Festival Amaterasu.

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O som dos passos ecoava na área aberta, afastada do centro movimentado da cidade. Era um campo de treino improvisado, próximo de um parque, com um chão de terra batida que já havia visto dias de batalhas simuladas. Estávamos longe da multidão e das distrações, prontos para o treinamento prometido.

Burst, com a postura relaxada, segurava uma espada longa com uma destreza natural. Seus movimentos eram precisos, sem esforço aparente. Ele não só dominava a lâmina com habilidade, mas também controlava o fluxo de sua energia como se fosse uma extensão do próprio corpo. Sua aura, misturada ao calor, irradiava de maneira visível. A chama alaranjada que envolvia a lâmina parecia viva, respondendo ao menor movimento de seu pulso.

— Preste atenção, Victor. O importante não é apenas o golpe, mas entender o fluxo da sua energia. — Burst falou, sua voz calma, mas cheia de comando. Ele girou a espada com facilidade, e a chama ao redor dela seguiu, formando um arco perfeito no ar.

Eu estava tentando imitá-lo. As palavras dele faziam parecer simples. Só que, para mim, não era. Cada vez que eu tentava canalizar minha energia e manter o controle da espada ao mesmo tempo, era como se tudo escapasse por entre meus dedos.

— Assim? — perguntei, com esforço visível.

Tentei seguir seu exemplo, levantando a espada que ele me deu e tentando concentrar minha energia em volta dela. Uma pequena onda de gelo se formou ao longo da lâmina, mas era instável. Antes que pudesse completar o movimento, a energia se dispersou, e a lâmina voltou a ser apenas uma arma fria e inerte.

Eu decidi usar gelo, pois querendo ou não, era a habilidade elemental de classe mais alta que eu tinha.

— Não, assim não. — Burst suspirou, frustrado mas paciente. — Você está colocando muita força, mas sem controle. Tente sentir o fluxo, ao invés de forçá-lo. Se você apenas tentar empurrar seu poder para a espada, vai quebrar o ritmo.

Eu tentei novamente, mas a espada parecia pesada em minhas mãos, como se fosse um fardo que eu não sabia como carregar. A energia que fluiu de mim era errática, criando um desequilíbrio entre força e técnica. Cada tentativa resultava em um erro. Meus movimentos eram lentos, desajeitados, comparados à facilidade com que Burst se movia.

— Droga... isso não é tão fácil quanto parece. — murmurei, sentindo a frustração crescer dentro de mim. 

— Claro que não é. — Burst respondeu, esboçando um sorriso enquanto baixava sua espada. — Aprender a lutar com uma espada não é apenas técnica. É entender como sua energia flui dentro de você, e como você pode canalizá-la para o seu ataque. Quando conseguir esse equilíbrio, tudo ficará mais fácil.

Porém tinha algo sobre isso, Burst estava me ensinando a usar minha energia para aplicar isso na lâmina da espada, mas ele não estava me ensinando a lutar com uma exatamente. Porém não o questionei sobre isso.

Ele demonstrou novamente, levantando a espada. Dessa vez, o calor ao redor da lâmina intensificou-se, e com um único movimento, uma labareda de fogo saiu da espada e cortou o ar, dissipando-se no céu.

— Uau... — eu murmurei, impressionado. A facilidade com que ele combinava sua energia com a arma era inacreditável.

— Não fique tão desanimado. — Burst falou, guardando a lâmina ao lado. — Você tem potencial, só precisa de mais prática. Controlar sua energia é como afiar uma espada; quanto mais você trabalha nisso, mais afiada ela fica. E quanto mais afiada, mais fácil será cortar seus oponentes.

Eu respirei fundo, tentando processar suas palavras e acalmar minha mente. Sabia que não seria fácil, mas algo dentro de mim sentia que valia a pena continuar tentando, por mais difícil que fosse no começo.

Merlin, que assistia de longe, flutuava de um lado para o outro, observando em silêncio. Sua curiosidade parecia crescer, mas ela evitava intervir no meio do treinamento. Eu sabia que, no fundo, ela estava torcendo por mim.

— [Você vai conseguir, Victor, continue tentando!] — Em seus balões de fala, surgia ao nosso lado, quase como uma bolha de encorajamento.

