Chegada em Valoria

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Depois de mais uma semana em Cirgo, finalmente partimos. As despedidas foram breves e sem muito alarde, Lilia ficou triste com nossa partida e isso me deixou levemente triste também, mas ainda assim... Vou sentir saudades daquele lugar, espero voltar lá eventualmente.

Conseguimos uma carona para a cidade mais próxima, que, pra minha surpresa, ainda fica a cinco dias de viagem. Pelo menos, conseguimos uma carona decente. A carroça é robusta, e o cavalo, apesar de sua aparência modesta, é incrivelmente rápido graças a suas habilidades de espécie e algumas habilidades extras que ele têm — raramente, alguns animais nascem com alguma habilidade extra, é raro, mas pode acontecer. A jornada não foi tão ruim quanto eu esperava. Agora que estamos a apenas uma noite de distância, a ideia de chegar a Valoria começa a parecer real.

— [Estamos quase em Valoria! Que emoção!] — escreveu Merlin, suas palavras flutuando no ar com uma vibração de entusiasmo que eu ainda não consegui alcançar.

— Yay... — murmurei, tentando soar um pouco mais animado do que realmente me sentia.

— Senhor Victor, tudo certo por aí? — Sebastian, o homem que nos conduzia, perguntou por sobre o ombro.

Ele é um sujeito com seus 37 anos, cabelo grisalho e uma barba espessa que dá a ele uma aparência bem mais vivida. Seu colete de couro e o sobretudo marrom reforçam a ideia de que ele está acostumado com essas viagens e os desafios da estrada. Apesar disso, seu jeito era tranquilo, e a preocupação em sua voz parecia genuína.

Fiquei em silêncio por um instante, tentando avaliar como me sentia. Meu corpo estava bem, nada cansado ou machucado, mas a monotonia da viagem começava a me corroer por dentro. Eu estava... entediado.

— Estou... bem. — Respondi, mas meu tom sem energia contradizia minhas palavras.

— [Ele está com essa cara de peixe morto desde o segundo dia de viagem.] — Merlin comentou, suas letras flutuando na frente de Sebastian, que soltou uma risada.

— Parece que alguém não gosta de viagens longas, hein?

Não pude evitar um pequeno sorriso. Sebastian era uma boa companhia, e de alguma forma, a leveza com que ele lidava com a jornada tornava tudo menos cansativo. Ele estava a caminho de Valoria para resolver algumas pendências pessoais e, em breve, voltaria para Cirgo. Já eu e Merlin estávamos prestes a começar uma nova etapa em Valoria, graças ao grupo de Viola. Falando no grupo, eles saíram primeiro, então vão estar nos esperando no local. Como saímos um dia depois, eles provavelmente já devem ter chegado lá hoje. 

Agora, Valoria, lugar acessível, com preços razoáveis, e onde todas as raças, até mesmo monstros, podiam encontrar um lar, desde que soubessem como se integrar, no caso, ter uma inteligência e um senso adequado.

No meu caso, ser um metamorfo era uma vantagem. Eu conseguia driblar as defesas mágicas e as habilidades de análise que identificam monstros. Na luta contra Orion, algo dentro de mim despertou, e agora, qualquer habilidade com poder menor que o meu não pode me rastrear, algo parecido com aquela "semente de evolução", em outras palavras, fiquei mais poderoso como um ser. Sou, para todos os efeitos, um humano aos olhos do resto do mundo.

Parece que lutar e derrotar criaturas fortes é um dos vários caminhos do poder neste lugar. Quando você derrota um oponente de valor tem uma chance do mundo te presentear, seja com uma habilidade nova ou com algum tipo de benção. No meu caso, eu não recebi habilidades novas, mas algumas que eu tinha como minha [Consciência Analítica] e [Regeneração Ultra-rápida], elas ficaram um pouco mais eficientes.

