Segundo dia do festival.

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O segundo dia do festival Amaterasu havia chegado, e bem de manhã, sai com o grupo de Don para fazermos algumas missões.

Para evitar atritos com Jane, escolhemos missões simples e próximas ao reino. Don nos acompanhou, e Burst também — claro que sim. As tarefas eram fáceis, mas para mim, tudo servia como aprendizado. Usei cada confronto para treinar meu controle de energia e minha técnica com a espada.

Com a orientação de Burst, senti progresso. Consegui embutir minha energia na lâmina com muito mais facilidade do que no dia anterior. Nada mal.

As missões foram tranquilas: caçamos alguns monstros, colhemos materiais e voltamos em segurança. Mas uma coisa chamou minha atenção.

Durante uma pausa, Burst elogiou Viola. Ele observava seu uso do fogo enquanto ela incinerava um ninho de criaturas.

— Você tem uma afinidade com seu elemento que parece ter sido polida a vida inteira — ele comentou, com sinceridade rara.

Aquilo ficou martelando na minha cabeça. Eu não sabia quase nada sobre o passado de Viola, nem dos outros membros do grupo de Don. Mas aquelas palavras despertaram algo. Eu tinha as habilidades de fogo e gelo, sim, mas... qual era minha afinidade verdadeira?

Não fazia ideia. E agora, queria muito descobrir.

Voltamos ao reino quando o sol já começava a se esconder. O segundo dia do festival estava prestes a ganhar vida, e eu estava motivado. Queria usar o tempo para treinar. Me isolar. Focar. Mas não tive chance.

Porque alguém apareceu.

— Olá, meu amigo! — disse uma voz animada.

Me virei e a vi: Amaterasu.

Sem seu tradicional chapéu, usando óculos escuros e um kimono simples com desenhos de rosas. Ela sorria como se estivesse se divertindo com algum plano secreto.

— O-olá… — respondi, tentando esconder a surpresa.

— Ah, não se preocupe. Estou disfarçada! Consegui escapar dos meus guardas. — Ela disse isso como se fosse algo comum, como comprar pão.

— Sério? Que bom pra você...

Meu tom saiu mais irônico do que eu queria, e ela percebeu. Sorriu ainda mais.

Olhei para Burst. Ele estava imóvel, olhos fixos nela.

— Você é…?

Amaterasu fez uma careta teatral.

— Tolinho. Você me vê todo ano, príncipe Ignaris. — E então deu um giro de 360°, inspecionando os arredores. — Sou eu, Amaterasu. — cochichou.

— Senhorita Amaterasu!

— Não grita! — ela sibilou de volta, dando um pequeno salto de susto.

— Desculpa… Eu só... não esperava que a senhorita viesse até a gente antes da sua grande apresentação.

— Você acha que eu fico mofando por aí até o último dia? Minha apresentação é o último evento, sim, mas eu também gosto de aproveitar o festival.

— [Olá! Muito prazer, me chamo Merlin.] — surgiu um balão de fala alegre flutuando ao lado dela.

— Ora! Um espírito. Muito prazer, Merlin! É um encanto conhecer você.

Ela então me olhou de novo, curiosa.

— Não sabia que você tinha um espírito com você. É seu guardião?

Parei. Aquilo soou mais sério do que eu esperava. Merlin me ajuda muito... mas ela é mais do que isso.

— Não. Ela é minha... melhor amiga. — respondi, desviando o olhar.

Amaterasu parou por um segundo, surpresa. Mas logo sorriu e fechou os olhos com doçura.

— Entendi.

— [Victor…] — um balão com olhos lacrimejando apareceu no ar.

— Nem venha com “Victor…” e olhos de cachorrinho pra cima de mim! — exclamei, sentindo minha orelha esquentar.

Burst riu — um riso contido, mas verdadeiro. Amaterasu fez o mesmo, tapando levemente a boca com a mão.

— Bom, preciso ir. Se perceberem que sumi, vou levar bronca. Mas adorei estar com vocês. A energia de vocês aquece meu coração.

— Podemos andar juntos outro dia — disse, surpreso por estar sendo sincero.

— Deve ser trabalhoso ser tão famosa — comentou o literalmente príncipe do reino.

Amaterasu soltou um riso contido. Discreta. Comedida. O tipo de riso que diz: “Se você soubesse…”

— [Boa sorte, Amaterasu!] — Merlin fez um "joinha" com luzinhas brilhando ao redor.

