lado dele. "Você salvou nossas vidas, Aiden," disse ela, a voz suave mas firme, carregada de uma gratidão que parecia pesar em cada palavra. "Deixe-me pelo menos cuidar de você. É o mínimo que posso fazer."

Aiden ergueu o olhar para ela, hesitando por um instante. Ele queria protestar, dizer que estava bem, que não precisava de ajuda — mas a verdade era que mal conseguia levantar o braço sem que uma pontada de dor o atravessasse. Ele assentiu, um gesto pequeno e cansado, e estendeu o braço esquerdo com relutância. "Obrigado, Mara," murmurou, a voz rouca de exaustão.

Mara se ajoelhou ao lado dele, mergulhando um dos panos na água morna antes de começar a limpar o ferimento. O contato do tecido úmido contra o arranhão fez Aiden cerrar os dentes, uma onda de dor subindo pelo braço como se alguém tivesse cravado uma faca em sua carne. Ele respirou fundo, tentando esconder o desconforto, mas Mara era atenta demais para não perceber. Enquanto esfregava suavemente o sangue seco, ela franziu a testa, os olhos castanhos estreitando-se ao examinar o corte mais de perto.

"Isso não parece normal," murmurou ela, a voz baixa, quase um sussurro para si mesma. A pele ao redor do arranhão estava escura, uma tonalidade arroxeada que não pertencia a um ferimento comum. Veias escuras se espalhavam a partir do corte como raízes retorcidas, pulsando ligeiramente sob a superfície. Mara hesitou, o pano pairando sobre o ferimento, antes de continuar com movimentos mais cuidadosos. "Parece... mais do que uma infecção."

Aiden sentiu um formigamento estranho percorrer seu braço, uma sensação que não explicava — como se algo vivo rastejasse sob sua pele. A dor crescia, transformando-se em um latejar constante que fazia seu estômago revirar, mas ele forçou um sorriso fraco, inclinando a cabeça para Mara. "É só um arranhão," disse, tentando soar confiante. "Já passei por coisa pior. Vou ficar bem."

Mara não respondeu de imediato. Ela terminou de limpar o ferimento em silêncio, pegando outro pano para enfaixá-lo com firmeza. Seus dedos trabalhavam com precisão, mas havia uma tensão em seus movimentos, uma preocupação que ela não conseguia esconder. Quando terminou, ergueu os olhos para ele, e por um instante seus olhares se cruzaram — o dela cheio de gratidão e dúvida, o dele carregado de uma determinação teimosa que mascarava o medo crescente em seu peito.

Após os cuidados, a sala caiu em um silêncio reconfortante, quebrado apenas pelo som da respiração leve de Lia, que adormecera encolhida em um canto próximo, sobre um cobertor dobrado que Mara improvisara como cama. O sol nascente inundava o ambiente com uma luz dourada, suavizando as sombras duras da noite passada. Aiden recostou-se na cadeira, o corpo ainda pesado, mas a mente começando a se acalmar. Mara sentou-se em um banquinho ao seu lado, as mãos cruzadas no colo, os olhos perdidos em algum ponto distante.

Aiden observou-a por um momento, notando as linhas de cansaço que marcavam seu rosto, o peso invisível que carregava desde que Joren fora levado. Ele conhecia aquele tipo de dor — a ausência que cortava mais fundo que qualquer lâmina. Pensou em Elara, sua irmã mais velha, e em Liana, sua mãe, ambas perdidas para o caos que engolira o mundo. A lembrança trouxe um aperto no peito, mas também uma faísca de empatia que o levou a quebrar o silêncio.

"Conte-me sobre Joren," pediu ele, a voz suave, quase hesitante. "Quero saber mais sobre ele."

Mara virou-se para ele, surpresa pela pergunta, mas um sorriso triste logo curvou seus lábios. Ela respirou fundo, como se reunisse as memórias de um lugar profundo e precioso dentro de si. "Joren era... especial," começou, os olhos brilhando com uma mistura de saudade e carinho. "Ele era alto, forte como um carvalho, com cabelos castanhos curtos que ele nunca conseguia manter arrumados. Tinha olhos verdes, gentis, da cor das folhas da floresta na primavera. E uma cicatriz no queixo — ele dizia que era de um tombo quando criança, mas eu sempre achei que o deixava mais charmoso."

Ela riu baixinho, um som fraco mas genuíno, e Aiden inclinou a cabeça, ouvindo com atenção. "Ele era muito família," continuou Mara. "Sempre gentil com todos ao redor. Os vizinhos o adoravam — se alguém precisava de ajuda para consertar uma cerca ou colher ervas medicinais na floresta, Joren era o primeiro a oferecer uma mão. Mas com a gente, comigo e com Lia, ele era ainda mais. Lembro de uma vez, quando Lia era bem pequena, ela viu um doce na vila — um daqueles caramelos embrulhados em papel colorido. Os olhos dela brilharam como se fosse a coisa mais mágica do mundo. Joren não tinha dinheiro na hora, mas correu até a cidade, uma caminhada de horas, só para comprar aquele doce para ela. Voltou suado, ofegante, mas com um sorriso enorme, como se tivesse encontrado o maior tesouro."