O rei de Cirgo, por ter sido convencido por Serena, me deu 1.000 moedas de ouro como recompensa por salvá-la. Para ser honesto, é mais dinheiro do que eu saberia o que fazer. Agora, estamos muito bem financeiramente, o que nos dá uma folga para nos estabelecermos em Valoria sem pressa.

— Vou colocar a barreira agora. — Sebastian avisou enquanto tirava um pequeno artefato do bolso e o lançava ao ar. Em segundos, uma barreira invisível envolveu a carroça, isolando-nos de qualquer perigo iminente.

— [Agora nenhum monstro vai passar.] — Merlin comentou com satisfação.

— E agora, o velho Sebastian vai aproveitar a janta! — Ele disse, puxando uma marmita de dentro de sua sacola com uma animação que fazia parecer que era a refeição mais deliciosa do mundo.

— Bom apetite. Eu vou sair um pouco, tudo bem? — perguntei, já me levantando para abrir a porta da carroça.

— [Quer que eu vá com você?] — Merlin escreveu rapidamente, sempre atenta.

— Não precisa. — Respondi, tentando soar mais tranquilo. — Só vou tomar um ar fresco e já volto.

A barreira só funciona para monstros de classe baixa, os mais comuns dessa área, sendo eles de classe E ou C. Para monstros de classe mais alta como B e A, a barreira é ineficiente, então eu consigo sair e voltar sem problemas.

Assim que saí da carroça, a noite me envolveu com uma brisa suave e o céu claro, repleto de estrelas. Estávamos em um ponto isolado da estrada, e o silêncio da noite era quase reconfortante. Havia algo de renovador em respirar aquele ar puro depois de horas de viagem, algo que me ajudava a clarear a mente e a preparar o espírito para o dia seguinte.

O pensamento de uma nova cidade, um novo começo, trazia um certo alívio. Não que eu estivesse fugindo de algo, mas a ideia de estar em um lugar onde ninguém sabia quem eu realmente era... onde eu poderia simplesmente existir... tinha seu apelo.

Fechei os olhos por um instante, permitindo-me apenas sentir aquele momento.

Enquanto eu respirava o ar fresco da noite, algo à distância chamou minha atenção. Entre as sombras das árvores, uma figura alta se destacava contra o cenário escuro. Uma mulher, absurdamente alta, com cabelos longos de um verde pálido que brilhavam sutilmente sob a luz da lua. Ela estava parada, imóvel, observando-me com uma intensidade que fez minha espinha gelar.

Meus olhos se estreitaram ao reconhecê-la. Era impossível esquecer aquela presença. Seus olhos vermelhos pareciam arder no escuro, e seu traje negro com a capa volumosa apenas reforçava a aura sinistra que ela emanava. O chapéu pontudo de bruxa, levemente inclinado, mal escondia as duas finas antenas que atravessavam sua cabeça, atravessando o tecido.

Sem aviso, ela ergueu a mão, acenando lentamente. Não era um aceno amistoso, mas algo que parecia... distorcido. O gesto tinha uma calma perturbadora. Por um momento, considerei ignorá-la. Depois de tudo que já passei, o bom senso deveria me dizer para manter distância de figuras misteriosas no meio da estrada.

Mas algo em seus olhos, um brilho que os fazia parecer mais vivos, me fez hesitar. Ela não parecia ameaçadora... pelo menos, não como antes. Havia algo diferente dessa vez. Curiosidade? Interesse? 

Eu fiquei parado, avaliando o que fazer. Poderia simplesmente ignorar aquilo, voltar e esquecer que vi qualquer coisa. Mas... por alguma razão, minhas pernas começaram a se mover. Aos poucos, fui caminhando em direção a ela, quase como se meu corpo estivesse respondendo a um impulso que minha mente ainda estava processando.

Quando me aproximei, a expressão da mulher mudou. Um sorriso se formou em seus lábios, um sorriso que parecia tanto estranho quanto... sincero? O brilho nos olhos vermelhos suavizou-se, e pela primeira vez, ela não parecia estar me encarando como uma presa, mas como... um conhecido?

