A carruagem real que os levariam a Umbralis ja estava ali os aguardando - e, honestamente, ela era... exageradamente... chamativa? Se é que chamativa não é um diminutivo ainda. A carruagem era toda dourada, com detalhes exagerados e cortinas de veludo roxo, era o tipo de coisa que gritava "olhem pra mim, sou importante!" antes mesmo de sair do castelo.
- Isso aí vai aguentar o caminho até Umbralis? - Ferme diz incrédulo, olhando para a roda traseira que parecia não aguentar o peso da carruagem.
- Não seja dramático - Mabel respondeu, ajeitando-se dentro da carruagem enquanto tentava manter uma postura de princesa - Isso aqui é luxo. Tradição. História. Você devia se sentir honrado, hmph - ela buffa de uma maneira que aparentava estar ofendida, mas acabou soando fofo e demonstraria sua vergonha de estar em algo assim.
- Eu me sinto desconfortável. Isso conta?
O cocheiro, um senhor de idade com o bigode torcido e óculos escorregando pelo nariz, virou-se animadamente.
- Prontos pra aventura, Alteza? Cavalo alimentado, rodas lubrificadas, e eu com meu lencinho da sorte! Ninguém segura essa carruagem!
Ferme estreitou os olhos.
- Quantos acidentes você já teve?
O cocheiro estufou o peito com orgulho.
- Só sete! Oitenta e cinco por cento de sucesso! Bem acima da média dos cocheiros reais!
Ferme piscou. Depois piscou de novo, lentamente, como se o cérebro estivesse processando tudo aquilo que acabou de ouvir.
- Só sete? - ele repetiu, com o tom da voz se elevando um pouco. - Você tá me dizendo... que já bateu essa carruagem sete vezes... e ainda tem licença pra dirigir isso?
- Exatamente! E nenhuma fatal! Bem, só um dedinho do ajudante, mas ele não usava muito mesmo.
Ferme virou lentamente para Mabel, com os olhos arregalados e a expressão de quem acabara de ouvir que seriam lançados de catapulta até Umbralis.
- Alteza, esse homem é um perigo público. Isso não é um cocheiro, é uma ameaça sobre rodas.
- Ah, não seja dramático, Ferme - Mabel disse, abanando a mão e sorrindo. - O importante é que ele é feliz!
- Entusiasmo também é uma característica comum em pirômanos, sabia?
Ferme encarou a carruagem como se ela fosse explodir a qualquer momento. Depois olhou de volta para o cocheiro, que agora fazia carinho em seu cavalo enquanto cantarolava uma música que incluía os versos "se a roda voar, confie no vento".
- Entusiasmo também é uma característica comum em pirômanos, sabia?
Ferme encarou a carruagem como se ela fosse explodir a qualquer momento. Depois olhou de volta para o cocheiro, que agora fazia carinho em seu cavalo enquanto cantarolava uma música que incluía os versos "se a roda voar, confie no vento".
- Eu... eu vou escrever meu testamento antes de subirmos nisso - Ferme murmurou. - Mabel, se eu morrer, diga ao meu irmão Mark que foi culpa sua.
- Ferme! Não vamos morrer!
- Claro que não. A gente só vai girar feito um furacão. Com um sujeito no controle que acha que sete acidentes é um número "respeitável". Sete, Mabel. Isso é quase uma maldição bíblica.
- Ai, que exagero... você devia tentar relaxar.
- Eu estou relaxado. Este é meu modo relaxado, Mabel.
Mesmo assim, ele subiu na carruagem, tenso como um arco prestes a disparar.
O cocheiro bateu as rédeas.
- Próxima parada: Umbralis! Ou um destino completamente diferente, dependendo do vento!
Ferme fechou os olhos.
- Sete acidentes... sete... isso não é um número, é um presságio...
A carruagem sairia finalmente então, e eles se mantinham em silencio, com Mabel um pouco desconfortável afinal ela nutria um sentimento por Ferme. Após eles sairem dos arredores do castelo, ou seja, alguns quilômetros... Mabel por sua vez voltaria a abrir a boca devido um ocorrido.
A carruagem balançava tanto que Mabel parecia estar tentando fazer yoga.
- Isso é... isso é normal? - ela perguntou, agarrada à lateral em pânico.
- Normal? - Ferme disse, segurando firme na espada para não cair no colo dela. - Isso é o equivalente a correr um mar de colinas... E quem que ta com medo agora?