— Certo. Vamos de novo. — segurei a espada com mais firmeza, determinado a não desistir.

Burst realmente era impressionante. O controle que ele tinha sobre sua energia era de outro nível. Não é surpresa que seja o herdeiro, e imagino que tenha sido submetido a um treinamento rigoroso desde muito jovem.

Essa impressão só confirmou o que eu já começava a entender: Burst não era apenas forte, ele era dedicado, meticuloso. Jane sempre fazia parecer que ele era despreocupado e irresponsável, mas essa fachada escondia algo mais profundo. O que me deixava curioso era a ligação entre os dois.

Então se passou tempo, e entre conversas, explicações e mais treino prático, decidimos encerrar o dia, no final, Burst focou em me ensinar mais do que treinar a si mesmo. Eu não reclamei, ele me ensinou muitas coisas que com certeza, com prática vai me deixar bem mais habilidoso.

∘₊✧──────✧₊∘

A tarde quase noite estava tingida de tons vermelhos e pretos, como se o próprio céu tivesse se curvado diante da grandiosidade do festival. Na avenida principal, um imenso corredor de luz se estendia por centenas de metros. Bandeiras festivas balançavam sob a brisa morna, e drones dançavam pelo ar, formando imagens de dragões chineses vermelhos que se retorciam entre nuvens ilusórias. Era como estar dentro de uma pintura viva.

Esse grande festival se chamava Amaterasu. Burst me explicou, entusiasmado, que era uma tradição anual, celebrando a união entre as raças — um momento sagrado, de paz e renovação. A “Grande Chama da Aliança”, como dizem por aqui.

Mas algo me intrigava. O nome “Amaterasu”. Era o mesmo da deusa do sol nas lendas do meu mundo anterior. Seria coincidência... ou mais um daqueles estranhos paralelos entre mundos?

— [Vamos explorar!!!] — exclamou Merlin, animada como uma criança que acaba de ser solta em um parque de diversões.

— Isso aí! — Burst levantou o punho no ar, acompanhando o entusiasmo dela.

— Só tentem não se perder. — murmurei, já antecipando as confusões.

Burst franziu o cenho, confuso.

— Você não vem com a gente, senhor Victor?

— Vou dar uma volta sozinho... mas nos encontramos depois. Só quero andar por aí um pouco.

— Se você diz… vamos estar ocupados ganhando todos os prêmios, né, Merlin?

— [Pode apostar que sim!] — Merlin respondeu, vibrando ao redor dele com energia contagiante.

Eles correram em direção ao coração do festival, entre luzes, tambores e barracas coloridas. Eu sorri. Apesar da bagunça que Burst podia causar, era bom vê-lo se divertindo.

Mas, na verdade, meu objetivo era outro.

Eu queria encontrar Jane. Ainda não tinha tido a chance de conversar com ela direito, e sentia que esse festival seria o melhor momento. Em meio à multidão, talvez ela estivesse mais receptiva... ou ao menos menos armada.

Não comentei com os dois. Burst poderia se sentir pressionado ou agir de forma estranha — jovens são assim, às vezes. Melhor deixá-los se distrair enquanto eu cuidava disso.

Segui pelos arredores do festival, longe da multidão. Como imaginei, a segurança se concentrava nas áreas externas — guardas circulando em grupos, atentos a qualquer distúrbio. Foi ali que notei uma passarela suspensa entre dois prédios, ideal para observar a área.

Subi até lá. De cima, o festival parecia ainda mais grandioso: as luzes, os sons, as multidões de todas as raças misturadas... Era como um carnaval celestial. Consegui localizar Merlin e Burst brincando com um jogo de argolas em uma das barracas. Mas Jane ainda estava fora de vista.

No fim da avenida principal, avistei um grande templo alegórico. Dourado, vermelho e preto, com colunas que imitavam madeira antiga e um enorme sino dourado no topo. Era belíssimo, e familiar de alguma forma.

Aquele templo…

— É o templo da deusa Amaterasu. Bonito, não é? — disse uma voz suave atrás de mim.

Levei um susto, recuando um passo. Meus reflexos me traíram. Minha habilidade não detectou ninguém.

