⋅•⋅⊰∙∘☽༓☾∘∙⊱⋅•⋅
De alguma forma, voltamos ao ponto de partida ou quase isso. Jane já estava prestes a se levantar novamente, com os punhos cerrados, mas decidi intervir antes que a situação saísse completamente do controle.
— Burst, por favor, podemos tentar manter tudo na calma? — Minha voz soava mais firme do que eu esperava, e meus olhos imploravam para ele se sentar.
Ele se jogou de volta na cadeira, de braços cruzados, com uma expressão carrancuda. Soltei um suspiro aliviado. Pelo menos por enquanto, a tempestade parecia contida.
Jane também relaxou, assumindo uma postura mais controlada. Seus olhos, antes fervendo de raiva, agora voltavam a mim com um olhar mais calculado. Sentindo que a tensão havia diminuído, achei que era a hora de começar a fazer perguntas.
— Senhorita Jane — comecei com cautela, escolhendo as palavras —, acredito que já entendi a maior parte da situação, então não precisa me dizer mais do que o necessário. Mas há algo que ainda não ficou claro pra mim.
— Claro — respondeu ela, a voz ainda tensa, mas controlada. — Farei o possível para responder... Se isso ajudar a trazer esse garoto de volta.
Burst bufou e virou o rosto, desdenhoso, os lábios curvados em um esboço de desprezo.
— Quando encontramos o Burst — continuei —, ele estava num beco, tremendo de frio. As pessoas ao redor estavam... estranhas. Agiam como se ele não existisse, ou pior, como se ele fosse perigoso. Porque o herdeiro do reino estava sendo tratado desse jeito?
Jane congelou por um instante, seus olhos vacilaram antes de baixar a cabeça, o que me fez perceber que a pergunta a pegou desprevenida. O silêncio que se seguiu era pesado, quase sufocante.
— Vai lá, irmã — Burst quebrou o silêncio com sarcasmo gotejando de suas palavras. — Conta a ele.
Jane apertou os lábios, hesitante, mas eventualmente cedeu.
— ... Foram ordens.
— Isso mesmo. — Burst cruzou os braços mais apertadamente, o olhar cheio de rancor. — Nosso pai ordenou que eu fosse deixado à própria sorte. Nada de abrigo, nada de ajuda. Só para me obrigar a voltar para o castelo. Estou nas ruas desde então.
O choque me atravessou como uma rajada de vento gelado. O quê?! Mas que absurdo é esse?
Jane suspirou, com algo que parecia culpa nos olhos mas ainda assim ela manteve o tom calmo:
— ... Eu também não concordo com a decisão dele. Mas não posso fazer nada. Você sabe que o nosso pai tem a maior autoridade no reino.
— Você é a terceira em comando, Jane! — Burst explodiu, os olhos brilhando de raiva. — Poderia ao menos tentar me ajudar.
As palavras pareciam perfurar Jane. Ela cerrou os punhos com força, e por um breve momento, seu olhar de aço encontrou o de Burst. Algo indefinido brilhou em seus olhos antes dela suspirar mais uma vez, agora com um tom mais suave.
— Se você simplesmente voltasse para o castelo, isso tudo acabaria. Continuar nessa teimosia só coloca pessoas como Victor em perigo. Ele poderia ser punido por te ajudar.
Minha mente parou por um segundo.
— E-eu posso ser punido? — perguntei, genuinamente surpreso.
Jane assentiu.
— Sim. Quem ajudar Burst terá que pagar uma multa de 10 moedas de ouro.
... Pelo menos eu tenho bastante dinheiro guardado… pensei, tentando ignorar a tensão crescente na sala. Com essa revelação, a situação parecia um pouco mais... administrável. Mas, por outro lado, talvez fosse mais fácil deixar Jane arrastar Burst de volta ao castelo e resolver tudo de uma vez.
Olhei para Jane. Pelo que eu entendi, ela vinha procurando Burst há um bom tempo. Morando na rua, Burst claramente havia resistido a cada tentativa dela de levá-lo de volta pacificamente. Talvez hoje fosse o ponto de ruptura, onde ela estaria disposta a usar força para resolver o problema. Ela parecia cansada e emocionalmente drenada.
O silêncio que se seguiu foi tenso, carregado de emoções não ditas. Jane mantinha a postura rígida, enquanto Burst apenas olhava para o lado, ainda irritado. Eu sabia que, de alguma forma, estava envolvido naquilo, mesmo que sem querer.
Suspirei profundamente antes de falar.
— Escutem, querendo ou não, eu e Merlin já nos metemos nessa confusão — comecei, tentando manter a voz firme e equilibrada. — E se a questão é a multa... Eu vou pagar. Não é um problema. — Olhei diretamente para Jane, esperando por uma reação.
Burst se virou para mim, surpreso, com os olhos arregalados. Ele claramente não esperava que eu tomasse partido dessa forma. Jane, por outro lado, franziu a testa, pensativa, avaliando minhas palavras com cuidado.