Aiden sorriu com a história, imaginando o homem robusto que Mara descrevia, um contraste com a fragilidade da situação atual. Ele podia sentir o amor nas palavras dela, o vazio que Joren deixara para trás. "Ele parece ter sido um ótimo pai," disse, a voz carregada de respeito. "E um ótimo marido."

"Era," respondeu Mara, o tom suavizando-se em tristeza. "Por isso ainda tenho esperança. Talvez ele esteja lá fora, esperando por nós."

Aiden assentiu, o peso da promessa que fizera a si mesmo crescendo em seu peito. Ele perdeu Elara e Liana, mas talvez pudesse evitar que Mara perdesse Joren para sempre. "Vou encontrá-lo," disse, firme. "Se ele estiver na floresta, eu o trarei de volta."

Mara olhou para ele, os olhos marejados, mas não disse nada. Apenas assentiu, um gesto pequeno que carregava mais gratidão do que palavras poderiam expressar.

Após um breve descanso, Aiden decidiu que era hora de agir. O sol já estava mais alto no céu, e cada minuto que passava era um minuto a mais que Joren poderia estar em perigo. Ele se levantou da cadeira, ignorando o protesto de seus músculos doloridos, e ajustou a foice em suas costas — a arma que herdara de sua mãe, marcada com runas que ele ainda não compreendia totalmente. Mara o observou em silêncio enquanto ele se preparava, a preocupação evidente em seu rosto.

"Você tem certeza disso?" perguntou ela, hesitante. "Você mal descansou, e esse ferimento..."

"Não posso esperar," respondeu Aiden, a voz determinada. "Se Joren está vivo, cada segundo conta."

Mara não insistiu, mas entregou-lhe um pequeno embrulho de pano com pão seco e uma garrafa d'água. "Então leve isso," disse. "E volte vivo. Por favor."

Aiden pegou o embrulho com um aceno de cabeça, agradecido pela preocupação dela. Ele olhou uma última vez para Lia, ainda dormindo pacificamente, antes de sair pela porta quebrada da casa e seguir as pegadas que levavam à floresta oeste.

O caminho começou fácil, com marcas claras de arrasto na terra macia próxima à fazenda, mas logo a vegetação se tornou mais densa. Árvores altas e retorcidas erguiam-se ao seu redor, os galhos entrelaçados bloqueando grande parte da luz do sol. O ar era úmido e pesado, carregado com o cheiro de musgo e decomposição. Aiden seguia as pegadas com cuidado, notando sulcos profundos no chão onde algo — ou alguém — fora arrastado contra a vontade.

Enquanto caminhava, a dor em seu braço esquerdo intensificou-se, transformando-se em uma queimação que parecia subir até o ombro. Ele parou por um instante, puxando a manga da camisa para examinar o ferimento. O que viu fez seu coração acelerar: a pele ao redor do corte estava ainda mais escura, quase negra, com veias arroxeadas pulsando de forma anormal, como se algo vivo corresse por elas. O formigamento que sentira antes agora era uma coceira insistente, acompanhada por espasmos leves que faziam seus dedos tremerem. Ele cerrou o punho, tentando ignorar a sensação, mas uma dúvida sombria começou a crescer em sua mente. Isso não é uma infecção comum, pensou. É algo mais. Algo... maligno.

Aiden respirou fundo, empurrando o medo para o fundo de sua consciência. Ele não podia se dar ao luxo de hesitar agora. Joren precisava dele — Mara e Lia precisavam dele. Com um esforço renovado, ele continuou, a floresta ficando mais sombria a cada passo. Os sons ao seu redor eram abafados, como se o próprio ar estivesse prendendo a respiração: o farfalhar das folhas, o canto distante de um pássaro, o estalo ocasional de um galho sob seus pés.

Após o que pareceram horas, Aiden chegou a uma clareira. A vegetação densa abriu-se subitamente, revelando um espaço circular onde a luz do sol mal tocava o chão, filtrada por um dossel espesso de folhas. Ele quase passou direto, mas um som fraco o fez congelar — um grito abafado, quase inaudível, vindo de algum lugar à sua frente. Ele estreitou os olhos, examinando a clareira, até que notou uma abertura escondida por musgos e folhagem densa: uma caverna, quase invisível contra a rocha coberta de vegetação.

Aiden aproximou-se com cautela, o coração batendo forte no peito. O grito veio novamente, mais claro agora. Ele afastou a folhagem com as mãos, revelando a entrada escura da caverna, e hesitou por um instante. O ar que saía de dentro era frio e úmido, carregando um leve cheiro de podridão. Mas não havia escolha. Se Joren estava lá dentro, ou se alguém precisava de ajuda, ele tinha que entrar.