— Obrigada! — ela respondeu, fazendo o mesmo gesto com as mãos, e então começou a se afastar. Mas parou de repente, olhando por cima do ombro.

— Ah! Aquela pessoa está na área das crianças de novo. Pode ser importante pra você.

E com isso, virou-se e sumiu pela multidão.

Amaterasu foi, provavelmente, a primeira pessoa que eu vi desaparecer de forma normal desde que cheguei aqui. Isso por si só já seria surpreendente... mas eu entendi o que ela quis dizer.

Ela estava me dizendo para deixar Burst se encontrar com Jane.

Era um plano simples. Talvez ingênuo. Mas se eles se vissem casualmente, sem expectativas, num ambiente leve... poderia ser o começo de alguma reconciliação. Eu sei que os problemas entre eles não se resolveriam de uma hora para outra. Mas o primeiro passo, às vezes, é só dividir o mesmo espaço sem se atacar.

— O que ela quis dizer com aquilo? — perguntou Burst, olhando de lado.

— Eu não sei. Que tal irmos descobrir? — respondi, tentando esconder meu sorriso.

— [Yay! Vamos brincar na sessão das crianças!] — Merlin anunciou, animada, girando no ar como um pião.

— Isso! — respondi, entrando na brincadeira.

— Eu acho que vocês estão tramando alguma coisa...

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Jane estava apenas monitorando o local, caminhando calmamente de um lado para o outro enquanto observava os arredores. Seus olhos se estreitaram ao ver Burst — que reagiu do mesmo jeito.

Vamos lá, não briguem...

Ela se aproximou.

— Merlin. Victor. — cumprimentou, com um aceno rápido.

— E eu? — questionou Burst, com um tom entre provocação e amargura.

— …

Ela vai ignorar mesmo?

Suspirei. Talvez tenha sido uma má ideia, afinal… Eu precisava fazer alguma coisa. Esses dois não iam se dirigir uma única palavra se não fossem empurrados.

— Bem... — comecei, olhando para o lado. Burst já não estava mais lá.

— …

Jane me encarava, inexpressiva, mas meu desconforto estava evidente.

— Isso não vai funcionar — ela disse, cortante. — Trazer ele até mim não muda nada. Se eu não fui até ele esse tempo todo, é porque não há mais conversa.

— Vocês podiam pelo menos tentar... O que aconteceu entre vocês? Não pode ser só por causa da fuga dele.

Jane suspirou, os olhos se voltando para algum ponto vazio do chão.

— Você só veio atrás de mim por causa disso, não foi? Quer arrancar alguma informação que possa convencer Burst a mudar de ideia. Mas ele é cabeça dura.

Assim como você...

— [Senhorita Jane, se a senhora pudesse compartilhar ao menos informações mais claras sobre tudo isso, talvez pudéssemos ajudar melhor.]

— Isso mesmo. Não temos como convencer Burst a voltar se nem sabemos do que exatamente ele está fugindo.

Jane ficou em silêncio, mas seus olhos mostravam um pensamento em movimento. Algo ali a incomodava, embora ela não dissesse.

— É pessoal demais — murmurou por fim. — Mas... a verdade é que nós não nos entendemos há anos. E acho que já é tarde demais pra tentar mudar isso.

— É... Acho que não vou conseguir te fazer falar, se você mesma não quer.

Ela ergueu o olhar. E pela primeira vez, parecia cansada de verdade.

— Você deveria desistir disso. Se fizer, considerarei nosso acordo finalizado. Nem vou cobrar a multa. Você poderá seguir sua vida em paz… e eu levarei Burst de volta. Sem complicações.

Aquilo bateu mais forte do que eu queria admitir. Porque ela tinha razão. Eu estava tentando fazer algo que talvez fosse impossível. Mudar a cabeça de Burst em um mês, sendo que estamos na mesma casa, já parece difícil… mudar o coração dele? O da Jane? Era mais do que eu conseguia alcançar.

— [Isso é... confuso.] — escreveu Merlin.

— O quê? — Jane franziu o cenho.

— [Vocês são família, não são? Então por que agem como se brigar fosse a única saída? Como se... não houvesse mais nada que valesse a pena?]

Merlin estava falando sério dessa vez. Eu podia sentir isso na aura dela. Então fiquei quieto, esperando pela resposta.

Jane fechou os olhos por alguns segundos.

— Eu não sei responder a isso.

Silêncio.