— Você está bem, Victor — disse ela, a voz baixa e quase melódica, mas com um tom de satisfação. — Estou feliz em ver que sobreviveu.

Suas palavras me pegaram de surpresa. Eu não esperava uma saudação tão calorosa. 

— Você... Não me lembro de ter te dito meu nome.— disse, ainda cauteloso.

Ela inclinou a cabeça ligeiramente, as antenas acompanhando o movimento com uma certa graça.

— Você deveria saber sobre as habilidades de análise, eu consigo ver… a forma como você se chama. — Seus olhos vermelhos brilharam novamente, mas dessa vez, o interesse que eu percebia nela era claro. — De novo, fico feliz que tenha sobrevivido. 

Seu sorriso se alargou ainda mais, algo sutilmente desconcertante naquele gesto, e uma familiaridade incômoda surgiu em meu peito. Mesmo com a estranheza que ela emanava, havia algo mais profundo... uma sensação de que ela realmente estava satisfeita por me ver bem.

— Você... Você é aquela garota de Cirgo, não é? — perguntei, tentando ligar os pontos. — Aquela que me falou sobre as montanhas.

Ela pareceu explodir de alegria, seus olhos vermelhos se arregalando enquanto dava pequenos pulos, batendo palmas de maneira quase infantil.

— Isso, isso! — exclamou, com uma animação que parecia destoar de sua aparência sinistra. — Você é muito bom, filhote! Sou eu!

Eu recuei um passo. Qual é o problema dessa mulher? Sua atitude, sua energia... era tudo tão estranho. A forma como ela se referia a mim, como se fosse dona de alguma coisa me deixava preocupado.

— E por que você fez isso? — perguntei, cauteloso.

— Não é óbvio? — respondeu com um tom que sugeria que, para ela, deveria ser claro. — Para que você descobrisse sobre os planos de Orion. Além disso, era a única maneira que pensei em te ajudar com aquele menino, Sentil. Se você o ajudasse, tudo se resolveria. Fui bem, não fui?

Eu a encarei, tentando compreender suas intenções.

— Acho que sim... Mas pensei que você não iria mais me proteger.

Ela balançou a cabeça com um sorriso quase condescendente.

— Você entendeu errado. Eu disse que não afastaria mais os monstros de você. Mas continuei te observando... de longe.

Observando? O desconforto aumentava, mas ao mesmo tempo, eu não estava mais tão inseguro quanto antes. Eu havia mudado desde nosso último encontro, crescido em mais de um sentido. Isso me deu coragem para pressionar mais.

— Quem é você, afinal?

Ela riu suavemente, inclinando a cabeça, como se minha pergunta fosse um pouco ingênua.

— Ainda não descobriu? — Seus olhos brilharam com uma estranha expectativa. — Deveria ser óbvio. Inclusive, você cresceu um pouquinho desde a última vez que te vi.

Olhei para mim mesmo, eu já tinha percebido isso. Eu realmente tinha crescido alguns centímetros desde então. Mas isso só aumentava minha confusão. O que ela quer dizer com "óbvio"?

— Sinto muito, mas eu ainda não sei quem você é.

Por um breve instante, sua expressão mudou. A tristeza atravessou seu rosto, um lampejo de decepção que foi rapidamente reprimido. Ela forçou o sorriso de volta, como se estivesse lutando contra sentimentos que não queria mostrar.

— Tudo bem. Você ainda tem tempo para descobrir. Afinal, vamos nos ver de novo. — Sua voz suavizou. — Até lá, se cuide, filhote.

Ela me encarava, sem desviar o olhar, seu sorriso intacto, mas havia algo dolorosamente solitário naquele gesto. O silêncio entre nós se alongou, e a tensão se instalou no ar. Era desconfortável, quase sufocante.

— Hmmm... Você... tá esperando alguma coisa? — perguntei, tentando quebrar o clima.

Ela piscou, confusa por um momento.

— Hmmm... Não acho... Talvez? — respondeu enquanto ajeitava o enorme chapéu.

