O Fugitivo

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Então, após um encontro rápido, me encontrei com o grupo de aventureiros na guilda da cidade. O prédio era imenso, completamente diferente da guilda de Cirgo, tão moderno e movimentado que fiquei atordoado só de olhar.

Depois das apresentações formais, percebi que a maioria dos rostos já me era familiar... exceto por um cara que eu ainda não conhecia, sendo o Logy, ele era um suporte.

O líder do grupo é Don — o tanque, como eles dizem. Ele é quem fica na linha de frente, recebendo os golpes e protegendo o resto da equipe.

Viola é a maga do grupo, mas também carrega algumas lâminas escondidas, caso precise lutar de perto. 

Logy é o suporte, sempre na retaguarda, curando e fortalecendo os aliados. 

Meu papel? O "atacante". Isso significa que fico logo atrás do Don e sou responsável por causar o maior dano possível. Merlin, por ser tão versátil, ficou com um papel semelhante ao da Viola, alternando entre ataque mágico e controle.

Eu ainda não me inscrevi oficialmente na guilda — aparentemente, sem um documento de identificação isso não é possível —, mas mesmo assim me juntei à equipe deles. Combinamos que eu receberia uma parte da recompensa pelo trabalho, então não vi problema.

Saímos para algumas missões de caça, e foi aí que aprendi como as missões da guilda realmente funcionam. O sistema é simples, dividido em três tipos principais:

Missões de Caça: São as mais comuns. Você recebe a tarefa de eliminar monstros específicos — às vezes porque estão causando problemas, outras vezes para coletar partes deles como matéria-prima.

Missões de Exploração: Essas exigem que você vá até algum lugar desconhecido — pode ser uma floresta, uma montanha, uma ilha, o fundo de um lago. Costumam pagar bem, mas demoram. Podem levar dias, semanas, até meses. Por isso, não são recomendadas para iniciantes.

Missões de Proteção: Aqui você precisa proteger alguém. Pode ser um escolta de viagem, guarda-costas, ou vigiar um local importante. O pagamento varia conforme o cliente. Missões boas exigem força e, principalmente, reputação.

A maioria dos novatos começa com missões de caça, por serem mais diretas. E foi justamente isso que fizemos hoje.

Nosso destino era um acampamento de gigantes selvagens que viviam nas formações rochosas ao redor de Valoria. Segundo Viola:

— Gigantes selvagens são monstros. Diferentes dos gigantes civilizados, que são considerados uma raça inteligente. Eles, assim como vampiros, anões e elfos, fazem parte das raças humanóides — ou "semi-humanos", como chamam os humanos.

Eu não sei se esse termo é ofensivo para eles, percebendo que os humanos têm uma pontinha de arrogância. Talvez seja orgulho. Talvez algo pior.

De qualquer forma, lá estávamos. E aqui estou eu, subindo aos céus. Literalmente.

A última coisa que ouvi foi:

— Cuidado! — gritou Don.

Tarde demais. Um dos gigantes — magro, pele pálida, chifres e cara de poucos amigos — me acertou com uma clava do tamanho de um poste. Voei em linha reta para cima, como um foguete.

E, ironicamente, acabei caindo bem em cima da cabeça dele. O impacto o apagou na hora.

Merlin cuidou de outro gigante com facilidade, e Viola derrubou um terceiro com a ajuda de Don e Logy. Em menos de cinco minutos, o acampamento havia sido destruído.

— Acho que foram todos — comentei, ajeitando minhas roupas.

— Bom trabalho, pessoal — disse Don, satisfeito.

— Uau, essa missão foi a mais fácil em um bom tempo — comentou Logy, ajeitando o chapéu.

— Mas é claro! Com um metamorfo e um espírito no time, derrotar monstros assim não é desafio algum! — disse Viola, enrolando um dos braços no meu pescoço e tentando fazer o mesmo com Merlin, que apenas flutuou ao seu lado.

Coletamos os chifres dos gigantes como prova da missão concluída.

Sem aquele acampamento, aquela área seria mais segura, para quem fosse ali minerar ou algo assim.

O céu já estava escurecendo, e senti no ar que a chuva se aproximava.

— Mesmo horário amanhã, pessoal? — perguntou Viola.

