O amanhecer chegou tímido, infiltrando-se pelas janelas da enfermaria da guilda como uma promessa hesitante de um novo dia. Thomas acordou lentamente, o cheiro de ervas medicinais enchendo suas narinas, misturado ao aroma suave de antissépticos que pairava no ar. O som distante de passos ecoava no corredor, um lembrete de que a guilda já começava a despertar para mais uma rotina de missões e aventuras. Ele piscou, os olhos pesados de sono e exaustão, e tocou o ombro enfaixado com cuidado, sentindo a dor latejante que pulsava sob as bandagens. Seu corpo inteiro parecia protestar a cada movimento, mas essa dor física era quase um sussurro comparada ao peso esmagador que carregava no peito — uma mistura de culpa, tristeza e luto que o sufocava desde a missão desastrosa contra os goblins.
Ele virou a cabeça devagar e olhou para a cama ao lado. O menino resgatado dormia profundamente, o rosto agora limpo de sujeira e os curativos frescos cobrindo os hematomas que marcavam sua pele magra. Mesmo em repouso, havia uma sombra de trauma em sua expressão, os lábios ligeiramente entreabertos soltando respirações curtas e inquietas. Thomas sentiu um aperto no coração. Ele havia salvado o garoto, sim, mas a que custo? As imagens de Gareth e Lyanna, caídos no campo de batalha, o sangue manchando a terra, e de Mira, sacrificando-se para que ele pudesse escapar com o menino, voltaram em flashes vívidos. A culpa era uma corrente invisível que o prendia, mas, ao mesmo tempo, algo mais começava a crescer dentro dele — uma determinação silenciosa, um desejo ardente de honrar seus companheiros perdidos e garantir que o sacrifício deles não fosse em vão.
Com esforço, Thomas se levantou da cama, o ranger das tábuas sob seus pés ecoando no quarto silencioso. Ele vestiu a túnica rasgada, o tecido áspero cheirando a suor seco e sangue velho, e cada movimento era uma batalha contra a exaustão que ainda o dominava. Seus olhos castanhos, embaçados pela falta de sono, fixaram-se por um momento no menino antes de ele se dirigir ao salão principal da guilda. Precisava fazer algo, qualquer coisa, para aliviar o peso que carregava.
O salão, geralmente um caos de vozes e movimento, estava estranhamente tranquilo naquela manhã. Apenas alguns aventureiros conversavam em sussurros em um canto, o tilintar ocasional de uma armadura quebrando o silêncio. Thomas caminhou até o balcão, esperando encontrar Elisa, a recepcionista ruiva cujo sorriso caloroso sempre o acolhia, mas, em vez dela, viu uma jovem diferente. Clara, a nova recepcionista, tinha cabelos castanhos presos em um coque apertado e óculos redondos que refletiam a luz das velas. Ela ergueu o olhar do livro de registros e o cumprimentou com uma voz profissional, mas tingida de gentileza.
— Bom dia. Em que posso ajudar? — perguntou, ajustando os óculos com um gesto rápido.
Thomas baixou os olhos por um instante, depois os ergueu para Clara. — O menino... o que vai acontecer com ele?
Clara franziu a testa, pegando um pergaminho e uma pena. — Ele será encaminhado para um centro de adoção. A guilda tem um programa para órfãos de missões ou vítimas como ele. Vamos tentar encontrar a família dele, se ainda tiver uma. Caso contrário, encontraremos um novo lar. Você fez um grande trabalho ao salvá-lo, Thomas. Ele está seguro agora, graças a você.
Thomas sentiu um pequeno alívio, como se uma pedra tivesse sido tirada do monte que carregava, mas a preocupação ainda o corroía. — Ele vai ficar bem mesmo?
— Sim, ele está em boas mãos — respondeu Clara, com um sorriso gentil que suavizou suas feições. — E você também. Mas vejo que há mais em sua mente. O que mais posso fazer por você?