Com a foice em mãos, Aiden adentrou a caverna. O interior era um túnel estreito de pedra, as paredes rochosas úmidas ao toque. Seus olhos levaram um momento para se ajustar à escuridão, mas logo ele começou a perceber detalhes perturbadores: marcas de sangue fresco manchavam as paredes, escorrendo em linhas finas até o chão. Roupas sujas e rasgadas estavam espalhadas pelo caminho — um pedaço de tecido cáqui, uma bota velha, e então algo que fez seu estômago revirar: um retalho de uma camisa xadrez, rasgada e manchada de vermelho escuro. Ele se lembrou das palavras de Mara: Joren estava vestindo uma camisa xadrez quando foi levado. A coincidência o deixou inquieto, mas ele não podia ter certeza ainda.

O túnel se alargou conforme ele avançava, o som dos gritos ficando mais alto. Finalmente, ele chegou ao fundo da caverna, onde a luz de tochas tremeluzentes iluminava uma cena que o fez parar abruptamente. No centro do espaço, uma garota estava amarrada a uma pedra irregular, os pulsos e tornozelos presos por cordas grosseiras que cortavam sua pele. Ela era jovem, e mesmo machucada era impossível não notar sua beleza: cabelos negros como a noite caíam em mechas desordenadas sobre o rosto, e os olhos azuis, brilhantes como o oceano, estavam arregalados de medo e dor. Ela vestia trajes brancos que poderiam ter sido elegantes um dia, mas agora estavam rasgados e manchados de sangue.

Três figuras a cercavam, vestidas com robes pretos bordados com fios dourados que refletiam a luz das tochas. Eram cultistas, murmurando palavras em uma língua gutural que Aiden não reconhecia, as mãos erguidas em um ritual que fazia o ar parecer vibrar com energia sombria. Mas o que chamou sua atenção foi a quarta figura: um zumbi, maior e mais imponente que os que enfrentara na fazenda. Ele estava parado, imóvel, observando a garota com uma postura que parecia quase consciente. Seu corpo era robusto, mesmo em decomposição, e ele vestia uma camisa xadrez rasgada e calças de trabalho — roupas que ecoavam a descrição de Joren. Aiden sentiu um calafrio percorrer sua espinha, mas não havia tempo para processar o que aquilo significava.

Ele precisava agir. A garota precisava de ajuda, e se aquele zumbi fosse mesmo Joren, talvez ainda houvesse uma chance de salvá-lo. Aiden recuou um passo, escondendo-se nas sombras, e começou a planejar. Ele poderia usar uma estratégia furtiva: pegar uma pedra do chão e jogá-la para o lado oposto da caverna, distraindo os cultistas, e então avançar contra o zumbi com a "Ceifadora das Sombras". A habilidade ainda era instável, uma energia sombria que ele mal controlava, mas era sua melhor chance.

Com cuidado, ele se abaixou e pegou uma pedra pequena, ajustando a foice na mão direita. Ele respirou fundo, preparando-se para o movimento, mas o destino tinha outros planos. Ao dar um passo à frente, seu pé encontrou uma poça d'água escondida na escuridão, e o som do respingo ecoou pela caverna como um trovão. Aiden congelou, o coração disparando, mas já era tarde.

Os três cultistas se viraram ao mesmo tempo, os rostos encapuzados revelando olhos arregalados de surpresa e raiva. "Intruso!" gritou um deles, a voz áspera cortando o ar. Eles ergueram as mãos, e Aiden viu um brilho dourado começar a se formar entre seus dedos — magia, ele percebeu, sentindo um arrepio de pavor.

Então o zumbi se moveu. Ele virou-se lentamente, o corpo rígido mas imponente, e pela primeira vez Aiden viu seu rosto — ou o que restava dele. A pele estava pálida e podre, pedaços faltando onde a decomposição avançara, mas um detalhe o fez engolir em seco: ao invés dos olhos fundos e sem vida típicos dos zumbis, este tinha um olho verde brilhante, reluzindo com uma intensidade sobrenatural. aquele olhar se fixou em Aiden, atravessando-o como uma lâmina, carregado de algo que ele não conseguia nomear — raiva, reconhecimento, ou algo pior.

A tensão no ar era palpável, quase sufocante. Os cultistas avançaram um passo, as mãos ainda brilhando com energia mágica. O zumbi deu um passo à frente, o olho verde nunca desviando de Aiden, enquanto um rosnado baixo escapava de sua garganta morta. Aiden apertou a foice com mais força, o peso da responsabilidade e do medo lutando dentro dele. Ele estava exausto, ferido, e enfrentando inimigos que não entendia completamente — mas recuar não era uma opção.

A caverna parecia encolher ao seu redor, o som de sua própria respiração ecoando em seus ouvidos. Ele sabia que um confronto estava prestes a começar, e não tinha certeza se sairia vivo dele.