- Se eu vomitar no seu sapato, a culpa é sua.
- Se você vomitar no meu sapato, eu juro que largo você aqui e sigo pra Umbralis com uma mula.
Do lado de fora, o cocheiro gritava:
- Peguem firme! Tem uma curva ali que faz até o cavalo chamar pela mãe!
Ferme bateu a cabeça no teto. Mabel caiu em cima dele com um grito abafado de princesa em desespero.
- Isso nem faz sentido! - Mabel exclamou, agarrando-se à lateral da carruagem como quem se segura na própria dignidade.
Ferme, que tentava manter a compostura, teve sua face tomada de medo e desespero.
- Se essa carruagem virar, eu te transformo em adubo, juro.
Mas era tarde demais.
Eles viraram a curva. O cavalo relinchou como quem viu a própria vida passar diante dos olhos. O mundo girou, o cavalo relinchou como um louco bêbado, e tudo aconteceu rápido demais:
Mabel gritou, Ferme xingou, e num segundo, os dois estavam no chão da carruagem - ou melhor, um sobre o outro.
Literalmente.
Ferme caiu de costas, com um impacto que fez a carruagem ranger. Mabel caiu direto em cima dele, os dois completamente embolados, rostos tão próximos que um leve suspiro podia virar um escândalo nacional nos jornais se alguem visse.
Mabel ficou ali, de joelhos, as mãos plantadas no chão da carruagem, o rosto inclinado, olhos fixos nos dele. A distância entre os dois era quase nenhuma.
Ferme piscou.
- ...Você caiu em cima de mim - ele disse, com a voz abafada, ainda tentando processar se havia sobrevivido à curva ou não.
- Ah. - Mabel piscou também. - É. Cai mesmo.
O silêncio se estendeu por longos segundos. Os olhos dela ainda estavam cravados nos dele, e estes eram... assustadoramente belos. Um toque de pânico surgiu, junto a um toque de... curiosidade?
- Fisicamente? Talvez. Emocionalmente? Acho que fui atropelado por uma princesa - respondeu Ferme, com um suspiro leve, sem a frieza costumeira. Tinha um leve tom de humor ali.
- Então... tecnicamente você cumpriu sua missão. Salvou uma donzela de cair sozinha - ela disse, tentando manter a compostura, mas com as bochechas já em ponto de fervura.
- É. Só faltou a parte onde eu não viro colchão humano.
Os dois continuaram ali, imóveis. Mabel, com as mãos no chão, meio por cima dele. Ferme, estatelado, os olhos presos nos dela. A carruagem voltou ao ritmo normal, mas dentro dela, o tempo parecia congelado, como se cada um dos 2 não quisessem que este passasse.
- Quer... se levantar? - Ferme perguntou, cauteloso.
- Estou trabalhando nisso - respondeu Mabel, sem muita convicção.
Ela tentou se afastar, mas seu vestido se prendeu na bainha dele, e ela quase caiu de novo.
- Ai, por Estella! - resmungou, tentando não esmagá-lo mais ainda. - Por que tudo o que eu faço perto de você parece que saí de um conto de um bobo da corte?
- Porque você tem talento - disse ele, finalmente soltando um riso curto. Era raro inclusive.
- Você riu - ela disse, surpresa.
- Um pouco. Quase involuntário.
- Então estou melhorando - sorriu Mabel, finalmente conseguindo se levantar, ajeitando o vestido enquanto se afastava. - Primeira missão conjunta e já arranquei um riso. Na próxima, quem sabe, você até elogia meu cabelo que passei horas arrumando.
Ferme sentou-se devagar, sacudindo sua roupa com dignidade ferida.
- Um passo de cada vez, Alteza.
Ela estendeu a mão, ainda meio rindo.
- Vem. Deixa eu te ajudar. Afinal, fui eu que te derrubei.
Ferme hesitou por um segundo, mas então aceitou. Quando a mão dele tocou a dela, Mabel sentiu um pequeno arrepio, que tentou ignorar com todas as suas forças.
- A carruagem sobreviveu - disse Ferme, levantando-se com a ajuda dela. - Milagre.
- E eu também. Por pouco. - Mabel ajeitou o cabelo, tentando recuperar um pouco de dignidade. - Mas se cair em cima de você for um hábito... bom, espero que tenha costas resistentes.
