Ruína Ou Redenção

Atravessando o corredor de metal frio, Seraphina mantinha os passos firmes, mas seus olhos mesmo escondidos sob o disfarce de Choi Eun-kyung estavam distantes, presos à memória. O sangue seco em suas botas, o cheiro metálico ainda impregnado nas narinas... tudo parecia ecoar em sua mente como uma marcha fúnebre.

O silêncio dos corredores subterrâneos da base da Ordem de Érebo era absoluto, como se respeitasse o massacre que havia ocorrido. E ainda assim, para Seraphina, o que mais pesava não era o corpo da mulher que matara. Era seu olhar. A expressão de desespero. A súplica silenciosa por uma salvação que nunca veio. Uma salvação que ela mesma implorou no passado.

Ela finalmente chegou ao seu quarto, um compartimento pequeno, funcional, com cama metálica, iluminação baixa e paredes espelhadas. Ao fechar a porta, o silêncio se intensificou... junto com a dor.

Seraphina caiu sentada na beirada da cama, os dedos trêmulos pressionando a testa. Lembrava do rosto da mulher magro, pálido, assombrado... exatamente como ela foi antes de Elysian aparecer em sua vida.

Por um instante, o rosto daquela mulher se confundiu com o da pequena Seraphina, a criança órfã que viu sua família ser queimada viva por um ataque “cirurgicamente autorizado” de heróis. A mesma Seraphina que gritou até não ter mais voz, até ser silenciada pelo caos... e salva pela única sombra que não quis usá-la: Oblivion Sage.

Ela não era mais aquela criança. Era Pandemonium. Mas será que havia mesmo matado essa criança dentro de si?

Ela se deitou, os olhos fixos no teto escuro. O peso da dúvida a esmagava e, pela primeira vez em anos, ela se sentia perdida. Foi então que o comunicador implantado em sua orelha vibrou suavemente.

Ela hesitou... depois atendeu. “Oblivion Sage...” sua voz era baixa, controlada.

A resposta veio instantânea, fria e objetiva. “Relatório. Detalhado. Sem omissões.”

Ela respirou fundo. Por mais que confiasse nele... às vezes era difícil manter-se à altura de seu intelecto implacável. “A primeira fase foi uma corrida mortal, forçada, brutal. De mais de dez mil, sobraram apenas 8.573. A segunda, o Julgamento de Sangue, uma luta interna onde apenas um por grupo podia sobreviver. Restaram agora 2.148 candidatos.”

Elysian fala com uma voz fria e calma “Taxa de eliminação de 78,52%. Excelente. Eles não estão brincando.”

Seraphina então acrescenta “Não mesmo. Eles não querem candidatos... querem armas leais.”

Elysian não respondeu de imediato. Pandemonium continuou: “Durante as provas... houve um candidato que se destacou. Um rapaz chamado Kaine. Incrivelmente forte. Rápido. E estrategista. Ele me empata em combate físico. E talvez... ultrapasse, se for levado ao limite.”

Elysian então pergunta “Quais são suas características?”

Seraphina então responde calmamente “Corpo moldado pela batalha. O olhar dele... é o de quem já perdeu tudo. Quase como o meu. Talvez por isso eu o odeie... ou o entenda.”

Elysian interrompe “Sentimentos desnecessários. Continue.”

Ela franziu a testa. Sabia que ele estava certo. Mas odiava a frieza com que ele descartava tudo que era humano. Ainda assim, prosseguiu “A Ordem de Érebo age como um culto disfarçado de exército. Técnicas mentais, monitoramento total, e nos testam como se fossem deuses. Eles estão... tentando moldar os sobreviventes em algo que nem sei se é humano.”

Elysian respondeu com a mesma calma “É assim que se cria uma nova ordem. Destruindo a anterior, desumanizando até que obedeçam sem pensar.”

Ela fechou os olhos. Concordava... mas odiava concordar. “A terceira fase começa amanhã. Não sabemos o formato, mas dizem que será a última. E...” Ela parou.

“...E?”Elysian perguntou.

Ela então continuou a falar “Houve uma mulher. Na segunda fase. Ela era... fraca. Mas corajosa. Lutou até o fim. Lembrava... a mim mesma. Quando eu era só uma criança. Quando precisei matar ela... eu hesitei. Não por medo. Mas porque... senti culpa. Muita culpa. Eu a vi implorar com os olhos e... era como se eu matasse a mim mesma. E me pergunto se... se isso nos torna iguais aos que odiamos.”