No impulso, sem pensar muito, estendi as mãos e segurei a dela. Sua mão era enorme em comparação à minha, fria e surpreendentemente suave. Apenas apertei, como um gesto simples de despedida.

— Obrigado por me ajudar. Se cuide também. — As palavras saíram de mim de forma automática.

Ela ficou paralisada por um momento, olhando fixamente para minha mão sobre a dela, como se o gesto a tivesse pegado completamente desprevenida.

— Oh... — murmurou, sua voz hesitante, quase trêmula. Seus olhos vermelhos brilharam com algo indefinido, um sentimento que eu não consegui identificar.

Mas que tipo de situação é essa?! Minha mente corria em mil direções, enquanto a tensão entre nós crescia.

— ...

— ... Entendi — disse finalmente, soltando minha mão com uma leveza surpreendente. — Então... tchau.

E assim como da última vez, ela simplesmente desapareceu. Um segundo estava lá, no outro... sumiu no ar, como se nunca tivesse existido.

Fiquei parado ali por alguns momentos, processando o que acabara de acontecer. Havia tantas perguntas sem resposta. Ela continuava sendo um mistério — e talvez, agora mais do que nunca, eu sentisse a necessidade de desvendá-lo.

Suspirei, tentando afastar a sensação estranha que ficou no ar, e então comecei a caminhar de volta para a carruagem. Isso foi mais estranho do que eu esperava, pelo menos, ela demorou um pouco mais para desaparecer.

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O sol da manhã dourava o chão de pedra sob nossos pés quando nos deparamos com os portões de Valoria. Altos como muralhas, feitos de um metal escuro e liso, refletiam a luz como espelhos embaçados. Pareciam menos uma entrada e mais uma barreira — fria, impessoal e imponente.

Mas o que realmente chamou minha atenção... foram as máquinas.

Enormes figuras metálicas patrulhavam a entrada, com olhos vermelhos que pulsavam em intervalos constantes, como corações artificiais. Seus corpos reluziam como se fossem feitos de aço polido, e seus movimentos... não eram como os de humanos. Nem mesmo como os de criaturas vivas. Eram precisos. Calculados. Cada passo fazia ecoar um som surdo e ritmado, como martelos em sincronia.

— O que são essas coisas? — perguntei, incapaz de esconder a desconfiança na minha voz. Até agora, tudo neste mundo parecia saído de um conto medieval. Mas aquilo? Aquilo era outro nível. Algo que não se encaixava.

Merlin flutuava ao meu lado, tão atenta quanto eu.

— [Consigo ver do que são feitos, mas não faço ideia de como se movem assim...] — ela admitiu, ainda tentando decifrar os guardiões de metal.

Foi então que Sebastian, alguns passos à frente, parou e se virou para nós com um sorriso leve, como se estivesse esperando por essa reação.

— Esses são os Robôs de Guerra de Valoria. O reino é conhecido por sua tecnologia avançada. Muito diferente de Cirgo.

Franzi a testa.

— Tecnologia avançada? Isso é surpreendente. Mas... aquelas coisas não parecem perigosas? — Apontei para os robôs, cujos olhos pareciam me encarar mesmo sem se moverem.

Sebastian deu de ombros, como se não fosse grande coisa.

— São movidos por mana e programados para seguir ordens. Nada os tira dessa linha. Não sentem fome, nem medo. Apenas cumprem sua função.

Olhei novamente para os robôs. Seus corpos pareciam vazios... e ainda assim, havia mana dentro deles. Uma presença fria, impessoal, como uma bateria que pulsa mas não respira.

— São estranhos. Não consigo analisá-los direito. É como se estivessem... mortos por dentro.

— [Concordo,] — disse Merlin, girando no ar com uma leve risada. — [Se são máquinas, não possuem alma. E isso os torna bem imprevisíveis, não acha?]

Sebastian riu suavemente.

