Capítulo IX: O RIO DE PRATA

Kael vagava pela floresta, perdido em seus pensamentos turbulentos como um barco à deriva em um mar encapelado. A luta brutal contra Mouros o havia exaurido até a última gota de energia, cada fibra muscular implorando por descanso, mas ele não podia ceder. A certeza sombria de que seus inimigos não se dariam por vencidos o impelia adiante. Eles o caçariam como predadores famintos farejando sua presa debilitada, explorando cada resquício de sua vulnerabilidade.

A névoa fria e úmida serpenteava entre as árvores retorcidas como um espectro pálido, e as sombras alongadas pareciam ganhar vida própria, movendo-se sorrateiramente ao seu redor, como se a própria floresta, com seus sussurros de vento e rangidos de galhos, o observasse em sua fuga desesperada. Seu corpo era um mapa de dores lancinantes, cada passo uma tortura, a visão turva e instável, transformando o mundo em um borrão indistinto de cores e formas. No entanto, ele persistia, impulsionado por um instinto primal de sobrevivência, a necessidade visceral de escapar das garras invisíveis de seus algozes.

— Que diabos foi aquilo, afinal? — Ele murmurou para si mesmo, a voz rouca e embargada, tremendo levemente com o esforço e a confusão que ainda o assombravam.

— Calma, Kael... respira fundo. Pensa com clareza — sibilou em um sussurro para si mesmo, a determinação vacilante lutando contra a exaustão que o puxava para o abismo. — Primeiro, preciso sumir daqui. Encontrar um maldito buraco para me esconder antes que me achem.

O futuro era uma tapeçaria escura e desconhecida, mas ele se agarraria a cada fio de esperança, pronto para enfrentar o que viesse com a fúria desesperada de um animal encurralado. A noite o havia marcado de forma indelével. O antigo Kael, hesitante e atormentado, parecia ter se extinguido ali, sob o brilho sinistro da magia negra. Em seu lugar, emergia um sobrevivente, cicatrizado pela violência, um predador relutante, disposto a tudo para não ser a presa.

Kael seguia adiante, tropeçando na escuridão, determinado a encontrar seu destino incerto, como um peregrino exausto em busca de um oásis mirageiro no deserto implacável. A jornada seria longa e tortuosa, repleta de perigos invisíveis e desafios brutais, mas ele não se renderia. A chama fria da vingança ardia em seu peito, alimentada pela traição e pelo ódio. Seus inimigos pagariam, um por um, pela ousadia de o quererem morto.

Mas antes de saciar essa sede lancinante, ele precisava de refúgio, um santuário sombrio onde pudesse lamber suas feridas e reunir as forças esvaídas. O som distante de água corrente cortou o silêncio opressor da noite, guiando-o como um farol tênue em meio à escuridão impenetrável.

— Um rio... — murmurou, os lábios rachados se curvando em um esboço de sorriso hesitante, uma réstia de esperança frágil em meio ao desespero avassalador.

O rapaz cambaleou até a margem do rio. A luz pálida da lua minguante dançava sobre a superfície da água, transformando-a em um espelho líquido e cintilante. Ele se ajoelhou com um gemido de dor lancinante e lavou o sangue coagulado de suas mãos e rosto, a água fria aliviando momentaneamente a ardência dos ferimentos. Mas a sensação pegajosa de violência parecia ter se infiltrado em sua pele, assombrando-o como um espectro do passado.

— O que eu fiz...? O que eu fiz...? — murmurou Kael, a voz trêmula, embargada por uma confusão de emoções conflitantes que o dilaceravam por dentro. A culpa o mordiscava por ter tirado uma vida, mas o alívio selvagem de ter sobrevivido o mantinha à tona, um paradoxo doloroso. Mouros era um membro da elite de Isgard, sim, mas também um traidor desprezível, um assassino rastejante que merecia o fim que encontrou. Kael não era um assassino... não era. Mas a sobrevivência o havia forçado a cruzar essa linha sombria, manchando sua alma.

Se eu conseguir atravessar o rio... Um fio tênue de esperança cintilou em seu coração exausto. Poderei despistar meus perseguidores. Mas, ao tentar se levantar, a margem lamacenta e traiçoeira cedeu sob seus pés debilitados. Em um instante de desequilíbrio, ele escorregou, sendo tragado pelas águas geladas e implacáveis do rio.

A água gélida o envolveu como um sudário úmido e pesado, puxando-o para as profundezas com uma força surpreendente. O choque cortou sua respiração, e ele engoliu água turva, engasgando e tossindo enquanto lutava inutilmente contra a correnteza impiedosa que o arrastava para o abismo. Seu corpo girava desorientado, e o desespero gelado tomou conta de seus sentidos, afogando-o em um mar de angústia e pavor.

