Um Pequeno Avanço

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O dia começou tranquilo, o sol suave da manhã iluminava meu quarto. O calor acolhedor do ambiente parecia relaxar meus músculos. Levantei da cama, ainda um pouco preguiçoso, e fui até o guarda-roupa. Peguei uma camiseta preta e uma calça da mesma cor, roupas simples, mas confortáveis. Não senti necessidade de vestir minha blusa hoje; preferia a sensação de liberdade que aquelas roupas leves me proporcionam.

Ao me aproximar da cozinha, ouvi o ranger da porta do quarto de hóspedes. Burst apareceu, ainda bocejando, com o cabelo desgrenhado e os olhos meio fechados.

— Bom dia, senhor Victor. — ele murmurou, esfregando os olhos enquanto tentava acordar de vez.

— Bom dia, Burst. — respondi com um leve sorriso. Ele parecia completamente à vontade, o que era bom sinal para o que eu tinha em mente para hoje.

Ainda bem que essa casa veio totalmente mobiliada, foi um alívio não precisar me preocupar com isso. Para alguém que não tinha nada, o conforto de uma cama macia e um café quente pela manhã era uma gratidão que eu não esperava sentir tão cedo.

— [Bom dia! O que faremos hoje?] — Merlin flutuava silenciosamente para fora do quarto. Ela não precisava dormir, mas parecia fazer questão de manter uma certa rotina conosco.

Hoje seria oficialmente o primeiro dia da nossa convivência com esse príncipe fujão. Passei a noite anterior pensando em como lidar com Burst, afinal, ele era jovem e impulsivo, mas eu precisava conhecê-lo melhor para entender como poderia ajudá-lo.

— Vamos começar o Plano de Aprendizagem Super Eficiente de Victor! — exclamei, erguendo o braço como se estivesse declarando o início de uma grande missão.

— [Oh! "Super eficiente"! Isso soa importante...] — A energia ao redor de Merlin pareceu vibrar levemente, como se ela estivesse ansiosa por alguma ação significativa.

Dei uma risada curta e olhei para Burst, que já estava se servindo de uma xícara de café.

O primeiro passo do meu plano era simples: uma conexão genuína. E, como qualquer plano brilhante, ele começou com algo básico — biscoitos e café.

— Acho que a de azul vai ganhar. — comentei, observando a tela da TV, onde um torneio de luta feminina estava acontecendo. As duas lutadoras se moviam rápido, trocando golpes com precisão.

Burst assentiu, parecendo tão concentrado quanto eu. — Talvez... mas acho que a de vermelho tem mais agilidade.

— [Isso não vai ajudar em nada...] — Merlin projetou, flutuando ao redor de nós como se tentasse entender o motivo daquilo. Sua luz oscilava de um lado para o outro, claramente confusa.

Era óbvio que Merlin não entendia, mas havia uma lógica no que eu estava fazendo. Burst se interessou pela lutadora de vermelho — uma mulher forte, agressiva, com uma presença opressora na arena. Ele devia estar acostumado a esse tipo de figura. Jane, sua irmã, tinha essa mesma aura dominante. Isso revela algo sobre como Burst via o mundo.

Já eu... me interessei pela lutadora de azul. Ela era mais focada, estratégica, observava o oponente com calma, analisava antes de agir. Não era a mais rápida, nem a mais imponente, mas tinha uma força silenciosa. Isso também dizia algo sobre mim. No fim, ambos estávamos fazendo escolhas que refletiam nossos instintos e experiências.

— Entendi... — murmurei, pensativo.

— [Entendeu o que?!] — Merlin parecia genuinamente perplexa.

O próximo passo do meu plano era simples: testar como Burst pensava. E, para isso, nada melhor do que uma boa partida de xadrez. Nos sentamos à mesa com o tabuleiro entre nós.

— O que vai fazer agora? — perguntei casualmente, enquanto movia minha peça, o cavalo, que comeu um dos piões de Burst

Burst franziu a testa, claramente ponderando sua jogada. Ele acabou movendo outro peão, sem pensar muito nas consequências, deixando-o na mira da minha torre.

— Droga... — ele murmurou, percebendo tarde demais. — Perdi mais um...

— [Estão jogando xadrez?!] — Merlin vibrou com tanta intensidade que sua luz quase piscava como um pequeno raio. Sua surpresa era palpável, apesar de ela não ter expressão facial.

Com apenas esse movimento, percebi algo importante: Burst era do tipo que atacava direto, sem pensar muito nas consequências. Ele não via o tabuleiro como um todo, apenas se concentrava no movimento imediato. 

Eu, por outro lado, pensava dois ou três passos à frente. Cauteloso, observando o cenário antes de agir. E isso não se aplicava apenas ao xadrez... essa diferença revela algo sobre nós dois.

— Entendi... — murmurei novamente, com mais convicção desta vez.

— [O que você está entendendo? Isso não faz o menor sentido!!!] — Merlin, agitada, continuava flutuando em círculos, sem conseguir acompanhar o fluxo dos meus pensamentos.