— Pode contar comigo. Amanhã vou tentar resolver essa coisa da identificação, então talvez eu demore pra chegar.

— Está tudo bem, Victor. Até lá, pode continuar nas missões com a gente.

— Isso mesmo. A ajuda de vocês é muito bem-vinda — disse Logy.

— Obrigado. Nos vemos amanhã.

— [Se cuidem!] — completou Merlin, flutuando alegremente ao meu lado.

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A chuva caía em um ritmo constante, suas gotas finas e quase silenciosas preenchendo as ruas de Valoria com uma melodia suave. O céu estava coberto por nuvens pesadas, apagando o brilho habitual da cidade. Eu e Merlin caminhávamos lado a lado, protegidos por nossos guarda-chuvas. O meu, simples e preto que eu havia comprado momento antes, enquanto Merlin flutuava sob uma pequena bolha de energia que repelira as gotas antes que pudessem tocá-la.

— Essa chuva... me lembra dos dias em que eu só ficava olhando pela janela — comentei, deixando a mente vagar em um fragmento de memória.

— [Você parece estar gostando.] — Merlin girou suavemente ao meu lado, seu balão de fala aparecendo com uma leve animação. — [O som é agradável, não é?]

— É — concordei, observando as gotas que caiam do céu. — É como se o mundo estivesse mais tranquilo.

Enquanto andávamos pelas ruas de pedra, a chuva refletia a luz das poucas lâmpadas ainda acesas. Poucas pessoas caminhavam por ali, a maioria preferia se refugiar em suas casas. Contudo, conforme avançávamos por uma viela mais estreita, algo chamou minha atenção.

Em uma esquina escura, sob um toldo mal posicionado, havia um garoto. Seu corpo estava encolhido, os joelhos dobrados contra o peito. Cabelos vermelhos, pesados pela chuva, escondiam parte do seu rosto. Ele parecia exausto, quase derrotado, e as roupas que usava estavam claramente desgastadas e inapropriadas para o tempo frio.

— Aquele garoto... — murmurei, instintivamente parando de caminhar.

Merlin se aproximou um pouco mais, também notando a figura.

— [Ele parece estar sozinho...] — observou com uma curiosidade cautelosa.

Eu hesitei por um momento, pensando no que deveria fazer. A chuva caía pesadamente ao redor dele, e ninguém parecia prestar atenção, embora tivesse algo estranho no ar. Olhei para as poucas pessoas que passavam pela rua. Alguns lançavam olhares furtivos para o garoto, rapidamente desviando o olhar, mas não antes de eu notar a expressão de preocupação ou desconforto em seus rostos. Um homem, em particular, apertou o passo ao passar por nós, franzindo o cenho ao me ver parado ali, como se quisesse me avisar de algo, mas permanecendo em silêncio.

Algo definitivamente não estava certo, mas não era como se eu fosse ignorar isso. Me aproximei do garoto, inclinando-me ligeiramente para que ele pudesse me ouvir acima do som da chuva.

— Ei, você está bem? — perguntei.

Ele levantou a cabeça devagar. Seus olhos, de um vermelho rosado incomum, me encararam por um instante antes de desviar o olhar novamente, como se estivesse relutante em responder.

— Eu... — ele começou, a voz fraca e quase apagada. — Estou... só procurando ajuda... só por um tempo.

Suas palavras soavam distantes, quase como se fosse um pedido de socorro que ele não tinha coragem de expressar plenamente. Havia algo estranho naquele pedido, mas talvez fosse apenas o desespero de alguém que estava nas ruas há muito tempo. Merlin me observava em silêncio, e eu sabia o que ela estava pensando.

— Precisa de um lugar para ficar? — perguntei, ignorando o desconforto no ar. Era uma decisão quase instintiva.

O garoto me olhou mais uma vez, seus olhos mostrando uma mistura de orgulho ferido e uma desesperança profunda. Ele assentiu levemente, sem dizer mais nada, e se levantou com um pouco de dificuldade. Ao ver isso, aproximei meu guarda-chuva dele para protegê-lo da chuva que caía incessantemente.

— Obrigado — murmurou, sem erguer o olhar.

