O santuário silenciou.
Nem mesmo o pulsar das runas se fazia ouvir. A quietude que se seguiu à revelação do Físico Primordial de Dário era tão densa que parecia conter o fôlego do próprio mundo.
Velkara permaneceu imóvel, olhos semicerrados, como se esperasse que aquela visão sumisse a qualquer instante. Caelenna, por sua vez, ajoelhou-se lentamente. Sua armadura dourada tilintou com leveza, mas o gesto foi deliberado: reverência.
— Nunca presenciei tal harmonia... sussurrou.
— Isso vai além de qualquer classificação. Nem mesmo os registros sagrados conseguem descrever tamanha perfeição.
Dário continuava deitado, olhos abertos, observando os fragmentos rúnicos que ainda dançavam sobre seu corpo. Eram traços vivos, entidades simbólicas feitas de pura essência. Luz e trevas não lutavam ali. Giravam, entrelaçadas, como amantes ancestrais reencontrando-se no tempo.
— Então é isso que eu sou… murmurou.
— Não um erro, mas um início.
Velkara estreitou os olhos, recuando um passo para as sombras.
— Precisamos levar isso a Lorde Theon. Agora.
— Não. respondeu Dário, calmo, porém firme. — Ainda não é hora de revelar minha condição ao mundo. Diga ao meu pai para manter silêncio. Assim, continuaremos a ser subestimados.
Velkara hesitou, mas acenou levemente com a cabeça. Ela sabia, melhor do que ninguém, que para capturar um tigre, é preciso armar uma armadilha.
— Está certo em ser prudente.
Caelenna ergueu-se, recobrando a compostura militar.
— Deixe que nosso inimigo oculto pense que ainda não notamos suas táticas. Finja-se de fraco quando for forte, e de forte quando for fraco disse, fria e firme.
Velkara concordou com um breve aceno e voltou às sombras. Ela precisava notificar o lorde e explicar as intenções de seu jovem mestre.
Mas antes que pudesse partir, ouviu a voz de Dário:
— Sra. Velkara, poderia fazer algo por mim?
Ela voltou sua atenção para o jovem.
— Continue, jovem mestre.
Ela sabia que esse Dário era diferente do antigo. Ou, pelo menos, estava tentando mudar. Antes, serví-lo lhe causava amargura. Mas agora, algo havia mudado. A aura ao redor de Dário era distinta: mais educada, disciplinada, até mesmo indiferente. Um verdadeiro nobre.
Nesse momento, Dário ativou os Olhos do Vilão Supremo.
⟨Perfil do Alvo⟩
» Nome: Velkara Nocturne
» Afiliação: Vice-líder do Esquadrão de Inteligência da Casa Vauren
» Reino: Grande Mestre Marcial – 10° Nível (Perfeição)
» Corpo Especial: Corpo Sombrio da Névoa Silenciosa (Despertado)
» Sorte: 1600
» Habilidades: › Punhal Solar Vauren › Ritmo de Respiração Escarlate › Forma da Lança Silenciosa › Passos do Vazio › Adaptação das Sombras › Silêncio Mortal › Anulação Sensorial › Ocultação Instintiva
Dário entendeu por que seu pai confiava tanto nela para investigar o envenenamento. Uma mestra em ocultação era ideal para colher informações.
Ele então retomou a palavra:
— Ouvi de meu pai que você faz parte do Esquadrão de Inteligência. Poderia investigar algo para mim?
Sem esperar resposta, continuou:
— Na verdade, são duas... ou três coisas. Primeiro, quero informações sobre todas as casas nobres, especialmente as cinco maiores do Império. Mesmo que sejam dados superficiais, já será útil.
— Segundo, desejo um levantamento completo dos membros da Casa Vauren, das famílias afiliadas e de nossos negócios.
— Terceiro, investigue a família Lutharen. Há dois indivíduos que podem estar ligados ao meu envenenamento. O primeiro é o chefe da família, Renard Lutharen, e o outro é...
....