E assim, entre biscoitos, café e um jogo de xadrez, eu começava a desvendar o que se passava na cabeça de Burst. Ele era simples, direto, mas com muito a aprender. O que me restava descobrir agora era como eu poderia instruir alguém assim.... 

Hmm... É mais difícil do que eu esperava.

A primeira hora do dia passou de maneira surpreendentemente rápida e confortável, apesar dos meus esforços mentais intensos em meus testes elaborados com Burst.

— Muito bem, Burst, estamos progredindo. — Eu disse, sentindo um leve orgulho.

— Eu percebi. — Ele respondeu de forma rápida, também orgulhoso de si mesmo.

— [Vocês estão parados!] — Merlin estava brilhando mais que o normal dessa vez

Foi então que a realização me atingiu: quase me esqueci, hoje eu preciso ir à central de atendimento para obter meu novo documento de cidadão.

Sem perder mais tempo, seguimos em direção à central. Burst decidiu acompanhar, o que eu considerei uma boa ideia. Ainda precisava observá-lo mais de perto, entender quem ele realmente era.

Ao chegarmos, a visão que nos recebeu foi de um prédio que misturava o tradicional e o moderno de forma impressionante. As paredes exteriores eram compostas de metal prateado reluzente, refletindo a luz do sol de maneira quase cegante. No entanto, os traços arquitetônicos lembravam uma era antiga, com arcos de pedra trabalhada e vitrais que contavam histórias de heróis lendários. As portas deslizantes de vidro contrastavam com a estrutura imponente, abrindo-se para uma multidão de seres de todas as raças.

Elfos, com suas vestes elegantes e orelhas pontudas, caminhavam com passos leves e graciosos. Anões, mais robustos e com barbas densas, discutiam animadamente sobre negócios. Humanos, sempre em sua diversidade, se misturavam no meio. Havia até algumas raças menos comuns, como alguns homens lagartos.

— O reino realmente é um caldeirão de raças. — Comentei, impressionado com a variedade de seres. 

O interior do prédio não decepcionava. O chão de mármore polido refletia as luzes brilhantes do teto, e grandes painéis digitais piscavam em várias línguas, indicando os números das filas. Tudo era eficiente e limpo. As áreas de espera estavam organizadas com cadeiras acolchoadas, e os atendentes, em seus uniformes impecáveis, circulavam agilmente entre os guichês.

— Bem, hoje o lugar tá movimentado. — Observei o fluxo constante de pessoas indo e vindo, todos parecendo saber exatamente o que fazer.

— É diferente do que eu imaginei. — Burst falou, analisando o lugar com um olhar de desdém. Claramente, ele não era alguém que apreciava burocracias ou longas esperas.

Merlin, flutuando ao meu lado com sua aura sempre brilhante, observava tudo com curiosidade.

— [Existem documentos de cidadão para espíritos também? Como isso funciona?] — Ela perguntou, mais para si mesma, tentando entender o propósito de algo tão mundano. Sua confusão era adorável, considerando que ela mal compreendia esses conceitos burocráticos.

Após alguns minutos de espera, finalmente fomos chamados. A atendente, uma elfa de cabelos prateados e olhos verdes cintilantes, nos recebeu com um sorriso educado.

— Documentos de cidadão? Eles devem tê-lo entregue um cartão, está com você? — Ela perguntou com uma voz suave e agradável, claramente acostumada com a diversidade de seres que passavam por ali diariamente.

— Aqui está. — Respondi, entregando o cartão que recebi anteriormente quando abri o pedido.

O processo foi incrivelmente rápido e eficiente. A elfa manipulava os dados em seu terminal com habilidade, suas mãos ágeis passando de tela em tela. Em questão de minutos, Merlin e eu já tínhamos nossos documentos em mãos.

— Pronto, tudo certo. — Disse a elfa com um leve aceno. — Bem-vindos oficialmente ao reino.

Agradecemos e saímos dali, satisfeitos com a eficiência do lugar. Não era o tipo de experiência que eu esperava, mas era exatamente o que o reino prometia: organização impecável em meio à diversidade.

Ao sair do prédio da central de atendimento, fomos recebidos pela brisa suave do começo de tarde.

As ruas estavam repletas de vida. Comerciantes humanos, anões e elfos se alinhavam nos mercados ao longo das calçadas, oferecendo seus produtos. O cheiro de especiarias exóticas misturava-se com o aroma de pães frescos, enquanto pequenos grupos de pessoas se reuniam para conversas animadas. 

Gritos de crianças podiam ser ouvidos à distância, correndo em grupos pelas praças, onde fontes de água mágica dançavam no ar, refletindo luzes coloridas. Elfos de vestes longas andavam graciosamente entre os demais, e os anões, com suas armaduras rústicas, discutiam com paixão sobre metais e artesanato.

