Capítulo 26 - Herança de Luz e Trevas.

O campo de treino estava silencioso, exceto pelo som do vento cortando entre as árvores e o canto ocasional de pássaros distantes. Um círculo fora desenhado no chão, delimitando a arena improvisada, agora cercada por pedras e tochas apagadas. Era o início de um novo dia, mas ali, entre sombras e luz, nasceria algo que transcenderia o ordinário.

Dário respirou fundo. Seus olhos, tingidos de âmbar e sombra, estavam fixos em Caelenna. A guerreira permanecia imóvel como uma estátua forjada pela guerra. Seus cabelos prateados dançavam ao vento, o semblante sereno, mas não relaxado. Não havia arrogância nela, apenas a calma de alguém que sobreviveu ao pior do mundo e não tinha mais medo da morte.

Dário segurava uma espada simples, propositalmente escolhida. Não havia runas, nem forja especial. Ele queria testar não a arma, mas a si mesmo. Confiar na lâmina comum como confiava no próprio sangue.

— Quando estiver pronto, ataque — disse Caelenna, com voz firme e clara.

Dário avançou.

A primeira sequência de golpes foi rápida, precisa e agressiva. Estocadas, cortes horizontais, variações diagonais: ele mirava pontos vitais, como alguém que estudara anatomia para matar. Caelenna desviava com movimentos mínimos quase preguiçosos. Ela era como um rio desviando pedras, dançando no limite da lâmina sem esforço.

Dário girou sobre o calcanhar, tentando surpreendê-la com um corte ascendente vindo por baixo. Ela bloqueou com a canela, sem hesitar, e a reverberação do impacto percorreu o braço de Dário. Ele recuou, sorrindo.

"Ela está me analisando... como uma predadora paciente."

Respirou fundo, e liberou a Energia Áurea.

Um brilho tênue envolveu sua lâmina. O golpe seguinte cortou o ar com velocidade relampejante. Caelenna, por fim, moveu-se de verdade. Com um movimento fluido, aparou o ataque com o antebraço envolto em energia. O choque gerou uma onda de pressão que espalhou folhas e poeira em todas as direções.

O corpo de Dário reagiu instintivamente. Seu físico especial vibrava com cada impacto, absorvendo e canalizando os fluxos com eficiência sobrenatural. Os meridianos restaurados ardiam com poder, expandindo-se como rios recém-libertos de suas margens.

Ele avançou com fúria. A cada golpe, mais energia era canalizada. Seus pés cavavam o solo, o tronco girava com força centrífuga, seus músculos ressoavam como cordas tensionadas. Caelenna passou a recuar. O olhar atento agora trazia faíscas de respeito. Ela bloqueava, desviava e contra-atacava, mas Dário resistia.

Foi então que ele decidiu ir além.

— Passo do Eclipse — sussurrou.

Num piscar de olhos, ele desapareceu. Reapareceu ao lado de Caelenna como uma sombra viva. O chão rachou sob seus pés. A espada veio de cima como o machado de um carrasco. Caelenna ergueu o antebraço a tempo, mas o impacto a fez deslizar vários metros.

— Essa velocidade... ela murmurou, pela primeira vez, surpresa.

Dário não parou. A Energia Áurea ao seu redor oscilava entre ouro e trevas, como se a luz estivesse sendo tragada por sua presença. Seus olhos brilhavam intensamente.

— Equilíbrio Absoluto.

O mundo desacelerou.

Ele sentiu o tempo tornar-se espesso, como névoa. Sua mente calculava com clareza absoluta, seus pés tocavam o chão com precisão milimétrica. Era como se o universo estivesse em sincronia com ele. Nenhuma emoção o desestabilizava. Nenhuma energia o invadia sem ser filtrada. Era puro domínio.

Caelenna atacou com mais intensidade, mas ele já via os golpes antes que acontecessem. Ele desviava, aparava, contra-atacava com golpes suaves, mas letais. Eles pareciam dançar, mas apenas um ditava o ritmo.

— Você não é um mero guerreiro... disse ela, os olhos brilhando com admiração genuína.

Dário não respondeu. Em vez disso, ergueu a espada ao céu e sussurrou:

— Crepúsculo Eterno.

O mundo escureceu.

O céu assumiu tons de dourado profundo e violeta opaco. Um eclipse pairava acima deles, derramando luz líquida pelas bordas. No solo, sombras espessas e vivas se espalhavam como uma névoa consciente.

