Capítulo 32 - Entre Honra e Heresia.

A luz dourada do fim da tarde atravessava as janelas de vitral, tingindo o salão principal da Casa Lutharen com reflexos quentes e melancólicos. Lorde Renard Lutharen permanecia de pé junto à sacada, o olhar fixo nos pátios distantes, onde os últimos raios do sol dançavam sobre os telhados de pedra. Sua expressão era austera, mas havia uma inquietude silenciosa na rigidez de seus ombros.

Atrás dele, o Capitão Maeron aguardava em silêncio, com as mãos cruzadas nas costas.

— Então... conte-me sobre o confronto. A voz de Renard era grave e pausada, mas havia tensão velada em cada sílaba. — O que viu, Maeron?

O cavaleiro hesitou por um instante antes de responder:

— Foi uma luta rápida, milorde. Mas não trivial. Dário não apenas sobreviveu ao confronto... como venceu com clareza. Sua técnica era precisa, refinada até demais. Caelus não teve tempo de reagir.

Renard franziu o cenho, seus olhos dourados apertando em descrença.

— Isso é impossível. Dário nasceu com os meridianos danificados. Sempre foi um fardo silencioso, um erro de sangue.

— Não mais, senhor. — Maeron respondeu com seriedade. — Os meridianos dele foram restaurados, tenho certeza do que vi. Mesmo que ele os oculte bem, pude perceber. E não é só isso... ele está cultivando novamente. Sua Energia Áurea era intensa e fluía com naturalidade. Algo profundo mudou naquele garoto.

Renard apertou com força a beirada da sacada. Seus olhos cintilaram com uma mistura de suspeita, admiração e preocupação.

— Então ele realmente renasceu das cinzas...

A porta rangeu suavemente ao ser aberta, e Caelus entrou. Seus olhos ainda estavam vermelhos de raiva contida, mas o semblante estava mais controlado. Curvou-se brevemente diante do pai.

— Lorde Lutharen. Capitão Maeron.

— Veio se justificar? — indagou o lorde, sem se virar.

— Vim falar sobre o futuro. — Caelus respondeu, firme. — Aquilo foi um tropeço. Mas agora compreendo melhor a ameaça. Dário não pode ser subestimado. Se nos desafia... devemos retribuir à altura. Tenho um plano.

O "nós", no entanto, não parecia se referir à Casa Lutharen, mas a algo mais profundo... mais sombrio: o Altar da Luz Eterna.

Renard apenas murmurou:

— Que plano?

Caelus se aproximou um passo.

— O Festival Lunar está próximo. Talvez Dário tenha se aproximado de Íris apenas como fachada... e sua verdadeira intenção seja a Região Sagrada de Vel’Ryn. Quero garantir que ele fique sob vigilância constante ou desapareça do tabuleiro antes que cause ainda mais estragos. Mas para isso, preciso de liberdade de ação.

Renard observou o filho em silêncio por longos segundos, como se buscasse nas feições dele alguma verdade oculta. Depois assentiu, vagamente.

— Faça como quiser. Mas escute bem: se falhar outra vez... não será apenas o seu orgulho que estará em jogo.

Caelus curvou-se mais uma vez — não em reverência, mas como quem cumpre um protocolo — e saiu, sem olhar para trás. Assim que a porta se fechou, Renard voltou-se para Maeron.

— Siga-o discretamente nas próximas semanas. Murmurou. — Dário já não é um peão comum. Mas Caelus... não confio no que está por trás dele. Se soubermos como se mover por essa turbulência, talvez não sejamos engolidos por ela. Descubra as intenções de ambos. Me mantenha informado. Quero estar preparado para o pior cenário.

— Sim, senhor. Devo conter a notícia sobre os meridianos de Dário?

Renard ponderou por um momento, os olhos voltando ao céu em chamas além da sacada.

— Não. Se ele nos mostrou isso, é porque está confiante. Talvez queira que saibamos... como um aviso.

— Entendido. — Maeron respondeu, fazendo uma reverência antes de sair.

 

Mais tarde, nos alojamentos dos convidados da Casa Lutharen...

