Ela hesitou, mas havia algo na sinceridade desajeitada dele que a fez baixar a pá lentamente. "Entre," disse, abrindo espaço. O jovem — Thomas, como ele se apresentou depois — passou pelo limiar, os olhos inquietos percorrendo o caos do chalé. A porta pendia torta nas dobradiças, as janelas estavam quebradas, deixando o vento frio assobiar pelas frestas, e o chão estava coberto de destroços — tábuas partidas, cacos de vidro e manchas escuras de sangue seco que contavam uma história de violência recente. Mas antes de dizer qualquer coisa, ele foi direto até Aiden, os passos rápidos ecoando na madeira rangente, o rosto tomado por uma preocupação que fazia suas sobrancelhas se franzirem e os lábios se apertarem em uma linha tensa. Ajoelhou-se ao lado do amigo, a mão pairando sobre o curativo ensanguentado no flanco, os dedos tremendo como se temesse tocar e piorar a situação.
"Aiden… você tá vivo?" murmurou Thomas, a voz baixa e carregada de alívio hesitante. Ele observou o curativo ensanguentado no flanco de Aiden, as veias negras pulsando sob a pele pálida do braço esquerdo, um sinal inquietante de algo além de um simples ferimento. Thomas esfregou a nuca, um hábito nervoso, antes de se virar para Mara, que observava em silêncio perto da lareira. "O que aconteceu aqui? Ele tá muito machucado? Quem é a menina ali?" perguntou, apontando para a figura encolhida no colchão ao lado de Aiden, uma garota de olhos azuis arregalados que parecia perdida em um mundo próprio.
Mara suspirou, o peso das últimas horas visível em seus ombros caídos. "Zumbis atacaram a fazenda. Aiden lutou pra nos proteger, mas tá ferido. A menina… ele a resgatou de uma caverna. Não sei quem ela é, mas tá claro que passou por algo terrível." Sua voz era firme, mas havia uma suavidade ali, um eco de gratidão por aqueles que ainda estavam vivos.
Thomas assentiu, processando as palavras enquanto jogava o saco de lona sobre a mesa torta. "Eu trouxe comida — pão, carne seca, algumas ervas. Posso ficar e ajudar. Sei consertar coisas… posso arrumar o chalé, se você deixar." Sua oferta saiu desajeitada, mas sincera, os olhos buscando aprovação.
Mara o encarou por um momento, avaliando-o, antes de assentir. "Obrigada, Thomas. Fique o tempo que precisar."
Sem perder tempo, Thomas começou a trabalhar. Pegou um martelo e um punhado de pregos de sua bolsa de couro e foi até a porta quebrada. O som do martelo contra a madeira ecoou no chalé — tum, tum, tum —, um ritmo firme mas hesitante, como se ele temesse errar. Ele alinhou uma tábua nova sobre as dobradiças tortas, o cheiro de madeira fresca cortando o ar pesado de terra úmida e sangue seco. Depois, moveu-se para as janelas, pregando tábuas soltas para selar as brechas, o vidro estilhaçado tilintando sob seus pés enquanto ele trabalhava. O vento parou de uivar dentro do chalé, substituído pelo som constante de seus esforços.
Enquanto martelava, ele notou Lia, a filha de Mara, sentada no chão com um pedaço de madeira e um prego, imitando seus movimentos. Seus olhos castanhos brilhavam de curiosidade, e Thomas sorriu, abaixando-se ao lado dela. "Ei, quer ajuda?" perguntou, a voz suave. Ela assentiu, e ele pegou o martelo, mostrando como segurá-lo. "Mira bem no prego e bate com força, mas não demais, senão a madeira racha." Lia tentou, o prego entrando torto mas firme, e sorriu orgulhosa. "Boa menina!" disse Thomas, bagunçando seus cabelos, um gesto que trouxe um raro momento de leveza ao chalé.