A carruagem seguia seu curso pelas estradas de Axoland, a estrada para Umbralis não era um trajeto apressado, mas um mar de silêncios, sorrisos discretos e pequenas pausas que tornavam a jornada tão valiosa. O céu estava limpo, com nuvens espaçadas e o vento correndo devagar entre as árvores. Mabel olhava pela janela, apoiando o queixo na mão, vendo os campos passarem lá fora como se o mundo andasse num ritmo mais calmo.
Em uma das paradas, desceram perto de um lago. Ferme se afastou um pouco para pegar água enquanto Mabel caminhava pelas pedras na margem. Ela chutou uma delas, viu um grupo de patos nadando e riu sozinha. Não havia pressa. Eles voltaram com calma para a carruagem.
Durante a viagem, passaram por alguns pequenos vilarejos. Pararam em um burguzinho acolhedor, com mesas na rua e cheiro de pão fresco saindo de uma padaria. Comeram ali, em silêncio, como se estivessem só aproveitando o momento. Mabel parecia relaxada, mexendo no copo enquanto observava as pessoas indo e vindo.
Mais adiante, pararam em um mirante. Sentaram em uma pedra, observando o vale e as árvores lá embaixo. O vento soprava forte, mas era agradável. Ferme ficou de braços cruzados, quieto. Mabel também não disse nada. Ficaram ali um tempo, até que ela deu um espreguiçar leve e voltou para a carruagem.
O tempo passou, a estrada seguiu. Lá dentro, o balanço da carruagem era como se esta tivesse sendo ninada. Mabel acabou cochilando. Sua cabeça escorregou devagar até encostar no ombro de Ferme. Ele olhou de lado, fez menção de se mover, mas desistiu. Só ajeitou o peso do corpo, para que ela ficasse mais confortável.
O sol já estava começando a descer no céu quando a carruagem cruzou a última colina. À frente, entre campos abertos e árvores espaçadas, as primeiras construções de Umbralis surgiam. Casas de pedra com telhados vermelhos, ruas de terra batida, e pequenas hortas à beira das cercas. A estrada se estreitava à medida que se aproximavam da vila principal.
A carruagem diminuiu a velocidade.
À medida que avançavam, os sons do vilarejo começaram a preenchê-los: crianças correndo e rindo, vendedores chamando pelos produtos do dia, cães latindo à distância. Algumas pessoas começaram a se aproximar ao reconhecer o brasão de Axoland no estandarte da carruagem.
- A princesa! É a princesa Mabel! - gritou uma senhora, com um sorriso largo e olhos brilhantes.
Em poucos segundos, a rua virou uma pequena festa. Camponeses com roupas simples, mãos calejadas e sorrisos sinceros acenavam animados. Crianças corriam ao lado da carruagem, algumas segurando flores, outras só rindo pela excitação. Vendedores deixavam suas barracas por um momento, levantando os chapéus ou fazendo reverência.
Mabel abriu a janela e, por instinto, acenou de volta com um sorriso cheio de alegria. Seus olhos brilhavam, vivos como nunca desde o início da viagem. Ela respondia os acenos, agradecia pelos cumprimentos e ria quando uma menina mais corajosa lhe entregou uma flor, vermelha e simples.
Ferme, sentado ao seu lado, a observava de canto. Era raro vê-la assim, leve, sem se conter. Ele não disse nada, mas um pequeno sorriso apareceu. Pela primeira vez em dias, ele não parecia só o guarda silencioso e sério. Havia um traço de algo mais suave em seu olhar.
A carruagem finalmente parou diante de uma grande construção no fim da rua principal. Era a Casa Netherheart. Imponente, mas sem ostentação. A pedra escura e as janelas longas contrastavam com o restante do vilarejo. Portões de ferro foram abertos com cuidado, revelando uma pequena comitiva de recepção.
Servos e nobres estavam alinhados, todos com vestes formais, aguardando a chegada da comitiva real. No centro, um mordomo de cabelos grisalhos fez uma reverência.
- Vossa Alteza, Princesa Mabel Abysscale - anunciou ele, com voz firme. - Em nome da Casa Netherheart, seja bem-vinda a Umbralis. A casa é vossa durante toda a estadia.
Mabel desceu da carruagem com elegância, o vestido sacudindo levemente com o vento da tarde. Ela agradeceu com um sorriso sincero, ainda com o brilho nos olhos. Ferme veio logo atrás, mais discreto, além de que ele não era tão reconhecível quanto a princesa desajeitada ali.