Mesmo com o som do festival ao redor — gargalhadas, músicas, estalos de fogos distantes — tudo soava abafado. Como se nós estivéssemos isolados ali, num canto esquecido onde nem mesmo o brilho da festa conseguia alcançar.

Foi como tentar tirar água de uma pedra.

— Se me dão licença — Jane disse. E partiu.

Sem hesitar. Sem olhar para trás.

— Sabe, Merlin... acho que não vamos chegar a lugar nenhum desse jeito.

— [... Acho que deveríamos procurar o Burst.]

— Sim. — eu concordei desanimado.

∘₊✧──────✧₊∘

A praça estava mais vazia do que o restante do festival. Algumas crianças corriam ao longe com balões nas mãos, mas aqui, onde a fonte antiga jorrava uma água limpa e brilhante, tudo parecia mais calmo. Mais frio.

Ali estava Burst, sentado na borda da fonte, apoiado nos joelhos, com a cabeça baixa. Ele mexia em uma pequena pedra, jogando-a de um lado pro outro na palma da mão, mas estava longe de realmente vê-la.

Caminhei até ele em silêncio. Merlin flutuava logo atrás de mim, mais baixa do que o normal.

Burst não levantou a cabeça.

— Então? — disse ele, sem nos encarar. A voz saiu baixa, seca. — Imagino que deu tudo certo… ou não?

Parei em pé à frente dele, com Merlin ao lado. Me perguntei se valia a pena esconder o que aconteceu, ou suavizar. Mas isso seria covardia. E, honestamente, ele parecia já saber a resposta.

— Não foi o que eu esperava — confessei.

Ele soltou um suspiro quase cínico, e finalmente ergueu os olhos na nossa direção. Não parecia surpreso. Nem decepcionado. Só... cansado.

— Claro que não. Porque não importa o quanto se tente, ela nunca muda. Continua a mesma estátua gelada, defendendo um código que só ela entende.

Merlin se aproximou flutuando mais perto. Seu brilho estava mais apagado do que o normal.

— [Ela pensa o mesmo de você.]

As palavras de Merlin pairavam no ar, como uma brisa fria entre nós. Eu observei a reação de Burst atentamente. No início, ele apenas franziu a testa. Mas logo seus olhos se estreitaram, e ele se virou mais completamente para ela.

— Porque ela está errada — respondeu, como se fosse óbvio. — Ela é obcecada por regras. Por papéis. Por uma moralidade que já a afundou faz tempo. Você acha mesmo que tem como conversar com alguém que vive engessada pelo dever?

Merlin não recuou. O brilho suave ao redor dela parecia tremer, mas ela continuou firme. Ela escreveu, bem devagar, como se pesasse cada letra:

— [Mas vocês são família. Isso não significa alguma coisa? Família deve tentar se entender, não fugir ou machucar uns aos outros.]

Eu já conhecia Merlin o suficiente para saber que isso vinha de um lugar muito profundo dentro dela. E talvez, justamente por isso, Burst não conseguiu ignorar.

Ele apertou os olhos.

— Merlin… — sua voz mudou. Havia raiva ali agora, ou talvez frustração. — Você não sabe o que está dizendo. Você pelo menos sabe o que é ter uma família?

Silêncio.

O mundo pareceu parar por um instante. As vozes do festival ficaram distantes, como se estivéssemos em outro plano. Eu olhei para Merlin, esperando sua resposta.

Ela falou.

Merlin não tinha voz, nem expressões, mas havia uma firmeza dolorosa em sua resposta.

— Eu não sei. Eu nunca tive uma.

As palavras bateram com um impacto que me deixou sem reação. Burst piscou, como se levasse um soco invisível. E então, Merlin se virou. Não escreveu mais nada. Simplesmente se afastou, flutuando rápido demais para alguém tão pequena. Desapareceu entre as árvores baixas do caminho lateral.

Eu não consegui dizer nada.

Tudo aconteceu rápido, mas ao mesmo tempo, parecia que cada segundo tinha sido estendido, como uma corda sendo puxada até arrebentar.

Burst permaneceu onde estava, a cabeça agora abaixada de novo. As mãos apoiadas na fonte estavam trêmulas.

— ...Eu acho que fui longe demais — ele disse, quase num sussurro.

Me sentei ao lado dele, sem dizer nada. O mármore frio da fonte sob mim fazia contraste com o calor abafado do festival que ainda pulsava ao fundo. As vozes e as risadas pareciam distantes, como se estivessem em outro mundo, em outro tempo.