— Este lugar é mesmo agitado... — comentei, observando a movimentação ao nosso redor. O mercado estava cheio de vida, com pessoas de todas as formas e tamanhos passando por nós. As raças que eu considerava lendárias pareciam aqui tão comuns quanto qualquer cidadão.

— Pois é, desde a Grande União, este reino virou lar de muitas espécies. Claro, isso foi bem antes de eu nascer. — Burst respondeu, os olhos passeando pelos diversos estandes ao nosso redor.

— Então as raças eram separadas antes?

— Sim. Pelo o que eu sei, as raças dominantes — humanos, elfos e anões — costumavam considerar as outras como criaturas, quase iguais aos monstros. Mas depois da Grande União, isso mudou. Alguns monstros são permitidos aqui também, mas apenas espécies específicas. Como Merlin, por exemplo. Ela é um espírito, então pode vagar por aí ou se aliar a alguém. No caso dela, seria você. — Ele me olhou de canto, sugerindo que essa era uma situação bastante peculiar.

— Entendi. Então é assim que funciona.

— [Então eu sou tipo um animal de estimação agora?!] — Merlin escreveu, brilhando em uma luz irritada. 

Nós rimos da reação dela. Merlin tinha esse dom estranho de transformar qualquer situação em algo mais leve, e, surpreendentemente, até Burst riu. Foi a primeira vez que o vi realmente se soltar. A risada foi curta, mas genuína. Soou como algo que não acontecia com frequência.

A curiosidade sobre ele crescia. Não era só pela pessoa em si, mas pelo que ele representava nesse lugar. E, de forma quase natural, a irmã veio à tona na conversa.

— Ei, Burst, se não for um incômodo... como é a sua irmã?

— Jane? Bem... — Ele fez uma pausa longa, como se estivesse tentando puxar alguma definição neutra e não encontrasse nenhuma. — Eu não sei. Ela é decidida, muito determinada... Prioriza regras e ordem acima de tudo. Às vezes parece que acha que é uma lorde da guerra. Na maior parte do tempo, age como uma ditadora e despreza qualquer tipo de fraqueza.

Dava pra sentir a irritação contida no jeito que ele falava. Aquilo não era só mágoa, era convivência desgastada.

— Você sabe por que ela é assim? Parece difícil lidar com ela.

— Ela é difícil de lidar. Mas por quê? Não sei. Jane não fala sobre o que pensa. Eu já desisti de tentar entender. Só aceito e faço minhas coisas. Meu pai vive mandando ela atrás de mim, como se fosse um cão de guarda.

A comparação me arrancou um sorriso por dentro. Dava pra imaginar, ela tinha toda a postura de quem cumpria ordens com precisão militar. E fazia sentido, já que se intitulava general do reino. Mas talvez… talvez tivesse algo que eu pudesse usar.

Não porque eu me importasse com ela. Mas porque entender Jane talvez me ajudasse a entender Burst. E se eu conseguisse fazer os dois entrarem num acordo, evitaria me meter diretamente com os grandões do reino. Se eles se resolvessem sozinhos, ótimo. Eu só precisava encontrar a brecha certa.

Enquanto essa ideia se encaixava na minha cabeça, um pensamento bem mais aleatório surgiu.

— A sua irmã... é bem alta, né?

— Pfs! Hahaha! — Burst tentou segurar, mas a risada escapou sem esforço. — Com certeza.

Ok... não esperava essa reação. O que foi que eu disse?

— Você provavelmente tem 1,76 — Burst disse, se recuperando. — Eu tenho 1,78, e minha irmã tem 1,79. Nem é tanta diferença assim. Mas considerando que tenho 15 e ela 19... acho que ela é meio baixa, pro nosso padrão.

Baixa? 1,79?! De onde vocês tiraram esse padrão?

Enquanto ainda processava essa revelação, Burst olhou para um dos estandes da feira. Um anão robusto vendia armas forjadas à mão, suas mãos calejadas passando o fio de uma espada com precisão.

— Faz tempo que não treino esgrima — disse ele, distraído.

— Você sabe usar espadas? — Perguntei, curioso.

— Claro. Como herdeiro, recebi treinamento desde cedo. Jane também. Mas ela começou bem antes de mim, então ainda é insuperável nisso.

Uma ideia se formou na hora. Um jeito mais simples de me aproximar do que eu precisava saber.

— Que tal treinarmos juntos amanhã? — Sugeri. — Eu sempre quis aprender.

— Hmm... — Burst pensou por um momento. — Isso parece divertido.

— [Legal! Mas você precisa comprar uma espada primeiro. E Burst também tá sem nenhuma!] — Merlin avisou, já animada.

Nos dirigimos ao mercado de armas. Burst tinha olho pra qualidade, reconhecia boas lâminas como se tivesse feito aquilo a vida toda. Depois de um tempo, encontramos duas espadas perfeitas para treino.

Com as armas compradas e a promessa feita, senti que o dia tinha rendido mais do que esperava. Entender Burst era um bom começo.

Agora, se eu tiver sorte... amanhã encontro a Jane para fazer algumas perguntas, espero que ela responda…

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