Virei rapidamente. Era uma garota da minha altura, talvez um pouco mais baixa. Seus cabelos negros desciam lisos até a cintura, como uma cascata fluida e silenciosa. Os olhos vermelhos tinham um brilho cálido e gentil.

Ela vestia um manto branco e vermelho, parecido com um kimono cerimonial, e sobre a cabeça usava uma espécie de chapéu militar, decorado com um símbolo que lembrava um brasão de fogo enorme — uma combinação entre dragão e sol.

Ela sorriu docemente e acenou, como se já me conhecesse.

— Ah, eu... desculpa, moça, você me assustou. — tentei manter a compostura.

— Foi sem querer. — disse ela, se aproximando com passos calmos e quase sem som. — Você estava observando o templo com tanta atenção... fiquei curiosa.

— É... Ele é bem bonito. Parece até de mentira.

— Não é o verdadeiro de fato. — Ela disse com um leve tom brincalhão. — O de verdade é muitas vezes maior. Tem jardins flutuantes, escadas de mármore e sinos que tocam sozinhos quando alguém puro entra.

— Parece... incrível. — murmurei, me colocando ao lado dela.

De onde essa garota surgiu? 

— Eu vim de lá de baixo. — respondeu ela de repente, apontando para a rua. — Vi você aqui em cima e quis ver o que estava fazendo.

— Você leu minha mente?

Ela balançou a cabeça, divertida.

— Uh-hum. Você está procurando alguém, não é?

— Eu... estava, sim. — Admiti, ainda meio desconcertado. — Você a viu?

— Vi. — respondeu, como se fosse óbvio. — Ela está no setor infantil, a leste. Estava ajudando algumas crianças a organizarem um desfile de lanternas. Uma muito bonita, com certeza aquece esse meu coração.

— Isso ajuda muito, obrigado mesmo. Senhorita...

— Me chamo A—

— Senhorita Amaterasu! — duas vozes ecoaram atrás dela.

Em um piscar de olhos, dois guardas se materializaram — um homem e uma mulher, ambos vestindo armaduras ornamentadas com detalhes em ouro e vermelho. Seguraram os braços da garota com delicadeza, mas firmeza.

— Quantas vezes já dissemos para não se afastar sozinha? — disse a mulher, num tom exasperado.

— A senhora precisa respeitar os protocolos de segurança. — completou o homem, com um suspiro resignado.

A garota inflou as bochechas como uma criança contrariada.

— Eu só queria passear um pouco! Vocês estão me envergonhando na frente do meu novo amigo!

Os dois guardas olharam para mim com olhos semicerrados. Claramente estavam avaliando se eu era uma ameaça.

Imitando o gesto anterior de Amaterasu, eu sorri e acenei.

— Perdão, senhor. — disse a mulher, um pouco mais ríspida. — Aproveite o festival.

— A gente vai se encontrar de no—

Com um aceno de cabeça e um estalar de dedos, os três sumiram como fumaça ao vento. Cortando a fala da garota.

Fiquei parado por um momento, o vento brincando com o meu cabelo.

Aquela era… Amaterasu? A deusa do festival?

Com um suspiro resignado, saltei de volta ao nível da rua, o som da multidão voltando aos meus ouvidos como uma onda.

Seja lá quem — ou o que — ela era, me ajudou.

Agora era hora de encontrar Jane.

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O setor infantil estava decorado com lanternas de papel, bandeirinhas coloridas e pequenas esculturas de criaturas mágicas feitas com flores. Crianças corriam rindo entre as barracas, e adultos supervisionavam com sorrisos cansados.

Entre elas, em meio a um grupo de jovens soldados de uniforme leve, lá estava Jane.

Ela estava parada próxima a uma das barracas de jogos — uma daquelas em que é preciso acertar alvos para ganhar prêmios. Mas ela não parecia prestar atenção às crianças ou ao jogo. Estava com os braços cruzados, postura ereta, expressão neutra... e os olhos fixos em um bichinho de pelúcia que balançava de um dos ganchos.

Um pequeno urso marrom com asas vermelhas e olhos brilhantes, tão deslocado quanto encantador.