Ele respirou fundo, entregando o formulário da missão que havia preenchido na enfermaria, as palavras rabiscadas em uma caligrafia trêmula. — Aqui está o relatório. Detalhei tudo: a luta contra os goblins, a emboscada do Hobgoblin, as mortes de Gareth e Lyanna... e Mira, que ficou pra trás pra que eu e o menino pudéssemos escapar. — Sua voz falhou, e ele engoliu em seco, lutando contra as lágrimas que ameaçavam escapar. — Eu preciso voltar lá. Preciso derrotar aquele Hobgoblin e recuperar os corpos dos meus amigos. Eles merecem um enterro digno.
Clara anotava tudo com atenção, os olhos arregalados de preocupação enquanto lia o relato. — Sinto muito pela sua perda, Thomas. Entendo seu desejo, mas você está ferido e exausto. Voltar agora seria perigoso.
— Eu sei — disse ele, a voz firme apesar da dor que sentia. — Por isso preciso de ajuda. Há algum aventureiro de rank mais alto disponível pra me acompanhar?
Clara pensou por um momento, folheando um livro de registros com dedos ágeis. — Sim, há um aventureiro experiente que acabou de chegar de uma missão. Oloorin está hospedado na taverna "Dragão Dorminhoco". Você pode procurá-lo lá.
Thomas memorizou o nome, sentindo um fio de esperança se acender. — Oloorin... Ele é confiável?
— Sim, ele é um mago de meia-idade, alto, com uma presença marcante e um jeito sábio. Tem cabelos grisalhos e uma barba bem cuidada, e suas vestes bordadas com runas refletem sua experiência. Ele é conhecido por sua paciência com novatos e por sua habilidade em combate. Se você explicar sua situação, acredito que ele concordará em ajudar — respondeu Clara, com um tom de confiança.
— Obrigado, Clara — disse Thomas, o alívio suavizando sua expressão. — Mais uma coisa: se eu encontrar os corpos, devo trazer as carteirinhas da guilda de Gareth e Lyanna?
— Sim, se possível. Isso ajudará a confirmar as identidades deles e a atualizar os registros da guilda. Boa sorte, Thomas — disse ela, com um aceno de encorajamento.
Com isso, Thomas deixou o salão e seguiu para a taverna "Dragão Dorminhoco". O lugar era acolhedor, com paredes de pedra e vigas de madeira expostas, o cheiro de lenha queimando na lareira misturado ao aroma de ensopado de carne e pão fresco. O som de conversas baixas e o tilintar de canecas criavam uma atmosfera tranquila, quase reconfortante. Ele avistou Oloorin em um canto, uma figura imponente com uma caneca na mão, vestindo um manto azul-escuro bordado com runas prateadas que brilhavam à luz das velas. Seu cabelo grisalho estava preso em um rabo de cavalo, e sua barba bem cuidada emoldurava um rosto marcado pela sabedoria e pela experiência.
Thomas se aproximou, hesitante. — Com licença, você é Oloorin?
O mago ergueu o olhar, seus olhos azuis penetrantes avaliando Thomas com uma mistura de curiosidade e calma. — Sim, sou eu. Quem quer saber?
— Eu sou Thomas. Clara, da guilda, me disse que você poderia me ajudar — começou ele, respirando fundo para reunir coragem. Ele explicou tudo: a missão fracassada, a perda de Gareth e Lyanna, o sacrifício de Mira e seu desejo de voltar para derrotar o Hobgoblin e dar um enterro digno aos amigos.
Oloorin ouviu em silêncio, os olhos fixos em Thomas, como se o medisse por dentro e por fora. Quando ele terminou, Oloorin tomou um gole da caneca e assentiu lentamente. — Você é corajoso, garoto, mas também é impulsivo. Voltar lá agora, ferido como está, é arriscado. Mas entendo sua motivação. Eu vou com você.
Thomas sentiu um alívio imenso, como se o chão sob seus pés tivesse ficado mais firme. — Obrigado, Oloorin. Eu não sei como te agradecer.
— Não precisa agradecer. Vamos comer algo primeiro e planejar nossa abordagem. Não quero ir às cegas — respondeu Oloorin, com um tom prático que escondia um leve calor.
Eles compartilharam uma refeição simples — pão fresco, ensopado de carne e uma bebida quente —, discutindo o plano enquanto o aroma da comida enchia o ar. Oloorin sugeriu seguir o mesmo caminho até o acampamento, mas com cautela, pois o Hobgoblin poderia estar à espreita. Thomas concordou, sentindo-se mais confiante com a presença experiente do mago ao seu lado.