Com um último esforço desesperado, Kael agarrou uma pedra escorregadia, coberta de musgo viscoso, mas seus dedos trêmulos e enfraquecidos não encontraram firmeza. Ele sentiu a força da correnteza o arrastar inexoravelmente para as profundezas escuras, e o medo primordial gelou seu sangue até os ossos.

De repente, uma mão forte e inesperada o puxou com violência para fora da água gelada, arrancando-o das garras da morte certa. Tossindo e cuspindo água, ele foi arrastado com dificuldade de volta para a margem lamacenta, seus dedos cravando na lama fria enquanto sua respiração se tornava um arquejo sofrido, cada inspiração uma batalha dolorosa para trazer o ar de volta aos seus pulmões.

— Irmão... você está bem? Kael? — Uma voz familiar, carregada de preocupação genuína que vibrava no ar frio da noite, ecoou em seus ouvidos atordoados. Seus olhos se abriram brevemente, pesados e turvos, mas a visão embaçada o impedia de distinguir o rosto de seu salvador.

E então, a escuridão benevolente o engoliu por completo, levando-o para um sono profundo e sem sonhos, um oblívio bem-vindo após a provação excruciante que quase o levara à morte.

O calor suave do sol da manhã acariciava o rosto pálido de Kael, despertando-o lentamente de um sono pesado e agitado, pontuado por pesadelos fragmentados de fogo e sombras que dançavam em sua mente exausta. O canto melodioso dos pássaros se misturava ao sussurro suave do vento nas folhas das árvores, criando uma sinfonia reconfortante que o envolvia gradualmente, como um bálsamo para sua alma ferida. Seus olhos se abriram com lentidão, as pálpebras pesadas como chumbo derretido, e a luz dourada do sol o cegou por um instante, forçando-o a piscar repetidamente para se ajustar à claridade. Acima dele, a silhueta de um homem bloqueava a luz, e Kael ergueu uma mão hesitante para se proteger do brilho. A figura era indistinta a princípio, mas a voz serena e inconfundível o despertou completamente.

— Kael, irmão... você está bem? Kael? — disse a figura, a preocupação vincando sua testa enquanto dava pequenos e suaves tapas em seu rosto pálido e o encarava agachado ao seu lado, os olhos cor de mel fixos nos seus.

Kael tentou responder, mas sua boca parecia selada, e seus membros estavam dormentes e pesados como se tivessem sido preenchidos com areia. Ele apenas encarou a figura enigmática de volta, seus olhos ainda nublados e estranhamente escuros, tentando decifrar a familiaridade em meio à névoa da exaustão que toldava sua mente. Sua mente processava os eventos da noite anterior em câmera lenta, como se tentasse montar um quebra-cabeça complexo cujas peças não se encaixavam. A voz... era inegavelmente familiar, mas a identidade de seu dono ainda lhe escapava.

— Ai, deuses... como faço para remendar você todo? — suspirou o homem em um tom de preocupação genuína ao observar o estado deplorável de Kael: roupas sujas e rasgadas, o rosto marcado por cortes superficiais e profundas olheiras roxas que denunciavam a noite de terror. Ele revirou uma mochila surrada e tirou algumas gazes limpas, ataduras e um pequeno pote de pomada de ervas com um aroma reconfortante que pairou no ar matinal.

Kael piscou algumas vezes, lutando para focar a visão. Aos poucos, a figura borrada começou a ganhar nitidez. Cabelos cacheados castanhos claros emoldurando um rosto sardento e amigável, a altura mediana... Zene? Um lampejo de reconhecimento vacilante atravessou sua mente confusa. Zene!

Zene Levi, mais que um amigo leal, um irmão de coração, que o havia encontrado à beira da morte e o arrancado das garras geladas do rio. Kael tentou se levantar, mas um gemido involuntário, carregado de dor lancinante, escapou de seus lábios. Seu corpo inteiro protestava em uníssono, cada músculo clamando por descanso como se tivesse sido torturado por horas. Zene o amparou imediatamente, ajudando-o a se sentar com cuidado, seus braços firmes oferecendo um suporte bem-vindo.

— Calma aí, Hércules... você precisa descansar. O que houve com seus olhos? E essa... tatuagem na testa? Você resolveu virar um marginal agora? — disse Zene, com um tom de voz que misturava brincadeira nervosa e preocupação genuína, enquanto apoiava Kael, seus olhos cor de mel examinando as estranhas alterações no rosto do amigo. Os olhos de Kael eram negros, sim, mas de uma forma estranhamente comum, sem o brilho sobrenatural que Zene poderia esperar de algo mágico. Eram apenas olhos escuros, profundos, o que tornava a reação de Zene mais de estranhamento do que de medo.