Jane não sorria. Mas também não desviava o olhar.

Eu me aproximei sem pressa.

— Olá, comandante . Boa noite. — disse, com o tom mais casual que consegui.

Jane piscou uma vez, como se estivesse voltando de um transe, e virou o rosto lentamente na minha direção. A postura dela mudou sutilmente — o queixo se ergueu meio centímetro, os ombros ficaram mais retos.

— Victor. Boa noite. — respondeu com um aceno breve.

Antes que pudéssemos trocar mais palavras, três soldados surgiram por trás dela, como se tivessem sido convocados por um radar de desconforto.

— Ei, olha só! Alguém teve coragem de se aproximar da nossa comandante — disse um deles, um rapaz de cabelo azul preso em um coque desleixado. — Você veio pro festival também? Mas saiba que ela não gosta muito de companhia.

— Parece que ele quer aproveitar os brinquedos, hein, Jane? — provocou o outro, uma garota de sorriso estranho, cutucando levemente o braço da comandante .

Jane permaneceu em silêncio. Ainda com os olhos fixos no brinquedo, como se não tivesse escutado.

— Eu diria que esse tipo de coisa não é pra você, né? — comentou o terceiro, com um tom mais grave, talvez mais sincero.

Todos riram. Leve, como quem disfarça hostilidade com camaradagem.

— Eu só vim... acompanhar as crianças. — respondeu Jane finalmente, quase num sussurro. — O que vocês estão fazendo aí? Se não voltarem ao trabalho, vão se ver comigo.

— Nós vamos, mas não machuque a gente… Só estamos surpresos que a comandante de ferro veio ver os pirralhos ganharem ursinhos. — disse o primeiro — Nem parece que você é aquela que cortou um minotauro no meio com um golpe só.

Ela virou o rosto, levemente corada — mas não de vergonha. Era aquele tipo de rubor frustrado, como se estivesse prendendo algo dentro de si, algo que não podia sair ali.

Eu encarei os três soldados com uma expressão neutra e disse:

— Sabe... um urso com asas pode ser só um prêmio. Mas também pode ser... simbólico.

Os três me olharam confusos.

— Do que você tá falando?

— Nada demais. Só achei estranho alguém julgar o gosto dos outros enquanto usa um broche de coelho saltitante no uniforme. — falei, com um olhar breve para o rapaz de coque.

Ele olhou para o próprio peito, onde realmente havia um pequeno broche colorido.

— É... presente da minha irmãzinha.

— Claro que é. — dei um meio sorriso.

Um silêncio desconfortável caiu por alguns segundos. A garota tossiu e mudou de assunto.

— Bom, vamos deixar vocês dois. Jane, se precisar, estamos por perto... — disse com um falso tom prestativo.

— Férias disfarçadas de plantão... bem sutil. — murmurei.

Eles se afastaram rápido. Jane não disse nada.

O silêncio entre nós durou um pouco mais.

— Eu não preciso que você me defenda. — murmurou, finalmente.

— Eu sei, desculpa. Mas achei que precisava.

Ela me olhou de soslaio, sem virar o rosto completamente. A pelúcia ainda balançava ao vento. Estava claro que ela queria muito aquele ursinho. E estava igualmente claro que não ousaria se permitir algo assim... não na frente dos outros.

— Bom, o que achou daqueles três?

— Eles são bem chatos.

Jane sorriu de leve.

— É, eu também acho.

— Você realmente queria aquele bichinho, né? — perguntei.

— Não é da sua conta. Mas... o que veio fazer aqui?

— Bom, eu queria conversar mais com você. Achei que talvez estivesse relaxando aqui no festival.

Jane soltou uma risada curta, não debochada, mas cansada.

— Relaxar não é algo que faço bem, Victor. Nem eu, nem Burst. Acredito que você já deve ter notado isso nele. — Seus olhos se voltaram para mim, analisando minha reação com precisão.

— Sim, percebi, mas ele pareceu bem animado com o festival — respondi, aproveitando a abertura. — Ele é extremamente dedicado nos treinos. Isso me faz pensar por que ele realmente não quer o trono, sendo tão forte.