Dário limpava com cuidado o sangue seco do rosto de Cinza, usando um pano úmido. A menina ainda tremia, encolhida, mas seus olhos, grandes e vigilantes, oscilavam entre desconfiança e algo inesperado... curiosidade.

Minna preparava uma infusão de ervas em água morna, enquanto Caelenna organizava toalhas limpas sobre a mesa.

— Quero que deem um bom banho nela. Tirem o cheiro da rua, limpem os ferimentos. E tragam roupas decentes. — disse Dário, com voz firme, mas serena.

Minna assentiu com um pequeno sorriso.

— Pode deixar conosco.

Caelenna arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços.

— E o que pretende fazer com ela?

— Ainda estou decidindo. — respondeu Dário, olhando de relance para a garota. — Mas tenho algo em mente. Ah, e ela não será mais chamada de “Cinza”.

Ele se ajoelhou diante da menina e tocou levemente sua testa com o indicador, como se imprimisse nela um selo invisível.

— A partir de hoje, seu nome será Nyra.

A garota piscou, confusa.

— Nyra…?

— Isso mesmo. Um novo nome para uma nova chance.

Uma batida suave soou na porta.

— Entre. — disse Dário, sem se levantar.

Era Íris.

Usava uma túnica bordada com flores prateadas, e seus longos cabelos estavam soltos, levemente ondulados. Observou a cena com curiosidade, mas nada disse.

— Dário… podemos conversar? — perguntou, com um tom mais hesitante do que o habitual.

Dário se levantou, ajeitando a manga do sobretudo escuro.

— Claro. Vamos caminhar. Preciso de um pouco de ar.

Íris lançou um último olhar para Nyra antes de seguir Dário. Caminharam pelos corredores silenciosos até os jardins externos, onde a noite começava a pintar o céu com tons de violeta e azul profundo. As tochas lançavam sombras dançantes entre as folhas douradas das árvores.

Por um tempo, caminharam em silêncio.

Íris se recordou do momento antes de vir.

Estava em seus aposentos, lendo um antigo manual sobre linhagens e bênçãos, quando sua criada pessoal, Tanna, irrompeu no quarto, ofegante.

— Senhorita... você não vai acreditar!

Íris ergueu o olhar, surpresa com o alvoroço.

— Calma, Tanna. O que aconteceu?

Após recuperar o fôlego, a serva respondeu:

— O jovem mestre Dário... ele duelou com o senhor Caelus. E... venceu.

O mundo pareceu girar por um instante.

— Tem certeza de que Caelus não pegou leve?

— Ninguém diria isso, jovem senhorita. O duelo foi sério. E foi Dário quem começou. Mesmo que perdesse, a culpa seria dele.

Íris ficou em silêncio. Ela sabia que os dois se odiavam. Sabia que Caelus estava esperando uma oportunidade para esmagar Dário com orgulho. Mas foi o contrário...

Ela dispensou Tanna e encarou o livro por longos minutos, sentindo que algo maior havia mudado.

Agora, no presente, ela falou:

— Ouvi que você derrotou Caelus. Disse, quebrando o silêncio. — Você… se recuperou?

Dário a fitou, calmo e impenetrável.

— Talvez eu tenha.

— Hm. Vi que acolheu aquela garotinha. Ela tem algo especial?

— Sim. respondeu, sem hesitação. — Ela é como eu. Um erro do destino. E erros como nós... merecem uma chance de lutar de volta.

Íris ficou em silêncio. Depois, sussurrou:

— E se eu também for um erro?

Suas palavras contiam mais significados do que se imaginava.

Dário parou. Olhou-a nos olhos.

— Então talvez já tenhamos algo em comum.

Ela sorriu levemente, mas seus olhos estavam cheios de sombras. O jardim, envolto pela brisa noturna, parecia conter segredos demais para uma só conversa.

Íris parou sob uma árvore de folhas douradas que brilhavam sob a luz das tochas.

— Você mudou... Disse, mais suave. — Quando o vi de novo, achei que era arrogância. Mas não é isso. Está mais... calmo. Indiferente. Misterioso. Como se soubesse coisas que os outros não veem.