Por alguns longos minutos, ficamos ali — imóveis, em silêncio, sem trocar um olhar sequer.

Mas não era preciso. Eu sentia.

A forma como ele mantinha os ombros tensos, como os dedos se apertavam um contra o outro no colo. O olhar fixo em algum ponto no chão, perdido, como se procurasse palavras ali que nunca foram ditas.

E eu… eu sabia exatamente o que ele estava sentindo. Porque eu também sentia.

Culpa.

Não daquelas que nascem quando fazemos algo errado por impulso, mas a culpa que cresce devagar, em silêncio. Aquela que brota quando você falha com alguém que só queria te ajudar. Que só queria estar com você.

Merlin.

Ela sempre esteve ali. Desde o início. Me ajudando com paciência, mesmo quando eu não sabia pedir ajuda. Me guiando quando eu não entendia esse lugar.

Ela era melhor do que eu nisso. Muito melhor. Mas até ela tinha limites. E eu nunca reparei.

Pensei na promessa que fiz a ela, lá no começo. Que ajudaria a encontrar o passado dela. Que caminharia com ela, como amigo.

Mas em vez disso… eu a levei direto para conflitos que não eram dela. A coloquei no meio de uma tempestade, sem pensar que tudo aquilo também era novo para ela.

Ela me ajudou. Está sempre me ajudando. E eu não sinto que estou fazendo o mesmo.

Talvez seja por isso que agora… eu também me sentia culpado.

Suspirei, sentindo um aperto no peito.

— Que tal… a gente ir se desculpar? — perguntei.

Burst virou o rosto na minha direção, surpreso.

— Você também?

Assenti devagar.

— Sim… Eu acho que não prestei atenção nos sentimentos dela. Não tentei ver as coisas pelos olhos dela.

Ele ficou em silêncio por um tempo, então abaixou a cabeça e encarou as próprias mãos. Estavam entrelaçadas, os dedos pálidos de tanta força.

— Certo… — murmurou. — Eu acabei de ser muito cruel com ela.

A voz dele falhou um pouco, quase imperceptível, mas estava lá.

— Eu só… espero que ela me perdoe.

Eu olhei pra ele com um pequeno sorriso, triste, mas sincero. Porque no fundo, eu sabia.

— Ela vai. — disse, com convicção calma. — Porque ela é a Merlin.

E por mais que isso me confortasse… isso também me deixava mais triste, afinal, ela é este tipo de pessoa.

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A encontramos sentada sozinha — ou melhor, flutuando sozinha — na beira de um canteiro de flores do lado oeste, onde o festival seguia seu curso como se nada tivesse acontecido. A luz ao redor dela oscilava em tons mais suaves de lilás, menos pulsante que o normal. Ela parecia quieta. Não triste, exatamente... só distante.

Me aproximei com Burst ao meu lado. Não dissemos nada de imediato. Merlin não fugiu, nem se afastou. Apenas continuou ali, flutuando a alguns centímetros do chão, virada de costas pra gente.

Eu troquei um olhar com Burst. Ele parecia mais nervoso que o normal — o corpo tenso, o olhar fixo nela como se temesse ser repelido. Ele respirou fundo, tirou as mãos dos bolsos e foi o primeiro a se mexer.

Ele se sentou à esquerda dela, devagar, como se temesse assustá-la. Eu fiz o mesmo do outro lado. 

A fonte próxima murmurava baixo, e o som do festival ao fundo parecia distante, abafado por algo invisível entre nós.

— Eu não sei o que dizer — Burst murmurou, quase para si mesmo.

Merlin não respondeu. Mas sua luz oscilou levemente, como se o escutasse com atenção.

— O que eu disse antes… — ele continuou, com a voz um pouco falha. — Não era justo. Foi cruel. Você não merecia ouvir aquilo.

Nenhum balão de fala apareceu.

Ele abaixou os olhos, os ombros curvados. A franja escondia parte do rosto, mas eu vi quando ele mordeu o lábio, segurando as palavras que queria — ou talvez precisava — dizer.

Eu não era bom com isso. Nunca fui. Mas eu tentei.

— Eu também… — comecei, encarando o chão. — Fui meio cego. Não pensei em você. Nem no que você queria. Me desculpa, tá?

Foi só isso. Simples. Cru. Mas verdadeiro. E se fosse qualquer outra pessoa, eu teria me preocupado se não fosse o bastante.

Mas com a Merlin… não.