A aura ao redor de Dário oscilava entre luz e trevas. Seu corpo flutuou levemente antes de descer com um impacto devastador, rachando o solo em todas as direções. Os soldados e aprendizes que assistiam à distância caíram de joelhos, suprimidos pela pressão opressora daquele domínio.

Caelenna finalmente sorriu como uma guerreira que encontra um oponente digno. Sua espada sagrada brilhou com intensidade solar, e ela avançou.

O choque foi cataclísmatico

Luz e trevas entrelaçaram-se em uma dança divina. Cada golpe ecoava como trovão. O chão se partia. O ar queimava. A arena, antes simples e silenciosa, tornou-se palco de um embate que parecia ultrapassar os limites do plano mortal.

Dário não era mais o garoto ferido que despertara com o corpo incompleto. Ele era agora um receptáculo de forças primordiais, um filho da luz e da sombra, moldado pelo legado de Seraphina.

Por fim, as energias cessaram.

Dário estava ajoelhado, suando, respirando com dificuldade. Caelenna ainda estava em pé, mas com um corte no ombro e os olhos arregalados.

— Você foi tocado pelo céu... ela disse, quase em reverência. — Esse corpo... esse poder... não são coisas que se ensinam.

Dário riu, cuspindo sangue, mas com os olhos vivos.

— E mesmo assim... não consegui te vencer.

Caelenna se aproximou e estendeu a mão.

— Ainda não. Mas está mais perto do que qualquer um que já enfrentei. Isso me assusta... e me empolga.

Ele aceitou a ajuda e se levantou.

Foi nesse momento que flashes de memória invadiram sua mente, os três dias de reclusão após seu despertar.

Três dias em silêncio. Três dias de meditação e adaptação.

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No primeiro dia, seu corpo oscilava entre luz intensa e sombras densas. As energias lutavam para coexistir, mas o núcleo de Dário, fortalecido pelo sacrifício da mãe e pela herança divina, começou a domá-las.

Ele quase desmaiou ao ver a descrição da primeira habilidade:

"Crepúsculo Eterno" é um domínio que alterava o equilíbrio do mundo ao redor, beneficiando aliados, enfraquecendo inimigos e amplificando suas próprias técnicas. Era mais do que uma técnica, era um território.

No segundo dia, aprendera sobre os "Passos do Eclipse". Teleporte absoluto entre luz e sombra, permitindo ataques surpresa, fugas impossíveis ou reposicionamento instantâneo. A técnica era perfeita para um estrategista e assassino.

No terceiro dia, Leu a discrição da habilidade "Equilíbrio Absoluto" por instinto, acalmando uma crise interna que ameaçava rasgar seus meridianos. Descobriu que a habilidade não apenas estabilizava o corpo, mas cancelava corrupções, maldições e perturbações espirituais.

E mesmo assim... ele mal conseguia usar 10% do verdadeiro potencial dessas habilidades. Elas eram como portões trancados, cujas chaves ele ainda não possuía. Por isso decidiu procurar Caelenna.

Ela era dura, experiente e, acima de tudo, sabia como forjar guerreiros.

Dário precisava de disciplina, de combate real, de pressão constante. Queria explorar os limites do seu novo corpo, forçar as técnicas a se manifestarem. Não podia depender apenas do poder bruto. Precisava de domínio e Caelenna era o fogo certo para temperá-lo.

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De volta ao presente, Dário olhou para o céu. O eclipse havia desaparecido, e a luz da manhã retornava, suave, gentil.

Ele sabia que aquilo era só o começo.

O corpo despertará. As técnicas haviam surgido. Mas o verdadeiro poder... ainda estava adormecido.

E ele estava prestes a acordá-lo.

.....

Após o fim do combate, os soldados que antes observavam à distância começaram a se aproximar, hesitantes. Alguns mantinham as mãos no peito, ainda abalados pela pressão do domínio. Outros simplesmente olhavam para Dário com uma mistura de assombro e respeito.

Garron foi o primeiro a quebrar o silêncio. Caminhou até ele com passos pesados, cruzando os braços enquanto o analisava de cima a baixo, a barba desgrenhada ainda suada da tensão.

— Que tipo de monstrinho você virou durante esses dias, hein?

— O tipo que aprendeu a não morrer cedo demais. Respondeu Dário com um meio sorriso, ainda recuperando o fôlego.