Dário observou uma flor cristalina que desabrochava sob a noite. E então falou:

— Porque eu sei. Vi a morte de perto. Toquei a escuridão... e algo me chamou de volta. Ainda estou tentando entender o quê. Mas o garoto ingênuo de antes morreu.

Ela se aproximou, o olhar sério.

— E o que nasceu no lugar dele?

— Um sobrevivente. Um estrategista. Um inimigo perigoso. E um monstro... se me obrigarem a ser.

Íris cruzou os braços, estudando-o com intensidade.

— Isso parece mais uma máscara do que uma resposta.

— Talvez. Mas máscaras são úteis. Especialmente quando se está cercado de mentirosos.

Ela hesitou. O rosto tenso. Ele sabia?

— Está falando de mim?

— Estou falando de todos. Respondeu, desviando o olhar. — Da Côrte. Da Casa Lutharen. Do Império. De Caelus. E sim, talvez... até de você. Não porque quero desconfiar. Mas porque aprendi: confiar sem conhecer as pessoas ao meu redor é pedir para ser enganado ou traido.

Ela apertou os punhos, e quando falou, sua voz era mais triste do que irritada:

— Dário… você sabe que eu não gosto de você...

Mas mesmo ao dizer isso... uma dúvida cruel brotava em seu coração.

A brisa noturna soprou entre as folhas, silenciando por um instante até mesmo os grilos. Mas o que Íris disse não parecia definitivo. Havia uma pausa, um espaço aberto para dúvida... para algo não dito.

Dário virou-se, encarando-a de frente. Seus olhos tinham um brilho frio, mas também carregavam certa melancolia que nem ele parecia perceber.

— Ainda assim, você está aqui. Caminhando comigo, buscando respostas que não quer admitir. Se não gosta de mim... por que se importa?

Íris desviou o olhar, o coração batendo mais rápido. Suas palavras seguintes vieram baixas, quase inaudíveis:

— Porque não entendo você. E eu detesto não entender as pessoas.

— Isso é medo? Perguntou Dário, dando um passo à frente. — Ou é curiosidade?

Ela o olhou, os olhos dourados buscando qualquer rachadura em sua armadura.

A brisa noturna soprou entre as colunas do jardim interno, espalhando o perfume das flores lunares. O céu começava a se abrir entre as nuvens, deixando escapar o brilho tímido das estrelas.

— É medo do que você pode fazer. Do que pode se tornar. Disse Íris, de repente. A voz era firme, mas seus olhos não. — Você sempre foi imprevisível. Agora... parece alguém que está brincando de xadrez enquanto todos ainda jogam dados.

Dário arqueou uma sobrancelha, teatral.

— Xadrez? — rebateu com uma expressão divertida. — Achei que fosse mais um jogo de sobrevivência. Com o destino trapaceiro, As peças faltando... e eu improvisando com cartas marcadas e poesia barata.

— Você transforma tudo em espetáculo. Ela resmungou, cruzando os braços. — Isso também assusta.

Ele colocou a mão no peito, fingindo indignação.

— Estou ofendido. Disse Dário, como se recitasse um monólogo, a luz da lua recortando sua silhueta com precisão quase dramática. — Eu sou o drama em carne e osso. Um herói trágico, disfarçado de vilão encantador, condenado a caminhar entre a redenção... ou a vingança. Seus olhos a fitaram, intensos, mas com uma sombra de melancolia. — Claro, tudo depende da plateia.

Íris revirou os olhos, mas o sorriso que esboçou foi quase sincero.

— Me diz uma coisa. Continuou ela, agora mais séria. — Por que se aproximou de mim? Vai dizer que foi amor à primeira vista? Ou só queria uma nobre para ostentar seu status, feito um troféu enfeitado?

Talvez fosse uma pergunta antiga, guardada num canto do coração que ela não admitia existir.

Dário hesitou. Pela primeira vez, o olhar dele ficou opaco, como se encarasse uma parte de si que preferia esconder.

Dário parou por um instante. O ar pareceu pesar ao redor dele. Seus olhos se voltaram para o céu, agora salpicado de estrelas. Quando falou, a teatralidade cedeu lugar a algo mais cru. Honesto.