Ele continuou, consertando a mesa que balançava precariamente, martelando as pernas até que ficassem firmes, o suor escorrendo por sua testa enquanto serrava pedaços de madeira para substituir as partes quebradas. As cadeiras vieram em seguida — ele as recolheu do chão, alinhando-as com cuidado, pregando cada tábua solta com uma atenção quase reverente, como se cada prego fosse um passo para devolver ao chalé um senso de normalidade. Mara observava em silêncio, segurando uma tigela de ensopado que preparava na lareira, o cheiro de carne e ervas começando a se misturar ao aroma de madeira recém-cortada.
Horas se passaram, o sol subindo no céu e lançando feixes de luz pelas janelas consertadas, iluminando o rosto exausto mas determinado de Thomas. Ele não parava, movendo-se de uma tarefa a outra — da porta às janelas, da mesa às cadeiras, e até mesmo às rachaduras nas paredes, onde pregava tábuas para impedir a entrada do frio. O chalé, antes um esqueleto de destruição, começava a se transformar, os sons de marteladas e serradas ecoando como uma promessa de reconstrução.
Enquanto Thomas trabalhava, Lyra permanecia em silêncio no colchão, os olhos fixos em um ponto invisível, o corpo tenso como se ainda estivesse preso às cordas da caverna. Aiden, ainda inconsciente ao seu lado, gemia de vez em quando, a febre o fazendo tremer sob o cobertor puído. Foi só quando o sol estava alto que ele finalmente acordou, um gemido rouco escapando de seus lábios. Thomas largou o martelo e correu até ele, ajoelhando-se ao seu lado. "Aiden! Você tá bem?" perguntou, o alarme evidente em sua voz.
Aiden abriu os olhos, o verde embaçado pela dor, e forçou um sorriso fraco. "Já estive melhor," murmurou, a respiração entrecortada. Ele tentou se sentar, mas a dor em seu flanco o fez recuar, o curativo ensanguentado um lembrete vívido da batalha que enfrentara.
Thomas ficou ao seu lado enquanto Aiden, com esforço, agarrou sua foice e a usou como muleta para se levantar. Cambaleando, ele foi até Lyra, sentando-se ao seu lado no colchão. Ela o encarou, os olhos azuis encontrando os dele, e por um momento, o silêncio entre eles foi mais pesado que as palavras. "Oi," disse ele, a voz gentil. "Como você tá?"
"Melhor," sussurrou ela, hesitante. "Obrigada… por me salvar."
"Que bom que você tá bem. Qual seu nome?"
"Lyra," respondeu ela, a voz tremendo como uma folha ao vento.
"Lyra," repetiu Aiden, o tom suave. "Sou Aiden. Quer me contar o que aconteceu?"
Ela hesitou, o corpo enrijecendo enquanto as memórias a inundavam como uma tempestade. Quando falou, sua voz era um fio quebradiço, cada palavra carregada de dor. "Eu viajava com minha família. Éramos mercadores — minha mãe, meu pai, meus dois irmãos menores. A gente levava uma carroça cheia de tecidos, coisas simples que vendíamos nas vilas. Era uma vida boa… tranquila. Meu pai guiava os cavalos, rindo enquanto contava histórias de cavaleiros enfrentando dragões. Minha mãe cantava canções de ninar, e eu sentia o cheiro de lavanda no cabelo dela enquanto ela fazia tranças no meu. Meus irmãos corriam ao redor da carroça, brincando de pega-pega, suas risadas enchendo o ar quente da tarde."
Aiden ouviu em silêncio, o coração apertando com o prenúncio do que viria.
"Era um dia comum, o sol alto, a estrada poeirenta esticando-se à nossa frente. Então ouvi os cascos — pesados, rápidos, como trovões. Meu pai virou-se, e o sorriso dele… sumiu. Ele viu os cultistas antes de mim. Vestiam robes pretos que pareciam engolir a luz, e seus olhos eram frios, mortos. 'Corram!' ele gritou, mas não havia pra onde ir. Eles nos cercaram em segundos, suas espadas brilhando ao sol. Pegaram minha mãe primeiro. Eu vi as cordas ásperas cortando os pulsos dela enquanto a arrastavam da carroça. Ela implorou, a voz quebrando, mas eles riram — um som gutural, como demônios gargalhando. Tentei correr até ela, mas um deles me agarrou pelo braço, os dedos como ferro. Chutei, gritei, mas ele me jogou no chão. Minha boca encheu-se de terra e sangue, o gosto amargo grudando na língua."