— Me-meus olhos? — Kael tentou articular, a voz ainda rouca e hesitante. Ele se levantou com dificuldade, cambaleando ligeiramente, e pegou uma tampa de panela brilhante que Zene tirou da mochila, usando-a como um espelho improvisado. — Quem vai arrumar essa bagunça agora? Eu certamente! — concluiu Zene com um suspiro dramático, observando a própria imagem refletida.

Kael arregalou os olhos, perplexo com sua própria imagem distorcida. — Meus olhos… eles… Eles estão negros! — Uma onda fria de estranheza o invadiu, percorrendo sua espinha como um arrepio. Deve ser o efeito dessa marca estranha na minha testa. Alguma magia ancestral deve estar bloqueando meus poderes, pensou, a testa franzida em confusão enquanto tocava a cicatriz sutilmente elevada em sua testa, sentindo uma leve dormência sob os dedos.

— Você me deu um baita susto, sabia? E você está horrível! Parece que lutou com um urso e perdeu... para o urso. Mas fala sério, o que diabos aconteceu? E onde está o General Mouros? Não o vi por perto... — questionou freneticamente Zene, com um tom de voz que oscilava entre o alívio e a apreensão, enquanto encarava Kael com atenção, seus olhos dançando entre os olhos negros do amigo e a misteriosa marca em sua testa, sem tempo para digerir todas as mudanças repentinas.

— Mouros está morto — começou Kael, a voz fraca e rouca, carregada de um ódio gélido que ainda persistia em seu âmago. Seus olhos, de fato negros como obsidiana, estavam semicerrados, fixos em um ponto distante, como se revivesse os momentos brutais da luta em sua mente atormentada.

— Mo-morto? Como assim morto? Aquele brutamontes... parecia invencível! — exclamou Zene, descrente com a notícia chocante, as sobrancelhas arqueadas em incredulidade, a boca entreaberta em um silêncio atônito.

Kael reuniu as poucas forças que lhe restavam e contou a Zene tudo o que conseguia se lembrar da noite fatídica. Falou da emboscada traiçoeira, da seita sinistra de bruxas e seus encantamentos sombrios que queimavam como gelo, do círculo de fogo infernal que o aprisionara, da traição amarga do General Mouros e de como, em um último ato desesperado e sangrento, o havia derrotado. Cada palavra era um fardo pesado, carregado de emoção e exaustão, proferido com pausas para recuperar o fôlego.

Os olhos cor de mel de Zene se arregalaram a cada revelação, sua boca entreaberta em um choque silencioso, a incredulidade estampada em cada traço de seu rosto.

— Aquele traidor miserável! Se você não tivesse acabado com ele, aquela lata velha iria sofrer nas minhas mãos! — disse Zene em um tom de ameaça teatral, cerrando os punhos e simulando um golpe no ar com uma fúria cómica que contrastava com a seriedade da situação, mas demonstrava sua lealdade feroz.

— Aham, sei... Ele teve sorte de não topar com você. Seria um estrago! — respondeu Kael com uma ironia cansada, um leve sorriso amargo curvando seus lábios feridos.

— Vai rindo... Essa sua cara de acabado não te ajuda em nada, sabia? Tá, mas por que diabos Mouros o trairia? — questionou Zene, a testa franzida em genuína confusão enquanto tirava uma pequena panela fumegante com café de uma fogueira improvisada que crepitava alegremente ali perto, o aroma forte da bebida quente pairando no ar.

— É isso que estou tentando descobrir — respondeu Kael, a voz ainda embargada pela preocupação, seus olhos negros fixos no rosto inquisitivo de Zene, buscando em vão alguma resposta em seus traços amigáveis.

— Nós precisamos voltar para Isgard e reportar tudo ao seu pai e... — começou Zene, enquanto servia cuidadosamente um copo de café quente e reconfortante para Kael, o vapor subindo em espirais delicadas.

Mas Kael o interrompeu antes que a frase fosse concluída, a voz carregada de uma urgência cansada e um medo crescente. — Não, não, Zene. Eu não posso voltar para Isgard!

Uma sombra fria cruzou a mente de Kael naquele instante. As peças se encaixavam de uma maneira perturbadora. A emboscada tão bem planejada, a presença de Mouros, a hora e o local... Uma suspeita sombria e gelada começou a se formar em seu interior, uma traição ainda mais profunda e dolorosa do que a de Mouros. Seria possível...? Teria sido meu próprio pai...? A ideia o atingiu como um golpe, roubando-lhe o ar. O rei Fergus sempre vira Kael como um empecilho, um lembrete constante de um passado que ele preferia esquecer. Magnus, o herdeiro perfeito, nunca tivera sua posição ameaçada por Kael... até agora. A amargura subiu à sua garganta, mas ele a engoliu, decidindo não compartilhar essa terrível suspeita com Zene ainda. Era um fardo pesado demais para carregar sozinho, mas a lealdade inabalável do amigo não merecia ser manchada por essa dúvida sombria... ainda não.