Em outra região do continente Elyndra
Em um altar cravado entre montanhas douradas e templos esquecidos, banhado por uma torrente incessante de Energia Áurea e Sagrada, o mundo pareceu prender a respiração. A vasta estátua no centro do santuário representando um dos Filhos do Sol Primordial estremeceu.
O som foi sutil, mas reverberou pelas correntes místicas do continente inteiro.
De olhos fechados, sentado em posição de meditação sobre uma flor de lótus esculpida em jade solar, um ancião abriu os olhos. Sua íris era como cristal aquecido à luz do amanhecer dourado, infinita. O manto que cobria seu corpo tremulava mesmo sem vento, como se a própria realidade o reverenciasse.
Ele se ergueu com serenidade, caminhando até a estátua. Uma rachadura havia se formado no peito da figura sagrada.
O ancião tocou-a com a ponta dos dedos e sussurrou, como quem escutasse ecos de eras esquecidas:
— A harmonia foi quebrada... O Equilíbrio renasceu fora do tempo.
Sua voz ecoou, grave e reverente.
— Uma nova Era se aproxima... e com ela, vem a escolha.
...…
No continente Nythgard
Num abismo engolido por trevas vivas, onde nem mesmo a luz das estrelas ousava alcançar, jazia um trono entalhado em ossos ancestrais e ferro amaldiçoado. Rios de energia caótica serpenteavam pelas paredes como veias pulsantes.
A criatura que ali se sentava era o pesadelo do mundo, olhos escarlates e sorriso dilacerado, uma presença que curvava o ar e distorcia o espaço. Seus dedos, garras cobertas por maldição viva, tamborilavam no apoio do trono enquanto uma aura pútrida corroía lentamente o chão.
De súbito, seus olhos se arregalaram. Algo o havia despertado.
Ele se levantou em um salto grotesco, avançando até um altar encharcado de essência demoníaca. Lá, uma profecia antiga escrita em pele humana e tinta negra como breu ardia em brasas azuis.
Segurando o pergaminho, ele riu. Primeiro um sussurro, depois um uivo descontrolado, até transformar-se em gargalhadas ensandecidas que ecoaram por quilômetros.
— Uma anomalia... uma centelha fora do ciclo... murmurou com os olhos flamejando. — O dia prometido finalmente se aproxima... e com ele, o fim do falso equilíbrio. Hehehe... HAHAHAHAHA!
Seu riso despedaçava a razão o presságio de um caos que espreitava as margens da criação.
....
Após testar seu físico, Dário deixou o santuário. Não foi ao encontro de seu pai, Velkara se encarregaria disso. Ele tinha outras prioridades: estudar e se preparar para o amanhã.
Seguiu então para a biblioteca da Casa Vauren. Hoje, queria se aprofundar em técnicas, compreender a moeda imperial de Lysandria e estudar os diferentes tipos de corpos físicos especiais.
Horas se passaram.
Já era noite quando Minna apareceu para notificá-lo: hoje seria seu primeiro jantar em família. Lorde Theon havia retornado, e Dário teria que interagir e quem sabe criar laços mais profundos com ele.
Pelas memórias do antigo Dário, a relação entre os dois era difícil. Mas a culpa recaía inteiramente sobre o próprio Dário: mimado demais, arrogante e imaturo. Theon, por outro lado, sempre fora um homem austero e ocupado, constantemente envolvido na proteção das fronteiras e na gestão da Casa Vauren.
Antes do jantar, Dário foi banhar-se. Ainda estava coberto pela poeira sagrada e pelos vestígios de seu despertar. Um novo corpo merecia uma nova apresentação.
...
Momentos depois, ele já estava à mesa. O salão estava impecável, iluminado por candelabros de cristal solar. Lorde Theon comia em silêncio, imponente. Minna, Caelenna e os criados permaneciam de pé, como se estivessem à espera de permissão divina.
Dário observou aquilo com um leve incômodo. Levantou o olhar e falou com firmeza:
— Sentem-se.
Foi uma ordem simples e direta, mas carregada de autoridade.
