Íris vagava por um campo escuro, onde as estrelas despencavam do céu como lágrimas silenciosas. O chão sob seus pés era feito de vidro negro, frágil como promessas quebradas, e a cada passo, estilhaços cortavam o vazio, revelando visões não apenas do seu passado... mas de algo mais antigo. Algo ancestral.
Lembranças que não eram apenas dela.
Imagens cintilavam sob seus pés como reflexos em poças de tempo:
— Um menino sorrindo antes de ser engolido pelas chamas.
— Uma garota de cabelos prateados estendendo a mão antes de ser apunhalada pelas costas.
— Companheiros caindo em silêncio, nomes esquecidos.
— Ela... sozinha. Sempre sozinha.
— Íris… Sussurravam as vozes, vindo de todas as direções e de nenhuma. Tinham tons familiares e distantes, como ecos de vidas anteriores. — Você falhou. Você sempre falha. Você os abandonou. De novo.
Ela tentou tapar os ouvidos. Mas o som vinha de dentro. Dentro da alma.
— Eu... eu tentei... eu tentei... Soluçou, tombando de joelhos, as lágrimas se misturando ao pó estelar que caía como neve. Suas mãos tremiam. Sangue manchava os dedos. A dor, a vergonha, o desespero... tudo a consumia.
— Eu obedeci. Eu suportei! Eu fiz o que mandaram...! gritou.
Mas novas memórias brotaram:
— A restrição fria da família Lutharen.
— Uma outra vida em que era traída e morta por aqueles que ela chamava de irmãos.
— Outra... e outra... cada fim mais cruel que o anterior.
A alma dela se fragmentava.
O mundo ao redor tremia, desmoronando como um sonho condenado a desaparecer.
E então… uma nova luz surgiu.
Azul-violeta. Suave. Quente. Real.
Minna caiu de joelhos ao lado dela, ofegante, com o círculo de energia ainda se dissipando sob seus pés. O chão rangeu, como se a presença de uma nova vontade reescrevesse as regras da realidade.
— Íris…!
A garota ergueu o rosto lentamente. Os olhos arregalados, tomados por um caos de confusão, dor e algo que Minna reconheceu: esperança.
— Não… não pode ser. Você é a Minna? A empregada do Dário? Isso não é real… é só mais uma mentira, não é?
Era a empregada pessoal de Dário, ela não conseguia pensar como ela teria conseguido vir para cá.
Minna hesitou por um segundo, mas então a abraçou com força, ignorando os cacos do chão, ignorando o sangue e ignorando tudo.
— Eu não sei por quanto tempo… mas sim. É real agora. Eu estou aqui.
Íris tremeu. O abraço era um fio de corda num abismo sem fim.
A Zona Predatória oscilava ao redor, as sombras recuando como fera temendo a luz. A presença das duas havia alterado a prova. Mas não está encerrado.
Minna olhou em volta, vendo os estilhaços do mundo quebrado de Íris. Fragmentos flutuavam ao redor visões que pareciam tão íntimas e distantes ao mesmo tempo.
— O que… o que é isso tudo? Murmurou, assustada.
Íris afastou-se um pouco, limpando as lágrimas com o dorso da mão, mas deixando manchas rubras na pele pálida.
— São memórias das minhas vidas passadas. Ela disse — Eu tenho sonhos das minhas vidas passadas desde os meus doze anos, nunca disse a ninguém sobre isso.
Ela baixou os olhos. A dor ainda estava lá, mas agora mais contida. Mais humana.
— Obrigada por vir... Sussurrou. — Mas, por favor… não conte a ninguém. Especialmente ao Dário.
Minna assentiu em silêncio, os olhos marejados. Não entendendo tudo, mas entendeu o suficiente. O suficiente para saber que Íris precisava dela agora, e talvez por um longo tempo.
As duas se levantaram juntas. Pela primeira vez, lado a lado.
E o mundo ao redor esperou... pois o verdadeiro julgamento apenas começava.
As duas haviam se erguido, os estilhaços flutuando como restos de um universo colapsado. O chão de vidro começou a se recompor sob seus pés, formando uma nova plataforma circular, envolta por névoa prateada e silhuetas distorcidas. A Zona Predatória, sentindo a interferência emocional, se adaptava, viva como um ser faminto por alma e verdade.
Minna apertou o punho.
Íris respirou fundo.
Um novo sussurro percorreu o ar, mais forte desta vez, quase físico:
“Escolha. Encare. Supere.”
A névoa girou, condensando-se em dois lados opostos da arena, como se o espaço se partisse em dois julgamentos distintos, e ainda assim ligados. Figuras começaram a se formar, como moldadas por lembranças e fantasmas.
Do lado de Minna, passos ecoaram com peso conhecido.
Um vulto alto emergiu da fumaça... e parou à frente dela.