Quando finalmente ficamos lado a lado, notei que as poucas pessoas que ainda estavam na rua agora nos observavam com mais intensidade. Alguns desviavam o olhar rapidamente, outros trocavam olhares entre si, como se estivessem testemunhando algo problemático.

— Ele... — uma senhora sussurrou para seu companheiro enquanto passava. — Ele está ajudando ele...?

Tentei ignorar as vozes ao nosso redor, mas não pude deixar de me perguntar sobre o que estavam falando, não estão falando nada completo, só coisas soltas. No entanto, isso não mudava o fato de que o menino estava claramente em uma situação complicada, e eu já tinha me comprometido a ajudar.

Merlin flutuava ao meu lado, um pouco curiosa.

— Qual é o seu nome? — perguntei, tentando quebrar o silêncio desconfortável enquanto andávamos.

— Burst — respondeu ele, sem muito entusiasmo.

— Certo, Burst. Você pode ficar na nossa casa por um tempo, até se sentir melhor. Não é nada grandioso, mas tem um teto que vai te proteger da chuva — ofereci, tentando soar mais amigável.

Ele não disse mais nada, apenas seguiu em silêncio ao nosso lado.

Enquanto caminhávamos pelas ruas encharcadas de Valoria, a chuva parecia aumentar lentamente, mas a sensação de que eu estava me envolvendo em alguma coisa persistia. Eu só não sabia o quanto.

Chegamos em casa, a chuva ainda caía suavemente do lado de fora. O som das gotas batendo contra o telhado criava uma atmosfera tranquila e aconchegante. Assim que entramos, fechei a porta atrás de nós e guardei o guarda-chuva em um suporte no canto da entrada.

— Bem-vindo, é aqui. — disse, gesticulando para o interior da casa enquanto tirava meus sapatos e me acomodava.

Burst olhou ao redor, seus olhos vermelhos-rosados examinando o ambiente com uma expressão curiosa, mas aliviada.

— [Nos mudamos para cá ontem.] — acrescentou Merlin

O lugar não era muito grande, mas tinha tudo o que precisávamos. A sala principal estava bem organizada, com móveis simples, mas acolhedores. A iluminação suave tornava o ambiente ainda mais convidativo.

— ... É um lugar bem aconchegante. — murmurou Burst, esboçando um pequeno sorriso, como se estivesse surpreso por encontrar um refúgio tão confortável.

Eu sorri de volta, contente que ele estivesse à vontade. Apesar do clima pesado lá fora.

— Você está todo molhado. — comentei, notando o estado de suas roupas encharcadas. — Que tal um banho para não acabar ficando doente? Eu comprei algumas roupas ontem, acho que pode te servir.

Burst assentiu, claramente grato pela oferta, embora parecesse um pouco hesitante em aceitar tanta ajuda. Ele era um pouco mais alto que eu, então achei que as roupas que comprei poderiam se ajustar bem a ele. Separei uma camiseta e uma blusa de moletom preta, junto com uma calça da mesma cor, simples, mas confortáveis.

— Aqui, pode usar essas. — entreguei as roupas antes de apontar o caminho até o banheiro.

Enquanto ele foi tomar banho, Merlin e eu decidimos preparar algo para ele comer. O som da água correndo no chuveiro preenchia o ambiente enquanto nós nos movíamos pela cozinha.

— Uma sopa com legumes deve ajudar a aquecer. — sugeri, abrindo a geladeira para pegar os ingredientes. — Ainda bem que eu sei me virar na cozinha.

Merlin me observava enquanto eu cortava os legumes com precisão, a esfera lilás flutuando ao redor da bancada, curiosa, mas sem interferir. A cozinha logo foi preenchida pelo aroma de caldo quente, temperado na medida certa.

— [Você está mesmo levando a sério.] — Merlin comentou

— Claro. Ele parece estar precisando de uma boa refeição. — respondi, me achando um pouco.

— [Eu acho que você não quer perder a chance de inflar seu ego.] Disse ela rindo da minha cara, bom, ela não está errada.

Logo a sopa estava pronta, quente e cheia de sabor. Quando Burst saiu do banho, já vestido com as roupas que lhe ofereci, ele parecia mais relaxado, seus cabelos vermelhos ainda úmidos, mas sem o peso da sujeira e cansaço de antes. Assim que entrou na sala de jantar, eu já estava servindo a comida.