— Você... vai pagar? — Burst perguntou, ainda desconfiado, como se esperasse que eu estivesse brincando.
— Sim — confirmei. — Mas eu quero conversar mais com Burst antes de qualquer coisa. Eu acho que ainda há uma chance de resolver isso sem que ele tenha que voltar para o castelo à força. Se me derem essa oportunidade, quero tentar.
Jane estreitou os olhos, claramente hesitante. Ela cruzou os braços, e por um momento pareceu considerar a proposta. Seu olhar, uma mistura de dúvida e reflexão, alternava entre mim e Burst.
— Você quer conversar com ele... para convencê-lo a voltar? — Jane perguntou, a voz carregada de uma cautela visível.
— Não exatamente — respondi. — Quero entender o que o fez resistir tanto. Acho que ele precisa de tempo para processar tudo isso. Eu só estou pedindo permissão para tentar ajudar antes de tomar qualquer decisão final. E prometo que vou manter tudo sob controle. Enquanto isso, ele pode ficar aqui, na minha casa.
Burst olhou para mim com uma expressão de choque, como se a ideia de alguém genuinamente querer ajudá-lo fosse algo que ele não conseguia processar. Ele se inclinou um pouco para frente, como se tentasse ver se eu estava falando sério.
Jane soltou um suspiro longo, e por um momento, seus ombros pareceram relaxar, como se o peso da situação finalmente estivesse começando a se dissipar.
— Victor... — ela começou, seu tom mais suave, mas ainda com uma pitada de dúvida. — Você tem certeza de que consegue lidar com ele? Se Burst não voltar, isso pode acabar sendo pior para você.
— Tenho certeza — eu disse com convicção. — Só estou pedindo um pouco de tempo. Não pretendo deixar isso se arrastar indefinidamente, mas... acho que posso ajudá-lo a encontrar uma solução. E quem sabe, convencê-lo de que voltar para o castelo pode ser a melhor opção, eventualmente.
Ela ficou em silêncio por alguns instantes, analisando cada palavra que eu havia dito. O conflito em sua expressão era nítido, uma parte dela claramente desejava resolver tudo imediatamente, enquanto outra parecia hesitar, como se tentasse decidir se deveria confiar em mim.
Por fim, ela assentiu, embora de forma lenta e controlada.
— Tudo bem. — Sua voz era firme mas não havia agressividade. — Eu vou te dar essa chance, Victor. — Seus olhos se estreitaram levemente enquanto ela erguia o dedo indicador. — Mas será por tempo limitado. Uma semana. Se até lá não houver progresso... Vou ter que levá-lo de volta, não importa o que Burst queira.
Um misto de alívio tomou conta de mim. Eu assenti rapidamente, tentando não deixar transparecer o quanto sua aceitação, mesmo que relutante, me confortava.
— Um mês— murmurei, repetindo suas palavras como se estivesse gravando-as em minha mente. — Isso é mais do que suficiente.
Burst, que até então parecia absorver tudo em silêncio, olhou de relance para Jane, depois para mim. Havia algo diferente em seus olhos, como se a carga que ele carregava estivesse, aos poucos, se aliviando, embora a resistência ainda permanecesse.
— Você... realmente vai fazer isso? — Sua voz vacilou, carregada com uma mistura de surpresa e, talvez, uma centelha de esperança.
Eu apenas sorri, tentando transmitir a confiança que, no fundo, eu mesmo tentava nutrir.
— Vou. E farei o melhor que puder.
Jane suspirou, mas desta vez parecia mais resignada do que cansada.
— Certo, Burst — disse, virando-se finalmente para ele. — Você tem um mês. Não estrague isso.
O silêncio que seguiu sua fala foi diferente dos momentos anteriores, talvez, pela primeira vez em muito tempo, eles estivessem considerando a possibilidade de que, sim, poderia haver uma solução.
Jane se ergueu com um movimento fluido, ajustando sua postura.
— Farei visitas para saber como está se saindo, assim que o tempo acabar, irei buscá-lo. Até lá, ele está sob sua responsabilidade, Victor. — Seu olhar sério recaiu sobre mim, mas a severidade de antes havia suavizado um pouco. — Se algo sair do controle, não hesite em me chamar.
Eu assenti novamente. Ela lançou um último olhar a Burst antes de sair pela porta da sala, eu a acompanhei.
Logo após Jane sair, Merlin flutuou silenciosamente até Burst, pairando ao lado dele. Ela o observou por um momento antes de seu típico balão de fala aparecer.
—[Estou feliz por você, Burst. Isso é um passo importante.]
Burst piscou, visivelmente surpreso pela gentileza. Ele coçou a nuca, sem jeito, e tentou oferecer um sorriso tímido.
— Eu... é... obrigado, eu acho.
Merlin se aproximou um pouco mais, sua luz refletindo um brilho tranquilizador. Outro balão de fala surgiu rapidamente.
—[Mas você sabe que ainda precisa encontrar uma solução verdadeira, certo?]