Jane desviou o olhar, fitando o céu, como se estivesse reorganizando os pensamentos.

— Burst sempre foi forte. Desde que éramos crianças, o controle que ele tinha sobre a própria energia era incrível. Nossos pais sempre disseram que ele havia nascido para isso. — Ela fez uma pausa, cruzando os braços. — Mas o problema é que ele nunca quis. Nunca de verdade. Talvez por isso pareça irresponsável. Mas, na verdade, ele só não quer a responsabilidade de governar.

— E você? — arrisquei, curioso. — Você parece ser ainda mais forte. Se força define liderança... por que não você?

Jane suspirou. Sua resposta veio rápida, mas carregava peso.

— Eu sou mais forte que Burst. Sempre fui. Mas isso nunca importou. O trono precisava de um herdeiro homem, não da filha mais velha. Meu papel foi decidido antes mesmo de eu entender o que era escolha. — Sua voz era neutra, mas o amargor estava lá, como uma brasa sob a neve.

Eu fiquei em silêncio por um instante.

— Isso parece... injusto.

Jane riu. Mas o som era oco.

— Injusto? O que é justo quando se trata de poder e política? Burst se esforçou, sim. Mas ser forte não é o suficiente pra governar. Você precisa querer... e aceitar o que vai perder no processo.

Houve um momento de pausa.

Seu olhar suavizou um pouco.

— Você vai perceber, Victor, que ser forte é só uma das peças do quebra-cabeça. Entender Burst... talvez exija entender mais do que só o poder dele. — Seus olhos encontraram os meus, firmes e honestos.

— Talvez, pra entender Burst... eu precise entender você também. — disse, antes que pudesse pensar demais.

Jane arqueou uma sobrancelha. Mas dessa vez, seu sorriso — leve e contido — alcançou os olhos.

— Talvez... — ela murmurou, coçando a nuca.

Eu paguei um ingresso e joguei o jogo da barraca. Era para estourar balões com dardos. Consegui sem esforço. Jane observava, com a mesma expressão neutra de antes.

Peguei o prêmio e o estendi para ela.

— O que está fazendo?

— Estou dando ele pra você.

— … Eu… não quero. Você pode ficar.

— Vamos lá. Considere um presente... por ter aceitado conversar comigo.

Ela hesitou. Olhou para o urso, depois para mim, depois para o chão. Finalmente, pegou o bichinho com mãos quase trêmulas e o segurou contra o peito.

— O-obrigada…

Logo após isso, Jane se virou e foi embora. Sem olhar para trás.

Mas mesmo de costas, eu conseguia ver: aquele pequeno urso voador dizia mais sobre ela do que qualquer palavra. A conversa foi muito produtiva e eu estava feliz.

Após isso, eu me encontrei com Burst e Merlin, brincamos um pouco, mas voltamos logo para casa, ainda tínhamos mais alguns dias de festival, então vamos aproveitar mais depois.

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De volta à minha casa, o ambiente estava mais leve do que o normal. Burst e Merlin conversavam animadamente enquanto verificavam os novos equipamentos que haviam comprado. Era interessante ver como, em tão pouco tempo, os dois conseguiram construir uma amizade genuína. Burst, que antes parecia distante e reservado, agora interagia com Merlin com mais naturalidade, como se aquele peso que carregava nos ombros tivesse se aliviado, ao menos um pouco.

— Ei, o que acha disso aqui? — Burst perguntou, segurando uma regata preta que tinha um talismã laranja pendurado no pescoço. — O vendedor disse que garante uma proteção mágica. Acho que vou precisar disso nas missões.

Ele vestiu a regata com um movimento fluido e natural, como se já estivesse acostumado com aquele tipo de roupa. A regata se ajustava perfeitamente ao corpo dele, destacando a forma física que claramente vinha de anos de treino árduo. A calça larga da mesma cor complementava o conjunto, e outro talismã, preso ao cinto, era projetado para aumentar a agilidade de quem o usasse.

— Parece que você está pronto para qualquer coisa agora — comentei, observando os detalhes dos talismãs. — Deve ser uma boa combinação para as missões fora do reino.