Após a refeição, eles partiram da cidade, seguindo o trajeto que Thomas já conhecia bem: a estrada de terra, os campos abertos e a floresta densa. Cada passo trazia de volta memórias da fuga desesperada — o som dos galhos estalando sob seus pés, o vento sussurrando entre as folhas, o cheiro de terra úmida misturado ao medo que ainda parecia impregnado no ar. Eles procuraram sinais de Mira ao longo do caminho, os olhos de Thomas vasculhando cada arbusto e sombra, mas não encontraram nada: nem seu corpo, nem um pedaço de tecido do vestido cinza que ela usava. A incerteza sobre o destino dela o deixou angustiado, o coração apertado com a possibilidade de que ela pudesse estar viva — ou de que ele a tivesse abandonado para morrer.
— Ela pode ter escapado — disse Oloorin, quebrando o silêncio enquanto atravessavam um riacho, a água gelada encharcando suas botas. — Mira parecia uma cleriga habilidosa. Talvez tenha encontrado uma maneira de fugir.
Thomas assentiu, mas a dúvida persistia como uma sombra em sua mente. Ele não podia deixar de se sentir responsável pelo que havia acontecido.
Quando chegaram ao acampamento goblin, o cenário era de devastação: tendas queimadas, corpos de goblins espalhados pelo chão e um silêncio pesado que parecia sufocar o ar. O cheiro de terra úmida e sangue seco misturava-se ao odor acre de carne queimada, vindo das cinzas de uma fogueira extinta. Thomas sentiu um nó na garganta ao avistar os corpos de Gareth e Lyanna perto da cabana maior. Gareth estava caído contra a parede quebrada, a espada ainda agarrada em sua mão rígida, e Lyanna jazia no chão, a varinha quebrada ao seu lado, os cabelos pretos espalhados como uma auréola escura.
Thomas desmoronou, caindo de joelhos ao lado deles. As memórias da batalha voltaram em flashes violentos: os gritos de Gareth enquanto enfrentava o Hobgoblin, o desespero de Lyanna ao lançar seu último feitiço, o sacrifício de Mira que ele não pôde impedir. Lágrimas escorriam por seu rosto, quentes e silenciosas, e suas mãos tremiam enquanto murmurava: — Eu sinto muito... eu não fui forte o suficiente.
Oloorin permaneceu em silêncio, um pilar de quietude ao seu lado, respeitando o luto de Thomas. Ele se abaixou e ajudou a preparar os corpos, envolvendo-os em tecidos que encontraram entre as tendas destruídas. Juntos, carregaram Gareth e Lyanna até uma grande árvore de tronco retorcido que se erguia na clareira, um marco natural que parecia digno de abrigar seus amigos em seu descanso final. Thomas cavou os túmulos com as mãos e uma pá improvisada, o suor misturando-se às lágrimas enquanto a terra cedia sob seus esforços.
Ele encontrou as carteirinhas da guilda nos corpos — a de Gareth manchada de sangue seco, a de Lyanna amassada e quase ilegível — e as guardou com cuidado no bolso da túnica. Depois de enterrá-los, Thomas coletou flores silvestres da floresta, pequenas pétalas brancas e amarelas que contrastavam com a escuridão do momento, e criou um altar simples sobre os túmulos. Era um gesto pequeno, mas carregado de significado, uma forma de dizer adeus e prometer que suas mortes não seriam esquecidas.
Quando terminaram, Thomas se levantou, limpando as mãos na túnica enquanto olhava para os túmulos. Oloorin assentiu em silêncio, um sinal de respeito pelo que haviam feito. Mas antes que pudessem trocar palavras, um grito agudo cortou o ar, seguido pelo som de passos pesados que faziam o chão tremer. Thomas e Oloorin se viraram ao mesmo tempo, as armas em punho, o coração de Thomas disparando com o pressentimento de perigo iminente. Das sombras da floresta, uma figura emergiu — o Hobgoblin, os olhos vermelhos brilhando com fúria, a clava cravejada de pregos arrastando no chão.