— Não faço ideia do que motivou Mouros, mas ele não agiu sozinho. Alguém realmente quer a minha cabeça. E eu preciso descobrir quem e por quê — concluiu Kael, a determinação sombria em seus olhos negros contrastando com sua fragilidade física.

Zene franziu a testa, a preocupação evidente em seus traços enquanto encarava a determinação teimosa de Kael em seguir sozinho. — "Preciso" não, "precisamos", você quis dizer, né? Porque eu vou com você, Kael! — afirmou Zene com um rosto sério e resoluto, sua lealdade inabalável brilhando em seus olhos.

— Mas nem pensar! — respondeu Kael sem hesitar, a teimosia ecoando na sua voz rouca.

— Ah, qual é, Kael? — Zene insistiu, um tom de súplica em sua voz geralmente alegre, mas agora carregado de uma preocupação genuína.

— A situação é complicada demais, Zene. Eu não sei mais em quem confiar. Poucas pessoas sabiam do meu paradeiro naquela clareira. Deve ter sido alguém importante, do alto escalão... e é isso que mais me preocupa — divagou Kael, a mente atormentada por dúvidas sombrias e a crescente sensação de paranoia.

Zene franziu a testa, a preocupação aprofundando as linhas em sua testa sardenta. — Hmm... me parece que você precisa de ajuda! — concluiu Zene com um sorriso largo e reconfortante, oferecendo seu apoio incondicional com um tom de voz gentil e protetor.

_ Teimoso feito uma mula manca como sempre…

Conclui Kael revirando seus olhos negros enquanto repousava uma de suas maos em seu rosto ainda roxo.

— Estou às ordens, meu capitão! — afirmou Zene com um entusiasmo contagiante nos olhos, um sorriso determinado iluminando seu rosto sardento enquanto levava uma das mãos à testa em uma saudação militar improvisada e um tanto desajeitada.

— Ok, ok! Você é teimoso feito uma mula manca — bufou Kael, cedendo à teimosia bem-intencionada do amigo e o encarando com uma mistura de exasperação e gratidão. — Escute! Eu quero que volte para Isgard. Reporte que encontrou Mouros já sem vida na selva e que eu... desapareci. Assim, ninguém suspeitará de você. Comigo, você não estará seguro. Além disso, eu preciso de olhos e ouvidos dentro do Reino. Só posso contar com você por enquanto.

Explicou Kael, a voz carregada de preocupação genuína e uma determinação sombria que pairava sobre seus olhos negros, agora sem qualquer traço de magia visível, apenas uma escuridão comum que, paradoxalmente, o fazia parecer um mendigo qualquer aos olhos desinteressados de um passante eventual – alguém que merecia apenas desprezo, não medo.

— Tudo bem, mas primeiro... café da manhã. Afinal, saco vazio não para em pé! — disse Zene com um sorriso travesso, pegando a panela fumegante e servindo os dois. Eles trocaram algumas palavras enquanto tomavam o café da manhã, Zene tentando aliviar a tensão com piadas sem graça e histórias exageradas, enquanto Kael bebia o líquido quente, o olhar distante, absorto em seus pensamentos sombrios.

— Bom, então vamos, levante-se! — disse Zene enquanto puxava Kael cuidadosamente para se apoiar em seu ombro, ajudando-o a se colocar de pé com um esforço considerável.

— E para onde vamos? — questionou Kael, sentindo cada músculo de seu corpo protestar contra o movimento.

— Vou levá-lo até Monvia. Parece que você precisa de um lugar para se recuperar. E, falando sério, você é mais pesado do que parece, sabia? — afirmou Zene em tom de brincadeira, enquanto Kael se apoiava firmemente nele, cada passo custando uma grande quantidade de energia.

Ele se agarrou aos ombros de Zene, usando-o como um apoio precário enquanto o amigo o ajudava a subir na carroça velha e rangente que Zene havia escondido na orla da floresta. O balanço suave e constante do veículo logo embalou Kael novamente para o sono, a exaustão vencendo sua determinação de permanecer acordado.

Kael sentiu a carroça trepidar suavemente na estrada de pedras irregulares e despertou brevemente. A brisa fresca das montanhas acariciava seu rosto, misturada ao canto melodioso dos pássaros silvestres. Por um instante fugaz, uma paz tênue envolveu seu corpo exausto e sua mente atormentada. Ele fechou os olhos novamente para descansar, a jornada incerta para Monvia seu único refúgio no turbilhão de traições e mistérios que o cercavam.