Capítulo 6 — As Entrelinhas do Silêncio
O mural agora era parte da cidade, como se sempre tivesse estado ali, entre os paralelepípedos da praça e as janelas abertas das casas. Mas a verdadeira transformação estava no ar. As pessoas sorriam mais, os cafés ficavam cheios até mais tarde, e até os sinos da igreja pareciam tocar com mais leveza.
Adrian e Elise andavam lado a lado, sem pressa, como se o tempo tivesse desaprendido a correr. Eles não precisavam dizer muito. O silêncio entre os dois já não era incômodo — era íntimo. Carregava lembranças, promessas, talvez até pequenos medos que ainda não tinham nome.
— Tem uma trilha atrás das colinas — Adrian comentou, apontando para além dos vinhedos. — Quando eu era pequeno, costumava subir lá pra pensar.
— E hoje? — ela perguntou, com um sorriso curioso.
— Hoje eu subo pra sentir.
Elise o olhou por um segundo mais longo que o normal. Ele estava diferente mesmo. E, de algum jeito, ela também.
A trilha era estreita e envolta por árvores retorcidas, como braços antigos tentando tocar o céu. O som de folhas secas sob os pés era a única trilha sonora. No topo da colina, Lorien parecia uma pintura em aquarela. Pequena, colorida, viva.
— É bonito aqui — ela sussurrou.
— Bonito é ter você aqui — ele respondeu, quase sem pensar.
Elise riu, baixinho. Mas então o sorriso murchou um pouco. Havia algo incomodando — algo que ela precisava dizer antes que criasse raízes demais dentro dela.
— Adrian… e se isso aqui for só uma pausa?
Ele a olhou. Não com medo, mas com aquele olhar paciente que aprendeu a cultivar.
— Uma pausa do quê?
— Da vida. Do caos. Da gente mesmo. E se essa paz que a gente sente for só... temporária?
Adrian sentou na pedra ao lado e fez sinal para que ela se juntasse.
— Pode até ser. Mas se for uma pausa, então que seja a mais bonita de todas. A que vale a pena lembrar.
Ela baixou os olhos, pensativa.
— Às vezes eu tenho medo de me acostumar com a calmaria. De esquecer que o mundo lá fora ainda exige decisões, renúncias... lutas.
— Então luta — ele disse, com a voz firme. — Mas luta por você. E se eu puder estar do seu lado, mesmo nos dias em que tudo desabar, já vai ter valido.
Elise encostou o ombro no dele, sem dizer nada. Só ali, respirando o vento.
Na volta, encontraram Lorien diferente. Havia movimentação na praça, sussurros atravessando os becos. Um carro estranho, preto e empoeirado, estava estacionado na frente da prefeitura. Não era comum turistas chegarem por ali sem avisar.
— Aquele carro… você conhece? — ela perguntou, estreitando os olhos.
— Nunca vi antes — Adrian respondeu, com a testa franzida.
Do carro, desceu uma mulher de cabelos presos e olhar analítico. Vestia-se com elegância contida, e carregava uma pasta fina de couro. Seus olhos vasculhavam a cidade como quem procurava algo — ou alguém.
Elise sentiu um frio na barriga. Não era exatamente medo. Era pressentimento.
— Acho que a nossa pausa... acabou — ela murmurou.
Adrian olhou para ela, depois para a estranha figura que agora se dirigia à prefeitura com passos decididos.
E pela primeira vez desde que Adrian chegou a Lorien, a calma pareceu frágil.
A mulher não falou com ninguém. Apenas entrou na prefeitura com a segurança de quem já sabia exatamente onde estava pisando. Elise e Adrian trocaram um olhar breve, e bastou isso para que os dois entendessem: alguma coisa estava prestes a mudar.
Eles se afastaram da praça, caminhando até a rua onde ficava a antiga biblioteca — um dos lugares mais silenciosos da cidade, onde podiam conversar sem serem ouvidos.
— Você acha que tem a ver com a gente? — Elise perguntou, sentando num dos bancos sob a varanda coberta de hera.
Adrian olhou para a rua vazia à frente da biblioteca, como se esperasse encontrar respostas no horizonte.
— Se for sobre mim... talvez seja coisa do passado voltando — disse ele,com a voz mais baixa. — Meu pai morreu há dois anos. Mas o passado dele… esse ainda me segue.
Elise ergueu os olhos para ele, surpresa.
— Você nunca falou sobre isso.
— É porque parte de mim ainda não sabe como lidar. Ele era… complicado. Tinha poder, dinheiro e zero limites. Fez muita coisa errada. E mesmo depois de morrer, deixou rastros. Gente que o odiava. Gente que ainda acha que eu sou a continuação dele.
Ela estendeu a mão e tocou a dele, firme.
— Mas você não é ele.
Adrian respirou fundo. — Eu sei disso agora. Mas nem todo mundo sabe. Tem gente que ainda me vê como a sombra que ele deixou pra trás.
Mais tarde, naquela noite, enquanto a cidade dormia e os postes lançavam sombras compridas sobre a calçada, uma figura observava a casa de Adrian do outro lado da rua. Ela estava de capuz, parada, imóvel. Em sua mão, um pequeno bilhete com as palavras:
"Ela ainda escreve. E ele ainda pinta.
Perfeitos demais para um lugar como esse."
No topo do bilhete, em letras delicadas, estava o nome do pai de Adrian.
Mas ele estava morto.
Ou não?