A expressão de Burst se tornou mais séria, e ele desviou o olhar, como se aquelas palavras tivessem atingido um ponto sensível. Seus ombros caíram um pouco antes que ele suspirasse.
— Eu sei... — murmurou ele, quase como se estivesse admitindo algo que tentava evitar. — Mas não é tão simples quanto parece.
Merlin pairou ali, sua presença calma e compreensiva. Não havia pressão em suas palavras, apenas uma paciência silenciosa, como se soubesse que algumas batalhas precisavam ser enfrentadas no tempo certo.
—[Eu confio em você, Burst. Então, por favor... faça o seu melhor.]
Um breve silêncio se seguiu, e, por um momento, Burst apenas a observou, absorvendo a confiança gentil de Merlin. Quando ele finalmente assentiu, foi um gesto pequeno, mas genuíno.
— Eu vou tentar.
Enquanto Merlin continuava com Burst, caminhei em direção à porta, acompanhando Jane com passos calmos. Ao chegarmos à entrada, ela parou. Virou-se lentamente, seu olhar sobre mim.
— Obrigada por me acompanhar até aqui, Victor — disse ela. A voz era educada. — Antes de ir, posso te perguntar uma coisa?
— Claro — respondi, tentando manter a compostura.
Ela me estudou por um momento. Mas não parecia estar usando uma habilidade de análise.
— Por que você quer ajudar o Burst? — perguntou enfim, com uma curiosidade que beirava o desconforto. — Você não precisava. Muitos, na mesma situação, prefeririam apenas... se afastar.
Cruzei os braços, pensativo. Ela era alguém em posição muito além da minha, e estávamos falando do irmão dela, qualquer palavra mal escolhida poderia soar arrogante ou ingênua.
— Acho que Burst é um bom garoto — disse por fim, em um tom contido. — Ele tem seus problemas, claro. Mas... dá pra ver que está lidando com algo pesado. E... — Hesitei. — Às vezes, as pessoas só precisam de alguém que acredite nelas. Mesmo quando elas mesmas não conseguem.
Jane ficou em silêncio. Sua expressão endureceu por um instante, mas seus olhos vacilaram. Brilharam com algo que eu não soube nomear. Dor? Inveja? Solidão? Eu não sabia, mas senti que minhas palavras haviam tocado fundo, talvez onde ela não queria ser tocada.
Ela desviou o olhar. Olhou para o chão, como se precisasse se recompor, e por um instante.
Será que falei algo errado? A dúvida surgiu em mim imediatamente.
Ela respirou fundo, ergueu o rosto, e a máscara voltou ao lugar. Postura ereta, olhos firmes, o controle retomado.
— Entendo. — Sua voz agora era fria, distante, como se estivesse falando através de uma parede. — Suponho que isso faça sentido para você. — Um breve silêncio. Então, um sorriso forçado, daqueles que não sabem onde encontrar os olhos. — Espero que sua confiança não seja mal colocada.
Virou-se e partiu com um passo firme. A chuva lá fora continuava a cair, mas nenhuma gota ousava tocá-la. Como se uma força invisível a impedisse de ser tocada.
∘₊✧──────✧₊∘
Jane caminhava em silêncio pelas ruas encharcadas, a chuva se desviando ao seu redor como se soubesse que não era bem-vinda. Seu reflexo surgia e se apagava nas poças ao longo do caminho, distorcido pela água, pela luz fraca dos postes, por pensamentos que não se acomodavam.
O rosto de Victor ainda pairava em sua mente. Não o rosto em si, mas a postura. A forma como ele ficou ali, diante dela, sem recuar. Não foi insolência. Foi convicção. Ele acreditava no que dizia.
Jane fechou os olhos por um breve instante, o som das gotas contra o chão abafando tudo o que ela não queria ouvir.
Ele disse que Burst era um bom garoto.
"Às vezes, as pessoas só precisam de alguém que acredite nelas."
As palavras pesaram mais do que deviam. Não por serem erradas. Mas talvez… por serem verdadeiras demais.
Ela apertou os lábios, acelerando o passo, como se isso pudesse deixá-las para trás.
Não era raiva. Não exatamente. Também não era tristeza, nem inveja pura. Era outra coisa, mais funda. Algo que ela se recusava a nomear.
Victor era um estranho. Um monstro recém-nascido, ele não conseguiria esconder isso da habilidade de análise dela. Mas mesmo assim, em questão de minutos, disse coisas que ninguém nunca teve coragem — ou tolice — de dizer a ela.
E por alguma razão, ela não conseguia odiá-lo por isso.
Seus olhos encontraram o céu escuro à frente, a cidade distante, abafada pela névoa da chuva.
E Burst…
Jane respirou fundo. Não sabia se aquilo era esperança. Não sabia o que queria que fosse.
Ela só sabia que estava cansada. Mas jamais admitiria isso em voz alta.
Nem para si mesma.
⋅•⋅⊰∙∘☽༓☾∘∙⊱⋅•⋅