O mordomo grisalho avançou lentamente até as grandes portas da mansão, empurrando-as com ambas as mãos. As dobradiças rangiam suavemente, revelando o saguão principal de pedra polida, com tapeçarias nas cores da família Netherheart, um azul e vermelho, sendo mais preciso e um leve aroma de ervas tomaria o ar.
Mas antes que Mabel e Ferme pudessem dar o primeiro passo para dentro, um leve sussurro veio do outro lado da porta, bem baixinho:
- Ei, Esther... é a princesa...!
Do lado da entrada, em uma das colunas, duas crianças se encolhiam com os olhos arregalados. O menino era baixinho, de cabelos brancos bagunçados, vestindo roupas formais que pareciam um pouco grandes demais. A garota ao lado dele era mais contida, com uma fita presa ao cabelo branco acima dos ombros, estes dois aparentavam ter cerca de 8 anos, assim como a Kaori.
- Delta! Fica quieto, seu idiota! - respondeu a menina, puxando o primo de volta. - Vai envergonhar a gente!
O mordomo soltou um suspiro paciente, como quem já lidara com aquele tipo de cena dezenas de vezes.
- Permitam-me apresentar os jovens herdeiros da Casa Netherheart - disse ele com elegância. - O pequeno Delta, descendente da linhagem paladina, e Esther, herdeira da tradição diplomática da família.
Ambos arregalaram os olhos como se tivessem sido pegos roubando doces.
- AAAAAAAAAH! - gritaram em uníssono, as bochechas em chamas.
Esther virou-se tão rápido que tropeçou na própria barra do vestido e puxou Delta junto. Os dois dispararam pelos corredores da casa como dois pintinhos assustados, sumindo atrás de uma cortina pesada
Mabel levou uma das mãos à boca, contendo a risada. Ferme apenas levantou uma sobrancelha, sem conseguir esconder o leve divertimento no canto dos olhos.
O mordomo pigarreou, ainda impassível.
- Eles têm... entusiasmo. - disse com serenidade.
E, como se aquele episódio fosse rotina, virou-se de imediato, fazendo um gesto para que os convidados o seguissem.
- Irei levá-los à líder da casa. A senhorita Lizbeth os aguarda no salão de chá.
O mordomo os conduziu pelo longo corredor, onde cortinas finas balançavam e o aroma de jasmim se intensificava a cada passo. Quando chegaram à sala de chá, as portas já estavam entreabertas, como se alguém estivesse ansioso pela chegada deles.
- Finalmente... - disse uma voz familiar, e levemente dramática. - Já estava considerando mandar uma busca. Três corvos, dois mensageiros e talvez um cavalo falante.
Mabel esboçou um sorriso contido e acelerou os passinhos, passando pela porta antes do mordomo.
Mabel entrou primeiro e cruzou a porta com passo apressado.
- Lizbeth! - disse, abrindo um sorriso.
Lizbeth estava em pé ao lado de uma mesa baixa, vestida com um kimono leve e o cabelo branco preso com grampos decorados. Ao ver a menina, ela sorriu de volta e foi até ela.
- Olha só quem apareceu - disse, se abaixando um pouco para ficar mais próxima da altura da Mabel. - Você está um tiquinho mais alta. Isso é um problema. Significa que estou ficando velha.
- Você já disse isso da última vez - respondeu Mabel, cruzando os braços, mas sem esconder a satisfação em vê-la.
Ferme parou à porta, observando a troca. Lizbeth olhou de relance pra ele e deu um aceno leve com a cabeça.
- E esse é o famoso guarda-costas? Hm. Bom, parece saber ficar quieto, este que é o irmão caçula de Mark né? De fato se parecem um pouco.
Ela voltou a encarar Mabel e pegou sua mão com naturalidade.
- Vem. Preparei chá de melissa e mandei buscar aqueles biscoitos amanteigados que você gosta. Ainda gosta, né?
Mabel assentiu rápido e seguiu com Lizbeth até a mesa. Ferme se sentou discretamente ao lado, preferindo observar.
Sobre a mesa baixa, uma bandeja de prata exibia uma seleção de biscoitos, frutas secas e uma chaleira de porcelana fumegante. Mabel se sentava ereta, as mãos sobre o colo, mas seus olhos não paravam de vasculhar os detalhes do ambiente com aquele olhar atento que ela raramente deixava transparecer.
Lizbeth, sentada à frente dela, servia o chá com a mesma vibe descontraída de sempre.