— D-Dário...? Ela arfou, o coração disparando.
Era ele. Os olhos dourados. A postura ereta, imponente. O tom sério, aquele meio sorriso arrogante que sempre a confundia. Mas havia algo errado… os olhos não tinham luz. Nenhuma fagulha de sarcasmo ou compaixão. Nenhuma dúvida. Apenas julgamento.
— Você é fraca, Minna. Disse ele, em um tom frio como metal. — Sempre dependente dos outros. Sempre à sombra. É por isso que ninguém te escolhe. Nem mesmo eu.
Ela recuou um passo. Aquelas palavras, embora falsas, ecoavam antigos medos escondidos.
— N-não... você não é ele.
— Sou tudo o que você acredita que ele é. E tudo o que ele jamais sentirá por você. E então avançou, os olhos brilhando em âmbar fúnebre.
Enquanto isso, do outro lado do círculo, Íris encarava três figuras.
— Não... Murmurou, trêmula. Os joelhos quase cederam.
A primeira era um rapaz de cabelos escuros, sorriso torto, olhar protetor. Ela o conhecia de um sonho, de outra vida. Ele havia morrido por ela.
A segunda, uma garota de armadura leve, cabelos azulados presos em trança. Os olhos dela ainda imploraram por perdão.
E atrás dos dois... Seu Pai. Alguém que havia morrido nesta vida.
Alto, elegante, envolto em luz lunar. O rosto calmo, mas severo.
— Íris. Disse seu Pai, o antigo lorde da família Lutharen. — Quantas vezes você nos deixou para morrer? Quantas vezes fugiu quando deveria ter lutado?
Íris apertou os braços contra o peito. O som daquelas vozes... os rostos... ela os amava.
Ainda amava.
— Eu não queria... eu tentei! Gritou, em desespero. — Eu me esqueci! Eu era só uma criança nesta vida...!
— Você se lembra agora. E mesmo assim... continua correndo. Disse o rapaz. — Até quando?
Os três começaram a se aproximar. Nenhuma arma. Nenhum ataque. Apenas dor em seus olhos. E expectativa. Esperando que ela os enfrentasse… ou se rendesse.
Minna tentou invocar a aura do círculo, mas o Dário diante dela ergueu a mão e conjurou Fios Sombrios, uma distorção da técnica que ela viu o verdadeiro Dário usar.
— Você nunca será capaz de alcançá-lo. Nem de proteger ninguém. Ele avançou em velocidade.
Minna gritou e rolou pelo chão, desviando por instinto. O impacto da técnica estilhaçou parte da arena, rachando as pedras sob seus pés.
— Não é ele. Não é ele. Não é ele! repetia em voz alta, como se pudesse afastar o pânico com as palavras, tentando canalizar a Energia Áurea para formar uma defesa.
Mas a forma distorcida de Dário avançou com velocidade cruel, e num instante seus dedos estavam ao redor do pescoço dela, apertando com uma força gélida.
— Fraca. Inútil. Peso morto.
Minna encarou os olhos daquela figura. E neles, viu o reflexo de si mesma não o reflexo físico, mas a sombra que sempre a acompanhou: a dúvida silenciosa, o medo de não ser suficiente. De ser só mais um fardo.
Mas então, algo se acendeu dentro dela.
"Se fosse o verdadeiro Dário… ele jamais me diria isso."
A convicção rasgou o medo. E então ela gritou um grito nascido não do terror, mas da dor de se libertar.
A explosão veio com violência contida: branca e azulada, pura e cortante como a luz da verdade. A técnica brotou do seu núcleo sem ser invocada, como se respondesse ao seu coração partido como se fosse feita de tudo que ela sentiu, perdeu e superou.
A figura foi arremessada para trás, congelando antes mesmo de tocar o chão.
Não era só gelo.
Era negação absoluta.
Era um frio que queimava memórias falsas, um gelo tão profundo que petrificava até a alma.
A estátua que restou não era Dário, era uma mentira, congelada em forma e silêncio.
Minna caiu de joelhos, ofegante, mas com os olhos firmes.
Virou-se, encarando o verdadeiro Dário, ainda inconsciente à distância, sem saber de seu despertar.
E mesmo assim, disse com a voz firme, sustentada por uma força nova:
— Eu posso não ser forte como ele… Mas sou suficiente.
— Pra mim… e pra Íris.
Do outro lado, Íris caiu de joelhos. Os três fantasmas a cercavam. A dor era esmagadora. A cada passo deles, seu peito parecia se fechar.
Seu pai parou diante dela.
— Levante-se, Íris. Não para mim. Não por eles. Por você.
— Você não é real. Íris murmurou, encarando seu pai. — Mas… eu queria tanto que fosse.
Seu pai se ajoelhou, estendendo a mão.
