Capítulo X: MONVIA

— Ei, amigo, chegamos! — A voz de Zene cortou o silêncio da viagem, enquanto as rédeas em suas mãos detinham a carroça com um gemido de madeira. 

Kael, pálpebras cerradas, entrincheirava-se na simulação do sono, um frágil baluarte contra a dor lancinante e a confusão turva que ainda o assediavam. Um cutucão leve, mas insistente, no ombro o trouxe de volta à superfície da consciência. 

— Bela Adormecida, Monvia te espera! — Zene sorria, as sardas em seu rosto se acentuando com a alegria travessa em seus olhos. 

— Zene... me deixe na escuridão por mais um instante. Cada fibra do meu corpo clama por repouso, as feridas pulsam como corações furiosos... — murmurou Kael, a voz rouca e embargada pelo esforço. 

A observação de Zene, proferida com uma ruga de preocupação entre as sobrancelhas, dissipou a atmosfera leve. 

— Estranho... para a lendária rapidez de cura de um lobisomem, você parece uma flor murchando. — Ele ajudou Kael a descer da carroça, a firmeza de seu toque contrastando com a leveza de suas palavras. 

— Lobisomem? Zene, você anda misturando hidromel com éter? — Kael endireitou-se abruptamente, sentando na beirada da carroça. A irritação, uma faísca escura em seus olhos, era um sinal bem-vindo de seu retorno ao mundo dos vivos. 

— Ah! Eis que a menção de uma criatura noturna traz a fera de volta à luz do dia! — Zene gracejou, depositando um tapa hesitante no ombro ainda tenso do amigo. 

— Fera? Que anseia por algo mais forte é esse? Que tal um olho roxo? — Ameaçou Kael, um brilho perigoso cintilando em seus olhos. 

— Kael, a carranca não combina com você... Parece faminto... — Observou Zene, desviando o olhar do desafio nos olhos do amigo para seu semblante pálido. 

— Um café fumegante e alguns biscoitos que não pareçam ter sobrevivido a três eras geológicas seriam um bom começo — retrucou Kael, a ironia tingindo suas palavras como fel. — Mas obrigado pela sua... peculiar forma de cuidado. 

— Por sorte, Monvia acena com a promessa de uma padaria cujos "sonhos" transcendem a mera doçura. Já consigo sentir o aroma celestial... — Zene esfregou as mãos, o tilintar das moedas em sua bolsa soando como uma melodia tentadora. 

— Vá em frente. Esticar as pernas e absorver a... singular atmosfera deste lugar talvez espante alguns dos meus demônios interiores — Kael forçou um sorriso fraco, a curiosidade lutando contra a exaustão persistente. 

— Certo, mas lembre-se: olhos atentos para os dedos rápidos e, pelo amor de tudo que é sagrado, evite qualquer encontro íntimo com veículos desgovernados! — A advertência de Zene era um amálgama de genuína preocupação e seu humor peculiar. 

— Pare de me tratar como um filhote perdido, Zene — Kael resmungou, a irritação voltando a borbulhar como lava. — Paz e amor, irmão! Apenas me recordo da reputação... Monvia ferve com assaltos à luz do sol, um mercado negro de uísque e tabaco que faria piratas engasgarem, assassinos de aluguel com reflexos de víbora... e, ah sim, meus refúgios prediletos... digamos que a "hospitalidade" aqui assume formas... digamos... criativas — Zene compartilhou a sórdida fama do vilarejo com um brilho travesso nos olhos. 

— Zene! Os biscoitos e os tais "sonhos"! Antes que a fome me faça ter visões! — Kael o apressou, a impaciência crescendo como uma sombra. 

— Meu estômago roncando nubla meu bom senso! Já volto com um banquete digno de um rei... ou, no seu caso, de um lobo faminto disfarçado de humano! — Com uma piscadela rápida, Zene partiu em direção à promessa de prazeres culinários. 

Kael fitou Monvia. A vila se agarrava às encostas de montanhas colossais, seus picos nevados e envoltos em névoa como espectros ancestrais em vigília silenciosa. Um rio serpenteava preguiçosamente através do casario, uma faixa prateada refletindo a luz matinal, um toque de serenidade em meio à crescente cacofonia da vida. A beleza selvagem e imponente da natureza emoldurava a desordem humana que fervilhava abaixo, um prenúncio da dualidade que parecia tecer a própria essência do lugar. Sentindo a dor latejante em suas costelas e a tontura persistente, Kael sabia que precisava encontrar ajuda médica o mais rápido possível. Talvez alguém nesta vila soubesse onde encontrar um curandeiro ou uma enfermaria, pensou, enquanto observava o movimento caótico da rua.

Com cautela, aproximou-se de um homem corpulento, com um avental que já fora branco um dia, e cuidava de uma barraca improvisada de frutas e verduras.

 — Com licença, senhor... — Kael começou, a voz ainda áspera e hesitante. — Poderia me informar se há algum... curandeiro ou médico por perto? Estou me sentindo mal. 