— Você se surpreenderia com o que Valoria é capaz de fazer. Só um desses robôs equivale a um Classe B. Não são úteis contra ameaças de alto nível, mas para patrulha e controle... são perfeitos. Incansáveis. Implacáveis.

Avançamos em direção à entrada e logo percebi que não era só a segurança que era diferente de Cirgo. A própria organização era algo fora do comum. Havia uma longa, mas fluida, fila de comerciantes e viajantes, todos aguardando pacientemente.

Pequenos robôs flutuantes — parecidos com lanternas com asas — inspecionavam mercadorias, verificando documentos com escaneamentos silenciosos. Cabines automatizadas se alinhavam à frente, cada uma equipada com painéis translúcidos que projetavam hologramas de dados e identidades.

Sebastian seguiu até uma das cabines, tirando um pequeno cartão metálico de dentro do casaco.

— Valoria é eficiente — comentou, entregando seus papéis. — Eles podem processar centenas de pessoas em questão de minutos.

Observei tudo com um misto de fascínio e desconfiança. Era tudo tão bem coordenado... tão automático. A tecnologia do meu mundo parecia brincadeira comparada a isso. Me perguntei como, exatamente, imbuíram mana nessas máquinas. Que tipo de sistema poderia manter tantas operando ao mesmo tempo?

Quando Sebastian terminou o processo, um dos portões metálicos começou a se abrir com um rangido suave, quase elegante. Os mecanismos por trás da estrutura moviam toneladas como se fossem leves como seda.

— Tudo certo, estamos liberados — disse ele, com naturalidade.

Cruzamos os portões. E então... vimos Valoria.

A cidade se estendia à nossa frente como uma fusão impossível entre o antigo e o futurista. Edifícios altos com formas geométricas, superfícies lisas e espelhos escuros dividiam espaço com construções de pedra, pontes arqueadas e telhados inclinados. Nas ruas, drones em forma de pássaros cortavam o ar com movimentos graciosos, deixando rastros de luz azul.

— Isso... definitivamente não é como Cirgo — murmurei, ainda tentando absorver tudo aquilo.

Merlin flutuava ao meu lado, animada como nunca.

— [Não vejo a hora de explorar esse lugar! Imagina as surpresas que têm por aqui! Deve ter laboratórios secretos!]

Suspirei, os olhos ainda vagando pela paisagem.

— Surpresas... Só espero que nenhuma delas envolva algo como o que aconteceu em Cirgo. Eu não vou entrar em laboratório nenhum.

— [Ah, não acho que somos tão azarados assim. Hehe!] — ela respondeu com um emoji sorridente.

Pensando bem, no esconderijo de Orion tinha um tipo de máquina, mas não sei o que ela fazia. Acho que preciso ficar mais atento sobre tecnologia também, como se monstros e magias já não fossem o suficiente…

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Algumas horas se passaram. Com a ajuda de Sebastian, encontramos um lugar para ficar e para nossa surpresa, não foi difícil. Depois de atravessar alguns distritos e negociar com um senhor de bigode estranho e voz fanhosa, conseguimos comprar uma casa modesta, porém elegante, por um preço justo.

A chave ainda estava quente em minha mão quando entramos pela primeira vez.

A casa tinha cinco cômodos. O chão de madeira polida rangia suavemente sob nossos passos, refletindo a luz dourada que atravessava as janelas emolduradas por cortinas bege. As paredes eram pintadas em tons claros, quase brancos, mas com um brilho perolado que dava uma sensação de frescor e paz. Na sala, um sofá de tecido macio convidava ao descanso, acompanhado por uma mesa de centro de madeira escura — elegante sem ser chamativa.

A cozinha era pequena, mas muito bem equipada, com utensílios alinhados com precisão cirúrgica. Uma mesa redonda de quatro lugares nos aguardava ali, quase como se dissesse: "Bem-vindos. Podem ficar o tempo que quiserem."

O banheiro era simples, mas surpreendentemente aconchegante. O chuveiro parecia robusto, e só de olhar para ele, já dava vontade de ficar horas sob a água quente.