— A propósito, aqui está o seu — Burst me jogou uma regata branca junto com uma calça preta, quase idênticas às dele. O mesmo talismã laranja pendia no pescoço da regata, e o talismã no cinto também tinha as mesmas propriedades. — Achei que combinaria mais com você.

— Valeu. — Peguei as roupas e as examinei, impressionado com o cuidado que Burst teve ao escolher algo para mim também. O equipamento parecia robusto e, com certeza, seria útil, mas o gesto dele era o que mais chamava a atenção. Ele estava se abrindo mais, isso me alivia.

Enquanto me trocava e ajustava o equipamento no meu quarto, Burst e Merlin continuavam conversando. A energia entre eles era quase fraternal, e fiquei surpreso com o quanto aquilo contrastava com a maneira como Burst falava de sua irmã.

— A propósito, eu conversei com Jane hoje no festival — comecei, enquanto terminava de ajeitar a roupa, voltando para a sala. Ambos olharam para mim com interesse, especialmente Burst, que estreitou os olhos levemente.

— E o que você achou dela? — Ele perguntou, tentando soar casual, mas havia uma tensão perceptível na voz dele.

— Para ser honesto, ela não me pareceu ser uma pessoa ruim — respondi, pensando na conversa que havia tido no festival. — Na verdade, ela me parece alguém muito dedicada... ela leva as responsabilidades dela a sério, e, de certa forma, até entende o que você está passando. 

Burst ficou em silêncio por um momento, encarando o chão, como se ponderasse o que eu havia dito. Ele então soltou um suspiro, algo entre a aceitação e a frustração.

— Bom, essa é a sua opinião. — Ele deu de ombros, mas não com o usual sarcasmo ou desprezo. Era mais uma aceitação tranquila do que eu havia dito. — Eu não vou te impedir de gostar dela, se é o que quer.

Merlin observava tudo, claramente interessada, mas preferindo ficar em silêncio. Ela sabia quando deixar as coisas se desenrolarem sem interferência.

— Mas... — Burst continuou, sua expressão endurecendo um pouco. — O que me incomoda nela é essa maldita lealdade às regras. — Ele olhou diretamente para mim, sua frustração visível. — Ela é capaz de se prender a esse código, mesmo que claramente isso a esteja sufocando. Eu odeio isso.

Eu podia sentir o peso nas palavras dele, o conflito interno de ver alguém tão próximo de si preso em algo que ele desprezava. Para Burst, as regras pareciam mais correntes do que diretrizes, e sua irmã, a quem ele respeitava de certa forma, havia se tornado vítima disso.

— Eu entendo o que você quer dizer — respondi calmamente, tentando equilibrar as opiniões. — Mas acho que para ela, as regras são o que a mantém em pé. Talvez seja o que dá a ela uma sensação de propósito... mesmo que não seja o que ela realmente quer.

Burst me olhou, surpreso por um segundo, mas logo desviou o olhar. Talvez ele não tivesse pensado na situação sob esse ângulo.

— Pode ser... — ele murmurou. — Mas isso não muda o fato de que, se fosse eu, eu teria quebrado essas regras há muito tempo.

Merlin finalmente se manifestou, seu tom suave interrompendo a tensão no ar.

— [Nem todos conseguem carregar esse peso da mesma forma, Burst. Talvez o que funciona para você não funcione para ela. O importante é que, de alguma maneira, ela está fazendo o que acha certo, assim como você faz.]

Burst riu baixinho, mas era uma risada leve, sem amargura.

— É, Merlin, você tem razão. Acho que ainda temos muito o que entender sobre nós mesmos antes de querer entender os outros.

O clima relaxou novamente, e logo a conversa voltou a ser leve, com Burst e Merlin falando sobre as próximas missões e como os novos equipamentos iriam ajudar. Eu me sentei e observei os dois por um momento, pensando no quanto havia mudado desde que nos conhecemos. Embora houvesse ainda muitas barreiras a serem derrubadas, o simples fato de estarmos ali, juntos, como amigos, já era um progresso, ainda temos alguns dias, então espero que tudo dê certo.

Ao terminar de ajustar as roupas, me virei para os dois, com os braços esticados em um formato de "T", esperando um veredito.