— Pode se sentar. A sopa está pronta. — disse, colocando o prato na mesa e completando com o bife ao lado.

— Muito obrigado pela generosidade! — exclamou Burst, seu rosto iluminado por um sorriso sincero.

Antes de começar a comer, ele fez uma breve oração, algo que me surpreendeu. Não era comum ver alguém tão jovem com esse tipo de costume, mas não pude deixar de sorrir ao vê-lo tão agradecido. Quando ele finalmente provou a sopa, o sorriso em seu rosto cresceu, e um certo orgulho inflou dentro de mim. Isso mesmo... Eu sou um ótimo cozinheiro pensei, satisfeito comigo mesmo.

— Quantos anos você tem, Burst? — perguntei casualmente, enquanto me sentava na cadeira ao lado.

— Hmmm... Tenho 15... — respondeu ele.

Eu assenti, observando o garoto com mais atenção agora. Ele parecia sereno por um momento, mas ainda havia algo nos seus olhos que sugeria que não estava completamente tranquilo. Era como se, por trás daquele comportamento educado e grato, houvesse uma sombra de preocupação ou medo que ele estava tentando esconder.

Enquanto Burst continuava a comer, ocasionalmente lançando um olhar discreto para as janelas como se temesse ser visto, senti que havia algo mais por trás de sua situação. Algo que ele ainda não tinha me contado.

A gente conversou um pouco para nos conhecermos, contei a Burst sobre Merlin, já que ele estava curioso para saber porque eu tinha um espírito me seguindo. Então apenas deixei bem resumido e escondi algumas informações, apenas disse que a conheci numa floresta e viramos amigos.

A conversa com Burst seguia tranquilamente, até que ele começou a demonstrar mais ansiedade ao descobrir que éramos novos no reino. Ele parecia mais desconcertado do que antes, seus olhos fugindo do meu olhar.

— Então vocês são novos... Isso explica por que estão me ajudando... — disse ele, desviando o olhar para a mesa.

— Como assim? — perguntei, levantando uma sobrancelha.

Antes que Burst pudesse responder, houve uma batida na porta. O som ecoou pela casa, e algo em seu tom pesado me deixou inquieto. Era estranho, já que tínhamos acabado de nos mudar e ainda não esperávamos visitas. Será que é Viola? me perguntei enquanto me levantava.

Enquanto eu me aproximava da porta, senti Burst enrijecer. Ele permaneceu à mesa, mas algo em sua postura me deixou em alerta. Olhei para ele por um segundo, percebendo sua inquietação. Mas, sem pensar muito, continuei andando.

Não tinha olho mágico, sem outra opção, abri a porta. Assim que o fiz, uma voz feminina reverberou no ar, gelando minha espinha.

— Burst Ignaris está aqui? — A voz era firme, autoritária, quase esmagadora em sua presença.

Meu corpo se enrijeceu no mesmo instante. A presença que acompanhava aquela voz era sufocante. Era como se a temperatura ao redor caísse vários graus, e, ao mesmo tempo, o ar parecia mais pesado. Uma garota alta, de cabelos curtos e vermelhos como o fogo, estava diante de mim. Seus olhos, de um vermelho-rosado intenso, pareciam perfurar minha alma, enquanto sua pele escura, sem imperfeições, refletia a luz da entrada de maneira assustadora. Ela vestia um longo sobretudo branco sobre roupas pretas, e sua postura era impecável, como a de um soldado experiente. Uma espada longa pendia em sua cintura, reforçando ainda mais sua aparência de alguém que não deveria ser subestimada.

Ela se parece tanto com Burst... pensei, o desconforto crescendo no meu peito.

— A-ahm... Sim... Ele está ali... — minha voz saiu trêmula, sem que eu pudesse controlar. Era impossível não me sentir intimidado diante daquela mulher.

— Com licença. — Ela entrou sem esperar convite, e, instintivamente, me afastei para abrir caminho. Algo nela me dizia que o confronto seria inevitável caso eu me opusesse. A pressão em torno dela era tão intensa que parecia uma presença militar, muito mais forte do que qualquer outra que eu já havia sentido, nem mesmo de Sentil.