— A dor molda. Mas não define. Você já sofreu demais. Chegou a hora de escolher viver.
Íris estendeu a mão também… e no instante do toque, Seu pai se desfez em luz.
Os outros dois fantasmas pararam. Sorriram. E sumiram também.
Íris chorava, mas agora, havia algo novo em seu rosto:
Paz.
Ela se ergueu.
No centro da arena, Minna a esperava, já livre da ilusão de Dário.
As duas caminharam uma até a outra.
E pela primeira vez, o teste não exigiu vitória. Exigiu verdade.
A Zona Predatória tremeu, e então… desabou em partículas de luz, levando as sombras com ela.
Desta vez, não houve gritos. Nem dor.
Apenas silêncio. E duas garotas que se recusaram a quebrar.
Foi quando a voz familiar soou novamente, suave como seda, mas carregada de cinismo:
— Parabéns por passar no teste. — disse o Ego da Identidade. — Foi... comovente assistir a esse drama.
Ele surgiu do ar rarefeito, aplaudindo de forma lenta e elegante, um leve sorriso curvando seus lábios. Vestia a mesma túnica etérea que os observava desde o primeiro momento, mas agora havia algo diferente em seu olhar uma ponta de respeito.
— Aqui está um fragmento do mapa para o Legado do meu mestre. Ele anunciou, e um cristal de luz azulada flutuou até as mãos de Íris.
Íris o recebeu em silêncio. Havia um leve tremor em seus dedos, mas seus olhos estavam firmes.
O Ego continuou, com o mesmo ar teatral:
— E como prometido, a recompensa por concluir o teste.
Das sombras atrás dele, uma esfera incandescente surgiu, feita de pura energia Áurea flamejante. Seu núcleo pulsava em tons carmesim e dourado, e chamas dançavam ao redor como serpentes vivas.
— Uma Pedra de Atributo Fogo. Explicou, girando a esfera no ar antes de lançar gentilmente. — Contém uma forma rara de energia Áurea Elemental do tipo fogo. Se absorvida com sabedoria, poderá ativar seu físico especial por completo… e, com sorte, fazer você avançar alguns níveis em seu Reino de Cultivo.
Íris estendeu as mãos, e a pedra repousou com leveza em sua palma. Ela fitou o artefato como se fosse a centelha de um novo destino. Seus olhos brilharam desta vez não com lágrimas, mas com determinação.
— Obrigada... Murmurou, com reverência.
O Ego então se virou para Minna. O sorriso dele se alargou levemente, mas seu olhar se suavizou.
— E você, Minna... usou sua antiga recompensa para salvar outra pessoa dentro da Zona Predatória. Uma escolha nobre... ou tola. Mas digna de reconhecimento. Disse, erguendo uma das mãos.
Desta vez, uma pedra diferente surgiu. Um cristal translúcido com brilhos azulados, que exalava uma aura gélida. Flocos de neve dançavam ao seu redor mesmo sem vento. A Pedra de Atributo Gelo.
— Parabéns por despertar seu físico especial. Declarou ele. — Esta pedra ajudará a estabilizar seu corpo e solidificar seu avanço. Se bem utilizada, poderá acelerar sua assimilação completa com o físico. Uma dádiva rara.
Minna a segurou com ambas as mãos. O frio da pedra pareceu acalmar sua alma, como se falasse a mesma língua de seu coração.
— Obrigada… por me permitir seguir. Sussurrou.
O Ego então ergueu ambas as mãos em direção ao alto. A plataforma de vidro sob os pés das garotas começou a brilhar intensamente, e névoas dançantes se ergueram como véus espirituais.
— Vocês completaram o primeiro teste. Anunciou, com solenidade. — O caminho para o Legado se desdobra em múltiplas provações. Este foi apenas o prelúdio. A partir de agora… os julgamentos se tornam reais. E irreversíveis.
Ele inclinou levemente a cabeça.
— Preparem-se, e boa sorte.
Minna e Íris se entre olharam. Um instante de conexão silenciosa. Sem palavras. Apenas entendimento. Ambas haviam mudado.
Elas assentiram ao mesmo tempo.
A névoa se ergueu em redemoinho. Um vento ancestral soprou, e seus corpos começaram a se desfazer em partículas luminosas, como poeira de estrela, retornando ao cosmos.
O mundo ao redor tremulou. As cores desapareceram. A luz se curvou.
E então… sumiram.
Enquanto isso, em outra parte da Zona Predatória…
Caelus gritava.
Não por dor física, mas pela raiva insuportável que queimava em sua mente.
Estava sozinho… ou pelo menos parecia. A luz ao seu redor pulsava, mas não iluminava nada. O chão era feito de névoa sólida. O céu, um espelho rachado refletindo mil versões distorcidas de si mesmo. E à sua frente, uma figura se aproximava devagar.