Ela girou no ar, devagar. A luz dela aumentou um pouco, mais brilhante, e um único balão surgiu, flutuando entre nós dois.

— [Que tipo de desculpas são essas? Tá tudo bem.] — um emoji sorridente surgiu 

Sem drama. Sem mágoa. Só… aceitação.

Burst ergueu os olhos para ela. E naquele momento, sem que ele dissesse mais nada, eu vi algo escapar — o brilho em seus olhos vacilou, como se a umidade tivesse chegado antes das palavras.

Ele limpou discretamente com a manga, fingindo que não foi nada.

— Obrigado, Merlin! — Ele exclamou tentando a abraçar, Merlin apenas ficou mais perto.

— [Ei, para com isso…] — Merlin brilhou mais forte, ela parecia feliz.

Merlin flutuou mais perto de nós, pairando exatamente no centro, entre eu e Burst. Sua luz parecia mais viva agora, pulsando de novo com aquele brilho quente que eu conhecia tão bem. 

Como se nada tivesse acontecido. Como se já tivesse perdoado tudo antes mesmo de ouvirmos suas palavras.

Ela era assim.

— Agora você vai fingir que não aconteceu nada, né? — murmurei, olhando pra ela de canto.

— [Exatamente.] — surgiu o balão seguinte, com um brilho sutil de travessura.

— Querem saber, conhecer vocês foi uma coisa muito boa. Até me orgulho mais ainda de ter fugido.

— Ei ei…

— [Ei ei…]

Eu e Merlin dissemos juntos, mas no final, apenas rimos disso.

Ficamos ali por mais alguns minutos. Não falamos de Jane. Nem das brigas. Nem da culpa.

Só ouvimos o festival ao redor, os risos das crianças, o cheiro doce das comidas no ar. Aos poucos, o mundo voltou a girar ao nosso redor.

Mas então quando notei aquela silhueta familiar se aproximando pela lateral da praça, me surpreendi.

Jane.

Ela caminhava em passos firmes e lentos, como sempre. Postura reta, olhos atentos. Mas havia algo diferente. O olhar dela estava... mais calmo. Não frio. Apenas... cauteloso.

Burst a viu também. Seu corpo enrijeceu na mesma hora. Mas, dessa vez, ele não se virou ou se afastou.

Ela parou a poucos passos de nós, silenciosa.

— Oi. — disse simplesmente.

A palavra pairou no ar, pesada na sua leveza.

— Olá de novo. — respondi de volta, tentando manter o tom natural.

Merlin flutuou até a frente de Jane, sua luz lilás vibrando de forma suave. Um balão de fala apareceu.

— [Senhorita Jane, você voltou!]

Jane piscou, como se fosse pega de surpresa. Mas o canto da boca dela subiu, discreto.

— É, acho que sim. — respondeu.

Silêncio. Não desconfortável. Mas cauteloso. Nenhum de nós sabia exatamente o que dizer. Até que Merlin escreveu mais um balão, com seu brilho mais forte agora:

— [Vai ficar com a gente amanhã? É o último dia do festival.]

Burst olhou discretamente para Jane, mas não disse nada.

Ela hesitou. Respirou fundo, desviando o olhar por um segundo, e então respondeu:

— Posso aparecer, sim.

Nada além disso. Nenhum sorriso aberto, nenhuma promessa.

Mas também não havia desprezo. Nem mágoa. Apenas um talvez sincero.

E foi o bastante.

Merlin girou uma vez no ar, satisfeita.

— [Boa! Vai ser divertido!] — um emoji animado surgiu, como um selo final na conversa.

A tensão no ar se dissolveu, como o último vestígio de névoa quando o vento passa.

Jane se virou, prestes a ir embora. Mas, ao dar alguns passos, parou e olhou por cima do ombro.

— Até amanhã, então.

Burst não respondeu. Mas também não desviou o olhar. E isso... era suficiente.

Enquanto ela desaparecia entre as luzes do festival, eu sorri. Minha [Percepção Analítica] já havia notado sua presença desde antes. Ela ouviu tudo: a discussão e o pedido de desculpas.

Parece que a grande comandante não tem um coração de pedra, não tanto quanto faz parecer.

Talvez... não seja sobre vencer uma briga. Talvez o primeiro passo seja só esse — parar e tentar ver o mundo com os olhos de quem a gente não entende. Porque às vezes, é só isso que alguém precisa.

Se Jane está disposta a tentar, espero que Burst se esforce um pouquinho mais também

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