Elysian demorou para responder. Quando falou, sua voz era cortante. “Nem nós podemos salvar todos os seres vivos, Pandemonium. O mundo que queremos criar precisa ser construído em cima dos escombros desse atual. E isso inclui... sacrifícios, alguns infelizmente de nossos aliados e inocentes, embora evitemos eles ao máximo.”

“Eu sei. Eu sei disso.” ela murmurou. “Mas ainda dói.”

Elysian então corta friamente com uma pergunta “Por quanto tempo você deixará suas emoções te dominarem?”

A pergunta a atingiu como uma flecha. Seraphina se sentou, surpresa. Queria responder, mas... não sabia o que dizer. “O que...?”

Elysian então decide acrescentar mais a sua pregunta “Seus conflitos, suas hesitações, sua dor tudo vem das emoções. São elas que te impedem de ver o quadro completo. Quando eu ajo sozinho... não há uma única variável fora de controle. Porque abri mão de tudo que me tornava fraco. Incluindo... isso.”

Seraphina ficou em silêncio, os olhos presos ao chão. “Preciso... desligar. Preciso pensar.”

“Tudo bem.” Elysian respondeu. Mas antes que ela pudesse encerrar, ele disse algo que fez seu coração parar por um segundo. “Mas de preferência... eu preferiria que você não acabasse como eu... Celeste.”

A linha caiu. Seraphina não conseguia se mover. As palavras ecoavam em sua mente como trovões. Celeste.

Seu nome real. Um nome que ela mesma havia esquecido com o tempo, enterrado sob a máscara de Pandemonium. Ninguém mais o chamava assim. Nem mesmo Avelar. Ninguém.

Mas Elysian lembrou. Aquele simples gesto... aquele simples nome... quebrou o escudo de aço ao redor do coração de Seraphina.

Ela chorou. Pela primeira vez em anos, chorou sem conter. Em silêncio, mas com intensidade. Lágrimas quentes escorriam enquanto ela cobria o rosto.

Não era fraqueza. Era libertação. E quando finalmente as lágrimas cessaram, ela se levantou. Limpou o rosto. Encostou-se no espelho. “Obrigada, Elysian... Obrigada por lembrar de quem eu sou. Mas agora... prometo: nunca mais deixarei minhas emoções me atrapalharem de novo.”

Ela encarou seu reflexo. A mulher que viu... não era Celeste. Não mais. Era Pandemonium.

O som de um alarme profundo e grave preencheu toda a instalação subterrânea. Era diferente dos anteriores mais intenso, com um eco metálico que fazia o peito vibrar. Os candidatos despertaram em alerta, inclusive Seraphina, que já estava pronta. Após a conversa com Elysian na noite anterior, algo dentro dela se havia acendido. Sua mente estava fria, mas sua alma... firme como uma lâmina recém-forjada.

Um som metálico se seguiu. As paredes dos dormitórios deslizaram, revelando não apenas os corredores, mas... a estrutura inteira do complexo se transformava.

Um enorme elevador surgiu no centro do setor onde os sobreviventes estavam reunidos. Sem qualquer instrução verbal, ficou claro, era hora da terceira fase e a última.

Seraphina entrou no elevador junto aos outros. Olhares estavam vidrados, corpos rígidos. Havia apenas 2.148 candidatos agora. Nenhum deles parecia inofensivo. Aqueles que restaram tinham corpos marcados, olhos opacos de exaustão, e um fio tênue de humanidade restante.

E entre eles, lá estava ele. Kaine. De braços cruzados, encostado na parede oposta. Seus olhos encontraram os de Seraphina e pela primeira vez, não havia provocação. Havia entendimento. Algo no olhar de ambos dizia: não é mais sobre sobrevivência. É sobre guerra.

O elevador desceu por minutos inteiros. A tensão era quase insuportável. E então... ele se abriu.

Um campo colossal se revelou diante dos olhos dos candidatos. Um espaço quase natural, mas delimitado por grades gigantescas. Ruínas de prédios, vegetação densa, lagos artificiais, zonas áridas... era como se vários biomas tivessem sido costurados. Mas o céu era preto. E havia torres de vigilância nos quatro cantos, com câmeras giratórias e holofotes.

Um cenário de guerra. Literalmente. No alto de uma das torres, surgiu uma figura um novo instrutor. Ele era alto, vestindo uma armadura cerimonial negra, com o emblema da Ordem de Érebo esculpido no peito como se fosse parte do osso. Seu rosto era oculto por uma máscara de ossos dourados. A sua presença era esmagadora.