— No início, sim. Era isso. Ele soltou um suspiro, como quem jogava fora uma máscara. — Você era um objetivo, um nome, um símbolo. Mas com o tempo... começou a escapar da lógica. Eu não gosto disso. Odeio não entender o que sinto. Odeio que você me faça sentir mais do que eu deveria.

Ding!

> Missão Especial do Sistema: “Semeando o Caos no Coração” Objetivo: Conquistar Íris Lutharen. Recompensa:

•+1 Carta de Evolução de Habilidade.

•PV 5000

•+500 de Sorte

•Habilidade Passiva: “Coração de Espinhos”

•Penalidade por falha: “Sombra de Rejeição Emocional” (efeito narrativo imprevisível)

Dica: Nem todo coração é uma fortaleza. Às vezes, só falta uma rachadura.

[SIM] / [NÃO]

Dário suspirou fundo. O sistema, como sempre, aparecia nos momentos mais inoportunos ou mais oportunos, dependendo da perspectiva.

Ele apertou [SIM].

Endireitando-se com elegância ensaiada, voltou a falar com um brilho enigmático nos olhos:

— Sabe, Íris... eu me acostumei a conquistar o que quero. Não por arrogância, mas porque o mundo sempre reagiu à força. E você... você nunca se curvou. Apesar das tentações, das pressões, você sempre foi resistência. A resistência em forma de mulher. Uma muralha viva.

A força de que Dário falava não era sua, mas da família que o sustentava nas sombras.

— E você queria escalar essa muralha? — provocou ela, com um sorrisinho.

— Não. disse ele, com a mesma luz enigmática no olhar. — Eu queria sentar diante dela, noite após noite, e contar histórias até que, por vontade própria, uma pedra decidisse se mover.

Íris o olhou, surpresa. Não era a resposta que esperava. Ela mordeu o lábio, olhando para o chão, depois para ele de novo, como quem buscava algo em sua expressão que nem ela sabia nomear.

— Você fala bonito, Dário. Bonito demais pra alguém que vive se escondendo atrás de sarcasmo e planos.

— Porque é mais fácil fingir do que admitir que alguém pode quebrar você com um olhar retrucou ele, sem hesitar.

O silêncio se alongou. A única testemunha era o farfalhar das folhas.

— Eu não sei o que sinto por você. Disse Íris, enfim. — Não sei se te odeio, se te admiro, ou se só queria que me deixasse em paz. Tudo ao mesmo tempo, talvez.

— Justo. Respondeu Dário, com um meio sorriso. — Mas se for plantar alguma coisa nesse coração, que seja uma dúvida. Porque da dúvida nasce o caos. E do caos, tudo é possível.

Íris desviou o olhar. Queria dizer algo, mas não encontrou as palavras. Dentro dela, algo pequeno e incômodo começava a se mover. Uma semente que ela não queria ali... mas que agora existia.

— Só não pense que vai me conquistar com poesia barata e olhares dramáticos, eu não me importo com seus status ou poder por trás da sua família. Ela murmurou, retomando a compostura. — Eu sou Íris Lutharen. Não uma donzela de conto de fadas.

— Nunca pensei que fosse. Disse Dário, se virando. — Contos de fadas são para quem não tem coragem de escrever a própria história.

Ele começou a caminhar pela trilha de pedra, as mãos cruzadas atrás das costas, cada passo ritmado como se seguisse a música de uma peça invisível.

Íris ficou parada. O jardim ao redor parecia mais silencioso, mais íntimo. Ela observou as costas dele, aquele andar confiante, quase insolente, e sentiu algo que não soube nomear.

Talvez não fosse amor. Nem mesmo atração.

Mas era alguma coisa. Uma rachadura.

E, contra sua própria vontade,

Ela deu um passo.

E depois outro.

Até segui-lo, sem dizer uma palavra.

O jardim, então, os envolveu em sombras e perfumes, como se conspirasse para juntar dois mundos que nunca deveriam colidir mas que, ainda assim, se atraíam.

....