As lágrimas começaram a escorrer pelo rosto de Lyra, silenciosas mas incessantes. "Levantei a cabeça e vi eles jogando óleo na minha mãe. O cheiro acre queimou meu nariz, e então ouvi o estalo de um isqueiro. As chamas subiram rápido, lambendo o ar, e os gritos dela… Aiden, eram como facas na minha alma. Um lamento primal, rasgando tudo dentro de mim. Eu queria correr, mas minhas pernas não se moviam, pesadas como pedra. Meu pai pegou o machado da carroça, derrubou um deles com um golpe, o sangue espirrando na terra. Mas eram muitos. Um o acertou por trás, a espada cortando fundo no ombro. Ele caiu de joelhos, o sangue escorrendo em rios vermelhos pela camisa, mas ainda tentou se levantar. Seus olhos encontraram os meus, e ele sussurrou 'Vá, Lyra', antes de desabar, as lâminas caindo sobre ele até que não restasse mais nada além de carne e osso."
Ela parou, o peito subindo e descendo rápido, as mãos agarrando o cobertor como se fosse sua única âncora. "Meus irmãos… o menor, de seis anos, foi levantado como se fosse um brinquedo. O cultista o jogou contra uma árvore, e eu ouvi o estalo do pescoço dele quebrando, o som ecoando na minha cabeça. O outro, de oito, correu, os pés chutando a poeira, mas foi pego. A faca cortou sua garganta, e o sangue jorrou como uma fonte, quente e vermelho, manchando a terra. Eu caí de joelhos, gritando até minha voz falhar, mas ninguém veio. Algo dentro de mim se quebrou ali, e eu achei que tinha morrido com eles."
O ar no chalé parecia mais frio, o fogo na lareira tremendo como se sentisse o peso da história. Lyra continuou, as palavras agora um sussurro rouco. "Os cultistas me levaram depois disso. Me arrastaram pra uma caverna escura, o chão gelado contra minha pele. Me bateram com varas até eu cuspir sangue, me chutaram até meus ossos doerem como se fossem se partir. Me amarraram numa pedra fria, o corpo exposto, o ar úmido grudando na pele. Disseram que eu seria um sacrifício pro deus deles, e eu podia sentir o cheiro de podridão e enxofre no ar, os cânticos deles ecoando nas paredes. Eu fechei os olhos, esperando o fim, ouvindo os gritos da minha família na minha mente como um coro infinito."
Ela olhou para Aiden, os olhos marejados brilhando à luz do fogo. "Mas você apareceu. Uma sombra na escuridão, sua foice cortando o ar como um trovão. Você matou eles, me tirou daquela pedra, me carregou pra fora. Eu não sei como te agradecer… mas você me deu uma segunda chance."
Aiden respirou fundo, ignorando a dor que pulsava em seu flanco, e falou em um tom baixo e gentil: "Lyra… eu não consigo nem imaginar o que você tá sentindo agora. O que aconteceu com sua família… é horrível, e não tem nada que eu possa dizer pra consertar isso." Ele fez uma pausa, procurando as palavras certas, os olhos verdes fixos nela com uma mistura de empatia e respeito. "Mas você não tá sozinha. Você tem a gente agora — eu, Mara, Thomas, Lia. Vamos te ajudar a passar por isso, um passo de cada vez."
Lyra não respondeu de imediato. As lágrimas continuavam a escorrer silenciosamente por seu rosto, pingando no cobertor, e seu corpo permanecia encolhido, como se quisesse se proteger do mundo. Aiden hesitou, sentindo o impulso de tocar seu ombro ou puxá-la para perto, mas algo o deteve. Ele notou a tensão em seus ombros, o modo como ela parecia se retrair, e percebeu que um gesto físico poderia ser demais para ela naquele momento — talvez até a assustasse.