— Você de novo… Rosnou Caelus, cerrando os punhos.
Dário Vauren.
O maldito bastardo surgia entre as brumas, com aquele mesmo olhar calmo e implacável que ostentava na arena da Casa Lutharen. Mas havia algo errado... Esta não era uma simples lembrança.
Era uma repetição vívida.
— Não tem valor algum. — disse a imagem de Dário. — Seu brilho é falso. Sua força, emprestada. Você nunca será mais do que uma sombra das expectativas que te moldaram.
E então ele avançou.
Em um piscar de olhos, Caelus estava no chão, com o pé de Dário esmagando seu rosto contra a névoa. O mesmo momento da derrota. Repetido. Amplificado. Distorcido.
— Levante-se, Príncipe da Luz. Mostre seu valor. Ah, você não consegue, não é?
Caelus explodiu em fúria. Gritou, socou o chão, dissipou a névoa com rajadas de energia Áurea. Mas as ilusões continuavam. Dário sorrindo, os anciões do Altar da Luz Eterna virando o rosto em decepção, as palavras ácidas de reprovação:
“Você desonrou nosso nome.” “ O Herdeiro do templo da luz derrotado por um bastardo?” “Treine até seus ossos virarem pó, e talvez, talvez, você nos faça esquecer disso.”
As imagens mudavam, girando como lâminas em sua mente. O deboche nos olhos de Dário. O tom de pena em Íris. A indiferença da plateia. E o sermão de Kaeron , cruel como uma lâmina embebida em luz:
"— Caelus? Vejo que finalmente acordou… disse o visitante com um tom debochado"
"— Parece que sua glória e ascensão estão perigosamente perto da ruína."
O rosto de Caelus se contorceu excesso de raiva. Ele rosnou, cerrando os punhos:
Mas Kaeron apenas riu.
"— Hahaha! Ui, ui… Parece que o jovem e glorioso lorde Caelus apanhou feio mesmo. Está todo nervosinho."
Caelus berrou, sua energia explodiu numa onda dourada.
— BASTA! — gritou, estilhaçando as ilusões ao redor com uma explosão de pura vontade.
Silêncio. Sombras desfeitas.
O chão parou de pulsar. A luz se estabilizou.
Caelus ofegava, de joelhos. Mas seus olhos, antes cheios de raiva cega, agora brilhavam com algo diferente. Compreensão.
Ele se lembrou da voz de sua mãe, muito antes de ser moldado para o altar:
“Caelus, quem você quer ser… quando ninguém estiver olhando?”
Levantou-se devagar, limpando o sangue do canto da boca mesmo que fosse apenas ilusório. O peito ainda ardia, mas agora era de orgulho ferido sendo curado pela reflexão.
— Eu sou mais do que as expectativas deles. Sussurrou. — E vou provar isso… à minha maneira.
Foi então que o Ego da Identidade apareceu.
Sem palmas, sem sarcasmo. Apenas observando.
— Superou o teste. A raiva que o prende… foi confrontada. E pela primeira vez, você questionou o que está por trás dela. Disse, com um leve aceno de cabeça.
Um cristal surgiu no ar, flutuando até Caelus.
— Um fragmento do mapa para o Legado do Imperador dos Sonhos. Declarou o Ego. — Você está um passo mais próximo da verdade.
Caelus pegou o cristal, sentindo sua energia vibrar como um antigo chamado. Mas o Ego não terminou.
— E esta… disse, revelando um segundo presente: um orbe dourado com um núcleo de energia em espiral não é uma pedra elemental, mas algo mais raro.
Ele lançou o orbe, que flutuou diante de Caelus.
— Uma oportunidade. Se você aceitar, poderá acessar uma fração do Legado do Imperador Marcial dos Sonhos. Um vislumbre de sua verdadeira essência… suas técnicas, sua filosofia, sua dor.
O olhar de Caelus se estreitou.
— Qual é o preço?
— Entender… e talvez admitir… que não se trata apenas de vencer. Respondeu o Ego. — Se aceitar, poderá iniciar sua conexão com o sonho maior. O mesmo presente foi oferecido a outro candidato. Mas isso… não é da sua conta.
Caelus franziu a testa por um momento, mas então ergueu a mão e tocou o orbe.
— Eu aceito.
O orbe se desfez em poeira de ouro, entrando em seus meridianos como um sopro quente. Ele sentiu a energia se acomodar… não como poder bruto, mas como uma promessa.
Um chamado.
O Ego sorriu de canto.
— Você agora está pronto para o segundo teste. Prepare-se. As ilusões foram apenas a superfície.
A névoa surgiu novamente, girando em espiral ao redor de Caelus. O cenário desbotou.
Antes de desaparecer por completo, Caelus fechou os olhos.
E pensou em Dário.
Mas desta vez… não com ódio.
Com propósito.