Assim que entrou, Burst se levantou da cadeira num salto, a tensão em seu corpo clara como o dia. Ele olhou para ela com olhos arregalados, e, por um breve momento, sua usual confiança desapareceu. Era como se ele estivesse frente a frente com algo que temia, mas do qual não poderia fugir.

A mulher caminhou até o centro da sala, seus olhos fixos em Burst. Não havia raiva explícita em sua expressão, mas algo em sua postura e no modo como o observava deixava claro que ela não estava ali para uma conversa amigável.

O clima ficou ainda mais tenso.

— Você precisa voltar agora. — A mulher falou, sua voz firme e intransigente, cortando o ar como uma lâmina afiada.

Burst deu um passo para trás, a respiração acelerada. — Eu... eu me recuso! — ele gritou, sua voz tentando soar firme, mas o tremor era perceptível. — Eu não vou voltar para o castelo!

Aquela última palavra, "castelo", parecia ecoar no ar, revelando a verdade sobre quem ele realmente era. Tudo começou a se encaixar. Então é isso... Ele é alguém importante... Mas por que está fugindo? pensei, ainda confuso.

A mulher continuou imóvel, com seu olhar impassível, sem piscar. O contraste entre a fúria crescente de Burst e a calma fria dela era assustador. Não havia pressa em sua postura, apenas uma paciência ameaçadora, como uma predadora esperando o momento certo para atacar.

— Eu não estou pedindo. — disse ela, baixando o tom de voz, mas tornando suas palavras ainda mais pesadas. Lentamente, sua mão deslizou até o cabo da espada presa em sua cintura. O movimento era sutil, mas carregado de perigo.

Eu prendi a respiração, sentindo a tensão no ar aumentar exponencialmente. Merlin, que estava ao meu lado, flutuava inquieta, sem saber o que fazer. Eu não precisava de mais nada para perceber que aquilo estava indo longe demais.

— P-Para! — Eu me joguei entre eles, minha voz saindo mais alta do que esperava, e minhas mãos instintivamente levantadas. O clima da sala já estava pesado, mas eu sabia que não podia deixá-los brigar. — Por favor, repense sobre isso.

A mulher de cabelos vermelhos virou seu olhar penetrante para mim. Seus olhos refletiam surpresa por um breve instante. Mas sua mão, firmemente colocada no cabo da espada, não se moveu. Era como se sua presença física tivesse o peso de uma montanha, esmagando qualquer tentativa minha de parecer corajoso. O ar na sala parecia ter ficado mais denso desde o momento em que ela entrou.

— ... Porque você está me impedindo? — Sua voz era dura e direta, sem espaço para dúvidas. Ela parecia genuinamente curiosa, mas não havia traço de suavidade.

Minha garganta ficou seca. Eu arrisquei um olhar para Burst, que estava visivelmente abalado, seus olhos cheios de surpresa e medo. Parecia que ele não esperava que eu intervisse, ou talvez não acreditasse que alguém seria tolo o suficiente para tentar.

Eu respirei fundo, pensando bem nas minhas palavras.

— Eu comprei essa casa ontem. — Minhas palavras saíram mais devagar do que eu queria, mas ao menos estavam saindo. — Eu planejo me estabelecer aqui e viver com minha amiga. — Fiz uma pausa, tentando soar mais firme. — Você com certeza é forte e poderia colocar este lugar abaixo... Mas enquanto você estiver aqui dentro, essa casa é minha. Não posso permitir que você use violência aqui, não importa o que aconteça.

O silêncio caiu sobre a sala. A tensão estava tão densa que eu quase podia tocá-la. Burst abriu a boca para falar, mas sua voz falhou. Ele parecia desesperado, tentando encontrar palavras que não vinham. Seus olhos me imploravam para parar antes que fosse tarde demais. Merlin, que até então estava um pouco afastada, flutuava despreocupada, me encorajando com um emoji de joinha.

A mulher ficou me encarando por mais alguns segundos, que pareceram uma eternidade. Seu olhar era firme, como se estivesse me medindo. Finalmente, ela soltou o cabo da espada.