Sua voz ecoou, distorcida e firme “A Terceira Fase inicia agora. Código: PURGA. Neste campo de provas, não há zonas seguras. Não há cronômetro. E não há misericórdia. Cada um de vocês deve sobreviver até o final. Mas saibam: não vencerá quem sobreviver. Vencerá quem for o último em pé... ou quem conquistar o Coração do Campo.”

Murmuros explodiram. “No centro existe um Núcleo. Ele está selado. Apenas será revelado quando 90% dos candidatos estiverem mortos. E quem tiver posse dele, ao final da fase... será declarado o campeão.”

A lógica era simples. Massacre até restar um número mínimo... e só então o verdadeiro prêmio surgiria. “Grupos são permitidos. Mas saibam: trair é natural. Apenas os fortes merecem permanecer.”

A transmissão terminou. E então... as luzes do campo apagaram. Uma sirene soou. As grades se abriram. E o inferno começou.

1 HORA DEPOIS

O campo virou um verdadeiro matadouro. Drones invisíveis sobrevoavam a área, gravando tudo. Havia candidatos enlouquecidos, caçando alvos como predadores famintos. Alguns formaram alianças temporárias, mas essas se rompiam em minutos. Um aperto de mão era apenas o prelúdio de uma faca nas costas.

Seraphina se movia silenciosamente entre os escombros de um antigo prédio, analisando tudo com precisão. Seu disfarce permanecia intacto, mas sua mente já funcionava no modo de combate.

“Observar antes de agir. Mapear antes de atacar. Controlar antes de destruir.” ela repetia as palavras de Elysian como um mantra.

Logo percebeu três candidatos emboscando um garoto ferido. Ela apenas observou mas quando viu que um deles possuía habilidades de manipulação sísmica, traçou mentalmente sua utilidade e grau de ameaça.

Alvo: Nível 3. Eliminar. Avançou sem hesitação.

Dois golpes. Três corpos no chão. Sem uma palavra. Ela não matava por prazer. Matava por necessidade.

Mas algo a incomodava: a crueldade gratuita de outros candidatos. Eles torturavam, mutilavam, se alimentavam da dor alheia. E quanto mais o número caía, mais sádicos se tornavam.

Em contraste, Kaine surgia como um relâmpago em cada setor. Ele não se escondia. Era um furacão de força e brutalidade. Não precisava de aliados. Os que o atacavam, caiam. Ele já havia derrotado ao menos dez dos mais fortes. Sua EVP não era infinita, mas ele sabia exatamente quando e como usá-la.

E então... seus caminhos se cruzaram novamente. Num setor encharcado de névoa, Seraphina e Kaine quase colidiram em silêncio. Ambos estavam cobertos de sangue não o próprio, mas de outros.

“Então você está viva.” ele murmurou, segurando uma lâmina rachada.

“Você também aparentemente.” ela respondeu.

Um silêncio se seguiu. Depois, Kaine virou levemente o rosto, indicando o nordeste. “Um grupo está se aproximando. Estão eliminando os melhores um por um. São... organizados.”

Seraphina então perecebe os inimigos e pergunta “Quantos?”

Kaine então responde calculamente “Cerca de dez. Comandados por alguém que usa um bastão preto. Matou três com um só golpe. Estão vindo pra cá.”

Ela assentiu. “Então vamos eliminar eles.”

“Você fala ‘vamos’ agora?” ele provocou com um leve sorriso.

Seraphina afirma com um sorriso de leve “Estamos apenas limpando o caminho. O confronto final... será só entre nós dois.”

Kaine sorriu e pela primeira vez, foi sincero. “Mal posso esperar.” Ambos sumiram na névoa.

Dentro da torre de comando, o novo instrutor da terceira fase observava os monitores com atenção. Ao seu lado, outros membros da Ordem murmuravam, debatendo, anotando.

“Ela é mais do que parece mostrar.” disse um dos analistas, apontando para Seraphina.

“E aquele rapaz... Kaine. Sua origem ainda está fora dos registros. Ele simplesmente surgiu.”

“Talvez o verdadeiro objetivo desta fase... seja ver se esses dois sobrevivem. O restante é só estatística.”

O instrutor de armadura negra assentiu. “Ou talvez... estejamos moldando nossos próprios demônios.”