Em vez disso, ele estendeu a mão devagar, deixando-a pairar no ar entre eles, sem tocá-la. "Se você quiser, pode segurar minha mão," ofereceu, a voz suave como um sussurro. "Ou não, se não estiver pronta. Só quero que você saiba que eu tô aqui."
Lyra ergueu os olhos, encontrando os dele. Havia um brilho de gratidão misturado ao medo, como se ela estivesse lutando para confiar novamente. Após um longo momento, ela estendeu a mão trêmula, os dedos frios roçando os dele num toque leve, hesitante. Não foi um aperto firme, apenas um contato sutil, mas suficiente para Aiden sentir que ela estava começando a se abrir, mesmo que pouco.
"Obrigada," sussurrou ela, a voz rouca e frágil. "Por me salvar… por tudo."
Aiden assentiu, apertando de leve a mão dela, com cuidado para não pressionar demais. "Você não precisa me agradecer. Só… tenta descansar agora, tá bem? A gente vai cuidar de você."
Lyra respirou fundo, tentando controlar os soluços que ainda tremiam em seu peito. Ela soltou a mão dele lentamente, puxando o cobertor mais para perto de si, mas seus olhos permaneceram fixos nos de Aiden por mais um instante, como se aquelas palavras tivessem acendido uma pequena faísca de esperança. Ela não estava pronta para abraços ou proximidade maior, mas o apoio verbal e o gesto contido pareciam ter alcançado um canto profundo de sua alma ferida.
Mara, que observava da lareira, aproximou-se com uma tigela de ensopado fumegante. "Querida, tenta comer um pouco," disse com uma voz calma e maternal, colocando a tigela ao lado de Lyra. "Vai te ajudar a recuperar as forças."
Lyra assentiu levemente, pegando a colher com mãos trêmulas. Aiden se levantou devagar, a dor em seu flanco protestando, mas ele a ignorou. "Eu vou ficar por aqui," disse a ela. "Se precisar de mim, é só chamar."
Ela o encarou por um momento antes de desviar o olhar para a tigela, começando a comer em silêncio. Enquanto isso, o som do martelo de Thomas continuava ao fundo, um ritmo constante que parecia trazer um pouco de ordem ao caos daquele dia.
Thomas, agora trabalhando na parede ao lado da lareira, media uma tábua para selar uma rachadura que deixava o frio entrar. O som da serra zumbia enquanto ele cortava a madeira, as lascas caindo no chão como flocos de neve. Ele pregou a tábua com cuidado, cada golpe do martelo ecoando no chalé, até que a parede estivesse firme. O ar dentro ficou mais quente, o fogo da lareira ganhando força, e o chalé, aos poucos, tornava-se um lar novamente.
Quando terminou, Thomas se sentou à mesa consertada, exausto mas satisfeito. Mara trouxe uma tigela de ensopado, o cheiro rico de carne e ervas enchendo o ar. "Coma," disse ela, colocando a tigela na frente dele. "Você trabalhou duro hoje."
Thomas sorriu, pegando a colher. "Obrigado, Mara." Ele comeu em silêncio, o som da colher contra a tigela misturando-se ao crepitar do fogo. Lia se juntou a ele, uma tigela menor na frente dela, imitando seus movimentos com uma seriedade adorável.
Depois da refeição, Thomas se levantou, os músculos protestando com o esforço do dia. "Vou voltar pra guilda," disse, olhando para Aiden. "Mas eu volto pra ver como você tá."
Aiden assentiu, um sorriso fraco mas genuíno em seu rosto. "Obrigado, Thomas. Por tudo."
Thomas bagunçou os cabelos de Lia uma última vez, deu um aceno para Mara e Lyra, e saiu do chalé, o sol poente tingindo o céu de laranja e rosa enquanto seus passos ecoavam na estrada vazia.