— ... Entendo. — Sua voz agora era calma, mas o ar ao redor dela ainda vibrava com uma autoridade implacável. Ela ajeitou sua postura, tornando-se um pouco menos ameaçadora, mas ainda sem abrir brecha. Era como se ela tivesse permitido essa trégua por pura formalidade.

Eu fiquei em silêncio, observando-a com cautela. Algo nessa mulher me deixava mais inquieto do que qualquer coisa que eu já tivesse enfrentado. Orion, em sua forma monstruosa, era aterrorizante, mas ela... havia algo nela que me fazia sentir pequeno.

— Eu peço desculpas. — Sua voz cortou o silêncio, educada, mas firme. — Você está certo. Não deveria lutar dentro da sua residência. As regras da sua casa devem ser respeitadas. — Ela fez uma pequena reverência.

Eu pisquei, atordoado. Sua mudança repentina para uma postura educada me deixou ainda mais nervoso. A cortesia dela parecia tão fora de lugar que meu estômago deu um nó.

Burst, ao meu lado, parecia mais calmo, embora seus ombros ainda estivessem rígidos.

— Tudo bem. — Disse, tentando soar mais tranquilo. — Não sei exatamente o que está acontecendo, mas espero que possamos conversar para resolver isso sem violência.

A chuva lá fora continuava a cair, criando um som suave que contrastava com a tensão na sala. O silêncio se instalou novamente, e eu me perguntei se tinha dito algo errado. A mulher ficou quieta por um instante, o que me deixou ansioso.

— Sim. — Ela respondeu finalmente, sua postura rígida, mas sem sinais de raiva.

— [Por favor, sente-se aqui.] — Merlin flutuou até uma das cadeiras, oferecendo-a com um gesto amigável, e um pequeno balão de fala apareceu com seu típico emoji alegre.

— Você também, Burst. — Falei para ele, que hesitou, mas finalmente se sentou. A tensão em seu rosto ainda estava presente.

Me sentei perto da janela, com Burst à minha esquerda e a mulher à minha direita. Merlin flutuava na minha frente, sempre com sua expressão animada e despreocupada. Era difícil não achar aquilo reconfortante, mesmo em meio a todo o estresse.

Cara... Que medo. Achei que ela ia me atacar junto com o Burst. Parece que meu "aja como um adulto" funcionou! Parabéns, 25 anos!

A mulher, agora mais formal e com o olhar firme, finalmente falou:

— Permita-me me apresentar. Me chamo Jane Ignaris, filha legítima do rei Igni Ignaris e comandante das forças armadas de Valoria.

Eu congelei. Literalmente. Meu cérebro parou como se alguém tivesse puxado o freio de mão com força demais. A chuva continuava lá fora, mas meu foco estava todo naquela frase.

[Me chamo Merlin, sou um espírito e amiga desse cara ali!] — Merlin se apresentou alegremente, flutuando em espiral com um balão de fala radiante girando ao redor dela.

Espere um pouco...

Eu sou Burst Ignaris, filho do rei Igni Ignaris, príncipe e herdeiro do trono do reino de Valoria...

ESPERA!! SEUS DESGRAÇADOS!!!

Família real?!

Eu me segurei para não levantar e sair correndo pela chuva gritando. Respirei fundo. Fingi que era normal. Fingi que isso acontecia com todo mundo.

Me chamo Victor, um andarilho que está tentando se estabelecer no reino de Valoria. — falei, com meu melhor sorriso de "por favor, não me executem por desacato à nobreza".

Jane assentiu, o rosto tão sério que dava a impressão de que sorrir era um conceito estranho para ela.

Agora que nos apresentamos, vou direto ao ponto. Estou aqui porque meu irmão está negligenciando seu dever como herdeiro. Vim para levá-lo de volta ao castelo.

A tensão voltou a encher o ambiente. Burst olhou para ela com uma mistura de medo e raiva.

— Eu não quero herdar trono nenhum! Quero sair e me aventurar!

O ar entre eles parecia eletrizado, e eu me encontrei no meio de uma disputa familiar que não fazia ideia de como resolver. 

O que eu fiz para me meter no meio de algo assim?! É só o final do meu segundo dia nesse reino!!!

Pelo visto, essa será uma longa conversa.

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