Todos sentiram um calafrio. Da última vez em que Dário dissera isso, haviam pensado se tratar de uma brincadeira. Mas agora, diante de Theon, com aquela nova postura, quem ousaria contrariá-lo?
Todos olharam para o lorde, aguardando sua reação. Theon apenas continuou comendo, inexpressivo. Caelenna já o havia alertado sobre a mudança do filho.
Dário, então, reforçou com mais firmeza:
— Já disse antes: é um desperdício de comida. Venham e sentem-se.
Caelenna foi a primeira a se mover, seguida por Minna. Uma sentou-se ao lado de Dário, a outra ao lado de Theon. Os demais criados, embora hesitantes e rígidos, seguiram o exemplo e ocuparam seus lugares.
O silêncio reinou novamente, até que Theon falou:
— Ouvi de Velkara que você pediu para ela investigar alguns assuntos.
— Sim, pai. Pedi que fizesse isso respondeu Dário, direto.
Theon não insistiu no assunto. Já sabia do que se tratava. Após alguns segundos, continuou:
— Dário, você esteve na biblioteca. Está em busca de algum conhecimento específico?
Enquanto cortava um pedaço de carne, Dário respondeu, com calma:
— Busco recuperar o tempo perdido. Todo conhecimento é necessário. Vivi de forma desleixada e imprudente por tempo demais.
Mastigou mais um pedaço e prosseguiu:
— Mas agora que posso manifestar e cultivar a Energia Áurea, está na hora de mudar. Não pretendo ser um babaca para sempre. E... mais uma vez, desculpe por todo estresse que causei.
A mesa ficou em silêncio. Os criados estavam boquiabertos com a maturidade do jovem mestre. Alguns, porém, sabiam ou suspeitavam da verdadeira razão por trás da mudança.
Theon olhou para o filho e assentiu levemente, voltando a comer. Apesar do gesto contido, Dário notou algo em seus olhos: tristeza, talvez arrependimento. Como pai, Theon carregava o peso de não ter conseguido curar os meridianos do filho, nem proteger sua esposa. Talvez temesse que Dário tivesse herdado o mesmo destino trágico.
Antes que Dário pudesse falar mais, Theon interrompeu seus pensamentos:
— Amanhã, vá ao campo de treinamento. Peça a Garron que lhe ensine o método de preparação para o Despertar. Em poucos dias, você entrará na Piscina do Despertar. Treine duro até lá.
Dário se surpreendeu, mas respondeu com seriedade:
— Sim, pai. Não o decepcionarei.
Ambos compartilhavam um objetivo comum: quanto antes Dário despertasse totalmente seu físico especial, mais cedo poderia dominar sua energia. A base precisava ser solidificada. E o tempo, agora, era um luxo que não podiam desperdiçar.
A conversa se alongou um pouco mais. Talvez fosse a primeira vez que pai e filho trocavam tantas palavras com sinceridade. Theon, tocado pela transformação do filho, até falou mais do que o habitual. Desde a morte da esposa, mergulhara no trabalho e em uma busca obsessiva por uma cura para seu filho.
....
Mais tarde, já de volta ao quarto, Dário sentou-se à escrivaninha. Os dedos percorreram o papel, rabiscando palavras desconexas, ideias para o amanhã, anotações sobre técnicas e suspeitas... mas sua mente estava distante.
Ergueu-se.
Aproximou-se da janela. Lá fora, a noite estendia seu véu sobre a vasta e deslumbrante paisagem, e a luz da lua parecia mais pálida que o habitual, como se sentisse o peso do que estava por vir. O reflexo prateado desenhava sombras em seu rosto, revelando um olhar carregado de silêncio e lembranças que não lhe pertenciam totalmente nem do passado, nem do futuro.
Ele inspirou fundo, olhos presos no céu.
— A vida é mesmo uma peça cruel... murmurou, com um sorriso triste nos lábios.
— Quando finalmente aprendemos o papel... o palco já está em chamas...
A noite terminou em melancolia. O novo dia surgiria como mais uma página virada no grande livro do destino.
.....