— O que acharam?! — Perguntei animado, mudando o tom da minha voz para algo mais descontraído, até um pouco teatral.

Burst inclinou a cabeça para o lado, claramente tentando escolher as palavras com cuidado. Ele me olhou de cima a baixo, e suas sobrancelhas se franziram.

— Hmm... Você tem um corpo bem forte, isso é inegável. Eu consigo perceber bem... Mas...

Antes que ele pudesse terminar, Merlin interrompeu, flutuando ao meu redor, observando cada detalhe.

— [Victor! Seu cabelo cresceu um pouco! Que bonito!] — Ela parecia mais encantada do que eu esperava.

— Como assim? — Andei até o espelho, meio desconfiado, e assim que vi meu reflexo, minha boca se abriu em choque. — Oh...

Meus músculos estavam bem definidos, como Burst havia apontado, realçados pelas novas roupas que, de fato, deixavam tudo mais à mostra. A regata ajustada destacava meu corpo, mas algo diferente chamou minha atenção. Meu cabelo... estava mais longo, caindo um pouco abaixo do pescoço. Não só isso, mas meus traços faciais pareciam ter mudado levemente. Meu rosto estava mais delicado do que antes.

— O que está acontecendo...? — murmurei, incrédulo. 

— Parece que não foi só a sua altura — Burst comentou, se aproximando com uma expressão que variava entre confuso e divertido. — Você realmente está em fase de crescimento, hein?

— [Eu achei muito legal!] — Merlin continuou, claramente tentando me animar. — [Você está passando uma aura mais... Eh... Como se diz mesmo?]

Burst coçou a nuca, sem saber como completar o pensamento de Merlin.

— Sim... uma aura... quase... entendeu? — ele disse, enrolando as palavras como se tentasse encontrar a definição exata, mas falhando miseravelmente.

— Não, eu definitivamente não estou entendendo! — Exclamei, frustrado. — O que vocês querem dizer com isso?!

Burst e Merlin se entreolharam, ambos claramente sem jeito, tentando não rir da situação. Parecia que, apesar do crescimento, tanto físico quanto de habilidades, meu corpo metamorfo ainda estava se adaptando... Provavelmente graças à aparência do meu progenitor.

— Bom, o que queremos dizer é... — Burst começou, tentando evitar meu olhar diretamente. — Você tem um visual... único, agora. Isso é bom, certo?

— [É isso mesmo! Muito único!] — Merlin escreveu, com seu brilho corporal um pouco mais forte, eu tenho certeza que ela está rindo por dentro.

Suspirei, me olhando de novo no espelho, tentando aceitar que essa nova aparência talvez fosse só mais uma parte do meu crescimento como metamorfo. Mesmo assim, era difícil não me sentir um pouco envergonhado.

— Incrível... — murmurei, com uma mistura de frustração e constrangimento.

Burst deu um tapinha no meu ombro, um sorriso contido no rosto.

— Relaxa, cara. Vamos achar um jeito de lidar com isso. Quem sabe seu cabelo não cresce ainda mais e te deixa com um visual de... sabe, guerreiro estiloso? 

— Sim... claro... guerreiro estiloso... — murmurei, ainda olhando incrédulo para o reflexo. 

Enquanto os dois tentavam me encorajar, eu só conseguia pensar em como estava mais parecido com uma versão feminina de mim mesmo do que com qualquer guerreiro que já tinha visto. 

E assim, com aquela imagem gravada na minha mente e os risos mal contidos de Merlin e Burst, eu percebi que meu caminho de crescimento como metamorfo provavelmente seria cheio de surpresas... e muita frustração.

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» Nota: Metamorfos abaixo de classe S não possuem a capacidade de se transformarem completamente, então são acorrentados a uma aparência parecida ao do progenitor sendo este um Metamorfo Original, conhecido como nascido da mana ou da magia. Em caso do metamorfo de classe baixa conseguir evoluir seu espírito, seu corpo vai se desenvolver em uma velocidade mais rápida. Mas em situações normais, levaria no mínimo 40 anos para atingirem a classe S, o que não acontece, pois por sua natureza sedentária por combates, sempre morrem cedo.«

»Informação confiável da fonte o [Iluminado

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