Ainda faltam alguns móveis e decorações... mas o essencial já está ali. A casa tem alma. Tem silêncio. Tem espaço.

Sebastian decidiu ficar na cidade por mais um tempo, mas preferiu alugar um quarto numa hospedagem próxima. Disse que queria dar espaço.

Ganhei roupas novas também, digo, comprei, Merlin disse para mim tentar usar vermelho então aqui estou, uma blusa vermelha, uma camiseta preta e uma calça da mesma cor. Pelo menos ainda tenho minhas botas de Cirgo.

Já Merlin... Ela não mudou muito, mas tenho a impressão que a coroa dela mudou... Agora parece mais uma auréola que dá uma volta em torno de si mesma e parece que ela aumentou de tamanho... Um pouco.

Enquanto explorávamos cada cômodo, eu estava boquiaberto ao ver algo que imaginei que nunca mais veria em toda minha vida. Algo maravilhoso, uma bênção...

— Tem televisão... E ela é grande... — eu disse, meus olhos brilhando.

Merlin flutuou ao meu lado, olhando para a tela com curiosidade.

— [Isso é bom?] — perguntou, um pouco confusa.

— Sim! Podemos ver TV, Merlin! — eu exclamava, a animação transbordando em minha voz.

Ela se aproximou, observando a televisão como se fosse um objeto mágico. A grande tela parecia reluzir.

— [Entendi! Essas coisas você tinha no seu mundo, não é?]

— Isso! Estou muito feliz de ver coisas que eu conheço.

— [Oh! Seus olhos dilataram!] — Merlin notou, enquanto rodopiava de maneira travessa.

Eu parei por um momento, envergonhado com o comentário. Levantei as mãos para meu rosto, tentando esconder o rubor que subia às minhas bochechas.

— O que? Não estou... é só... — gaguejei, mas não consegui concluir a frase. 

— [Você parece tão feliz, Victor!] — ela disse, cheia de encanto em seu balão. — [É bom ver isso.]

Um pensamento passou pela minha mente: era uma característica minha como metamorfo. Minhas emoções se manifestam de maneiras físicas, como os olhos dilatados quando eu fico feliz, algo que poderia parecer um traço animal.

— Eu... só estou me acostumando com isso — respondi, tentando me esconder atrás do sofá. — Não olha pra mim, agora tô tímido...

— [Espero que você saiba que se esconder assim só te deixa mais fofinho.] — ela disse com um sorriso em seu balão. — [Deixa disso! Isso é uma coisa boa!]

Tentei desviar o olhar, mas a verdade era que, no fundo, eu gostava da sensação de felicidade que me invadia. Tentar esconder isso parecia uma luta inútil. No final, esse meu corpo funciona dessa forma... É bom eu me acostumar com isso.

— Não sei... É esquisito, você sabe? — murmurei, agora um pouco mais envergonhado.

Merlin se aproximou mais. — [Por que não deixa seus sentimentos fluírem? Afinal, você é um metamorfo, e isso faz parte de quem você é.]

Eu suspirei, tentando relaxar. A ideia de aceitar essas características de mim mesmo era um desafio, mas ao ver Merlin tão disposta a me incentivar assim, fez valer a tentativa e me deixou um pouco mais confortável.

— Ok, talvez eu só precise de um pouco mais de tempo — concordei, com um sorriso discreto.

Liguei a televisão. A tela acendeu colorida e viva. Encontramos um canal de desenhos animados e nos sentamos, ou melhor, eu me sentei, e Merlin flutuou acima do encosto do sofá, observando cada movimento como se fosse a primeira vez que via algo assim.

Rimos juntos de piadas bobas. Compartilhamos silêncio sem desconforto.

Amanhã, vou procurar pelo grupo da Viola. Disseram que os encontraria na guilda local. Provavelmente já se inscreveram.

Mas hoje... só quero aproveitar o simples prazer de ver desenhos ao lado da minha melhor amiga.

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