— Isso não foi treino... foi massacre. Garron bufou, com um risinho satisfeito. — Se fosse em combate real, você teria derrubado metade da guarda do norte.

— Mas não teria vencido Caelenna. disse Dário, olhando para a mestre de armas, que limpava o sangue do ombro com naturalidade.

— Ainda não. corrigiu Caelenna com um leve aceno. — Mas está perigosamente perto. Esse novo corpo... Foi forjado para combate.

— É um presente respondeu Dário, com um brilho distante nos olhos. — Um legado... e uma responsabilidade.

Nesse instante, Minna correu até ele. Seu rosto exibia preocupação, mas também alívio. Quando se aproximou, hesitou por um instante e depois o abraçou.

— Achei que você fosse... a voz dela falhou.

— Está tudo bem, Minna. Estou inteiro. respondeu ele, sentindo um leve tremor no toque dela. Não um de medo, mas de emoção.

Minna o soltou com o rosto corado e murmurou algo sobre “postura” diante dos soldados. Garron pigarreou alto.

— Hahaha! Já está derretendo corações também, monstrinho?

— Está com ciúmes, velho? Retrucou Dário com um sorriso provocativo.

— Ciúmes do quê? Do trabalho que vou ter pra manter sua cabeça no lugar se continuar crescendo assim? disse Garron, mas seus olhos mostravam orgulho genuíno.

Apesar da intensidade do treino, os efeitos colaterais foram mais curiosos do que danosos. À noite, ao se deitar, sentiu leves pulsações em seus meridianos, como ecos suaves de um tambor distante. Seus sentidos pareciam mais aguçados, e a conexão com a Energia Áurea mais fluida. O único desconforto real era uma leve ardência no peito não de dor, mas de expansão.

Era como se seu corpo ainda estivesse se moldando, se ajustando ao novo equilíbrio. Mas não havia instabilidade. Tudo pulsava em harmonia.

Na manhã seguinte, o clima no pátio era diferente. Alguns jovens guerreiros vinham cumprimentá-lo discretamente. Não por bajulação, mas por respeito genuíno. Até os soldados veteranos lhe dirigiam olhares menos hostis.

Ao lado de Caelenna, ele recebia instruções avançadas sobre controle de campo de batalha e domínio de presença, técnicas essenciais para comandantes e duelistas de alto nível. Sua mente absorvia tudo com avidez.

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Na tarde daquele mesmo dia, retirou-se para os jardins internos, onde encontrou um pequeno espelho d’água sob uma cerejeira antiga. Ali, finalmente, chamou pelo sistema:

— Preciso confirmar algo. Sobre o Filho do Céu... disse em voz baixa.

O painel translúcido surgiu, como uma cortina de luz flutuando.

> [Ding: Para verificar se um indivíduo é o Filho do Céu, basta uma interação direta com o mesmo. O sistema emitirá um alerta automático caso a presença esteja dentro do raio de detecção e tenha vínculo com a profecia principal.]

— Então Caelus... murmurou ele. — Se eu conseguir interagir com ele por tempo suficiente, saberei se é ele?

[Ding: Confirmado. Interações prolongadas ou intensas conversas, combates, alianças já são suficientes para ativar a leitura.]

— Perfeito... Já estava planejando minha aproximação com ele, de qualquer forma. Os olhos de Dário brilharam com intenção. — Se ele for mesmo o Filho do Céu... saberei como conduzir o jogo. E se não for... terei confirmado com clareza.

O sistema permaneceu em silêncio, aguardando novas ordens.

Dário se levantou, limpando a poeira das vestes.

— E há algo mais que preciso fazer em breve... disse em voz baixa, olhando para o céu. — Conversar com minha noiva.

Seu semblante ficou mais sério. Havia algo na lembrança dela que o incomodava não por desconfiança, mas por importância. Ela fazia parte da trama, estivesse ciente disso ou não. E ele não podia deixá-la à margem de seus planos por muito mais tempo.

— Mas antes... Caelus murmurou. — Uma peça importante, se for quem penso que é. E se for... eu o moldarei ou o destruirei. Sem piedade.

O vento soprou entre as folhas, carregando consigo promessas e perigos futuros. O eclipse havia passado, mas a sombra do vilão supremo se projetava cada vez mais longe.

E o jogo apenas começava.

...