O homem, sem sequer erguer os olhos das maçãs lustrosas que polia com um pano encardido, franziu a testa... 

_ Suma daqui, sarnento! Sua sombra espanta meus fregueses! Xô! 

A rejeição, fria e imediata, apertou o peito de Kael com uma pontada de humilhação. Ele se afastou da banca, a sensação de invisibilidade e desesperança o envolvendo como um manto pesado. Talvez outra pessoa seja mais prestativa, pensou, enquanto tentava abordar outros transeuntes... 

Mas era como se ele não existisse para eles; desviavam o olhar, apressavam o passo, sua presença um mero estorvo a ser ignorado. E havia aquela nuance perturbadora em seus olhares fugazes: não era medo que via, mas um desprezo gélido, uma indiferença cortante. Ninguém parece disposto a ajudar um estranho maltrapilho, concluiu, a frustração crescendo como uma bile amarga em sua garganta.

Kael, exausto e abatido pela rejeição constante, caminhou sem rumo pelas ruas labirínticas de Monvia, sentindo-se cada vez mais confuso e isolado. Seu estado deplorável o tornava quase transparente aos olhos dos outros, como se ele fosse um fantasma assombrando um lugar que não lhe pertencia, ou um mendigo tão comum que se tornava parte da paisagem suja. Sujo, ensanguentado, um andarilho sem passado aparente, ele era apenas mais um marginalizado em um vilarejo que parecia não ter lugar para ele, um grão de poeira em meio ao caos. 

Em uma nova tentativa desesperada por ajuda, Kael aproximou-se de uma mulher vestida com roupas coloridas e vibrantes, que carregava uma cesta de compras transbordando de mantimentos frescos. O perfume doce e floral que emanava da mulher se misturava ao cheiro apetitoso de comida e ao odor de suor que emanava de seu corpo, criando uma aura olfativa intensa. 

— Com licença, senhora... poderia... — Kael começou, a voz rouca e hesitante, a esperança vacilando em seu peito. — Me ajudar? 

A mulher, sem sequer digná-lo com um olhar, desviou o rosto com uma expressão de repulsa óbvia, como se ele fosse um inseto nojento rastejando em seu caminho. Ela apertou o passo, afastando-se dele sem proferir uma única palavra, o silêncio de sua rejeição mais cortante que qualquer insulto.

Tão perdido em seus pensamentos sombrios e na crescente sensação de invisibilidade, Kael mal percebeu a carruagem que avançava rapidamente pela rua movimentada, suas rodas de madeira rangendo e levantando uma nuvem de poeira avermelhada. O cocheiro, com um chicote na mão, gritou um aviso impaciente: 

— Sai da frente!

Mas era tarde demais. A carruagem desgovernada atingiu Kael com força inesperada, jogando-o ao chão como um boneco de pano sem vida, quase no mesmo ponto onde Zene o havia deixado. O impacto violento o fez bater a cabeça com força na superfície irregular da rua, e sua consciência se apagou abruptamente. A pancada foi forte o suficiente para apagar suas lembranças, lançando sua mente em um vazio escuro e silencioso. A estranha sensação de ser tratado com desprezo e não medo foi a última fagulha de consciência antes da escuridão tomar conta.

— Ei, ei, garoto... você está bem? — Uma voz feminina, ansiosa e impaciente, quebrou o silêncio que se seguiu ao impacto. 

A mulher se agachou ao lado de Kael e o sacudiu com força, seus dedos finos agarrando seu ombro, mas ele não respondeu, permanecendo inerte. Ela o virou de barriga para cima e afastou seus cabelos negros e emaranhados de seu rosto pálido com uma delicadeza surpreendente. 

— Puxa, você é bonitão, hein? — Ela comentou, com um tom de voz malicioso e um brilho curioso nos olhos verdes. 

— Hmm, mas o que temos aqui? Um colar velho… Será que vale alguma coisa? — Ela murmurou, pegando o colar surrado que Kael usava e apalpando seus bolsos vazios com dedos rápidos e curiosos.

— Não encosta! — Kael gritou, a voz rouca e carregada de dor, agarrando a mão de Ginger que ousara tocar seu colar. 

A garota puxou sua mão com força, e Kael, com a visão ainda embaçada e a cabeça latejando, viu apenas um vislumbre dos lindos cabelos ondulados ruivos, como um pôr do sol chamejante, antes que a escuridão o engolisse novamente. A última coisa que sua mente processou antes do apagão total foi a sensação inédita de ser tratado com indiferença, como se fosse invisível.

— Nossa, mas que mal educado! — Ginger exclamou, guardando o colar em uma bolsa marrom pequena e desgastada que carregava consigo sempre. 

— Eu só queria te ajudar... — A Ruiva se levantou e observou Kael desacordado com os braços cruzados, o rosto franzido em uma mistura de impaciência e uma ponta de preocupação relutante. 

— Ah, droga. Eu não tenho tempo pra isso! — Ela exclamou, mordendo o lábio inferior com força, seus olhos verdes, antes fixos em Kael, agora se movendo de um lado para o outro, como se ela estivesse travando uma batalha interna sobre o que fazer.

De repente, ela ouviu um murmúrio distante, um som crescente que a fez olhar por cima do ombro com cautela. Um grupo de homens se aproximava rapidamente, e seus olhos se arregalaram em aflição ao reconhecê-los. 

— Dane-se! Ele não é problema meu! — Ela murmurou, dando de ombros em uma tentativa de se convencer, afastando-se de Kael como se ele fosse uma bomba-relógio prestes a explodir.

Ginger subiu na carruagem, pronta para chicotear os cavalos e partir em disparada, mas hesitou. Seus olhos verdes voltaram para o garoto desacordado no chão, e ela respirou fundo, como se estivesse tomando uma decisão difícil que ia contra seu melhor julgamento. 

— Mas e se ele morrer? — Ela resmungou, a voz carregada de uma preocupação genuína que lutava contra seu cinismo habitual.

Com um suspiro de resignação, Ginger se abaixou e, com grande esforço, arrastou Kael para dentro da carruagem, seus braços finos tremendo visivelmente com o peso do corpo do rapaz. 

— Espero que valha a pena salvar sua vida, grandão — Ela murmurou, a voz carregada de ironia e um toque inesperado de carinho.

A Ruiva agarrou as rédeas com força, seus nós dos dedos brancos como marfim sob a luz do sol. Com um grito agudo que cortou o ar como um aço afiado, chicoteou os cavalos com raiva. A carruagem disparou pela rua estreita como um raio, suas rodas de madeira rangendo e sacudindo violentamente contra o chão irregular, quase derrapando nas pedras soltas. Os cavalos galopavam com ira, seus músculos tensos e crinas ao vento, levantando uma nuvem de poeira e pedras que voavam como projéteis.

A carruagem desgovernada atingiu Kael inesperadamente quase no mesmo ponto onde Zene o havia deixado a poucos minutos atrás. 

A poeira avermelhada da carruagem ainda pairava no ar quando Zene, com um saco de pães frescos e biscoitos aromáticos em mãos, retornou ao local onde havia deixado Kael. Seu sorriso desapareceu assim que seus olhos percorreram a rua vazia.

— Ué, cadê ele? — Zene murmurou para si mesmo, franzindo a testa em confusão. Ele olhou para os lados, esperando ver Kael espreitando alguma barraca ou admirando alguma curiosidade local. Mas não havia sinal do amigo. Uma pontada de preocupação começou a beliscar seu otimismo habitual.

Seus olhos então capturaram as marcas de pneus bruscas no chão e um borrão de tecido escuro, como se algo tivesse sido arrastado. Seus dedos apertaram o saco de pães, e um pressentimento frio percorreu sua espinha. A preocupação se intensificou, dando lugar a um pressentimento ruim.

— Kael! — Zene chamou, sua voz ecoando pela rua movimentada, atraindo alguns olhares curiosos e indiferentes. Nenhuma resposta.

Ele então notou um pequeno grupo de pessoas cochichando animadamente perto de onde Kael estava. Aproximou-se, o coração começando a acelerar.

— O que aconteceu aqui? — perguntou Zene, tentando manter a compostura.

Uma senhora gordinha, com um olhar arregalado e cheio de excitação, respondeu: 

— A Ruiva Maluca! Sempre causando problemas por essas bandas. Ela roubou uma carruagem e saiu em disparada... que nem um raio com os cavalos, atropelou um pobre rapaz ali mesmo! E ainda o arrastou para dentro! Que selvageria!

Zene sentiu o sangue gelar nas veias. Uma ruiva? Atropelou um rapaz? A ironia cortante das suas próprias palavras sobre atropelamentos o atingiu como um soco no estômago.

— Ruiva Maluca? — Zene repetiu instintivamente, uma ruga de confusão vincando sua testa. 

— Sim, é como todos a chamam em Monvia.

Respondeu a senhora gordinha.

_O rapaz... como ele era? — Zene perguntou, a voz agora tensa e hesitante.

— Ah, sujo, mal vestido... Cabelos escuros e desgrenhados. Parecia um mendigo. A Ruiva Macula nem ligou, só o jogou na carroça e sumiu! — respondeu outro homem, com um tom de desaprovação.

O alívio misturou-se à raiva e à incredulidade no peito de Zene. Era Kael. Ele havia sido atropelado, exatamente como ele havia brincado. Mas agora não havia nada de engraçado nisso.

— Para onde eles foram? — Zene insistiu, sua voz agora carregada de urgência.

Os moradores deram de ombros, voltando aos seus afazeres com a mesma indiferença com que haviam tratado Kael. Ninguém parecia se importar com o destino do "mendigo".

Zene cerrou os punhos, a frustração borbulhando. Ele precisava encontrar Kael, e rápido. A imagem do amigo ferido e à mercê de uma desconhecida o impelia a agir. A busca por "sonhos" e biscoitos foi instantaneamente esquecida. Agora, sua única prioridade era encontrar seu amigo, mesmo que isso significasse enfrentar a tal "Ruiva Maluca" de Monvia.