- E então? - disse Lizbeth, ao entregar a xícara. - Como anda a famosa Escola Mágica de Kryven? Ainda inteira?
Mabel soltou um sorriso breve, pegando a xícara com ambas as mãos.
- Por enquanto, sim. Os professores são exigentes, mas acho que tô me saindo bem. O ritmo é puxado... mas é o que eu esperava.
- Imagino. Kryven não costuma pegar leve, principalmente com gente que carrega um brasão real no uniforme. - Ela pegou um biscoito e deu uma mordida, sem pressa. - E o castelo? Como estão os ventos por lá?
- Estáveis. Papai tem ocupado boa parte dos dias em reuniões. Mamãe... segue sendo mamãe. As recepções, as formalidades, tudo certinho.
Lizbeth sorriu de lado, inclinando um pouco a cabeça.
- Vocês estão crescendo rápido demais. Daqui a pouco sou eu quem vai pedir conselhos pra você.
Mabel riu com a xícara ainda próxima dos lábios, mas logo seu semblante ficou um pouco mais sério. Ela pousou a xícara sobre o pires devagar, como se estivesse preparando o terreno para algo mais delicado.
- Lizbeth... tem outra coisa. Um motivo pra eu ter vindo até aqui, na verdade.
- Sabia que esse chá tinha gosto de assunto sério - murmurou Lizbeth, mas seu tom era calmo. Ela se ajeitou na cadeira. - Pode falar.
Mabel respirou fundo antes de continuar.
- Dias atrás, eu tive uma visão. Não foi um sonho comum... foi por causa da minha magia. Vi uma mulher. E uma garota veio de outro reino, ou seja esta garota era esta mulher, ela veio junto com o Feitan. Eu ainda não entendo o papel dela nisso tudo, mas sei que vai ser importante. Talvez mais do que a gente consiga imaginar agora.
Lizbeth ouviu sem interromper, os dedos tamborilando levemente na xícara.
- Você confia nessa visão?
- Com tudo o que eu tenho - respondeu Mabel, sem hesitação. - Eu decidi acolhê-la. Senti que ela precisava de um lugar seguro, de alguém que a preparasse para o que tá por vir.
- E pensou logo em mim?
- Pensei na Casa Netherheart - corrigiu Mabel, com firmeza. - Pela estrutura, pela tradição, mas também porque eu confio em vocês. Eu sei que aqui ela pode aprender o que precisa: combate, estratégia, postura, etiqueta. E eu queria pedir isso a você e à Clemearl. Que a acolham, a orientem... e a protejam.
Lizbeth ficou em silêncio por um instante. Depois, recostou-se na poltrona, observando a garota diante de si com um olhar mais contido.
- Quando você chegou aqui, era só uma menininha tentando entender o que era diplomacia. Agora tá me pedindo pra treinar uma peça-chave do futuro do reino. É... as coisas mudam mesmo.
- Ainda sou uma menininha tentando entender o sobre diplomacia, sinceramente, isso tudo é muito complicado. - disse Mabel, meio sem graça, mas com sinceridade.
Lizbeth riu com suavidade, deixando a tensão escapar pelos ombros.
- Tá bom. Vou conversar com a Clemearl. Mas pode considerar aceito. Se essa garota é tão importante quanto você diz, ela vai ter o melhor que podemos oferecer. E também vai ralar como nunca.
Mabel sorriu, aliviada.
- Obrigada, Lizbeth. De verdade.
BOOOOM.
As paredes tremeram. O chão vibrou sob os pés como se algo tivesse estalado dentro da terra. Depois, o som dos gritos. Próximos. Urgentes. Reais.
Lizbeth se levantou num salto, os olhos firmes e sérios de um segundo para o outro. Mabel congelou por um instante antes de correr até a janela. A fumaça subia de uma das ruas centrais. Gente correndo, carregando crianças, derrubando barracas.
- O que foi isso? - perguntou Mabel, mas a resposta não veio.
Do lado de fora, os guardas já gritavam ordens. Sons de ferro, cascos e caos.
E então o foco se desfez. O som dos gritos foi engolido por outra cena, em outra parte da cidade.
No topo de uma torre antiga, afastada do centro, dois vultos observavam a confusão.
Um deles, de chapéu inclinado e cabelos loiros penteados, sorria com um canto da boca. Seu olhar era relaxado, assim como sua postura. Ele tirou um pequeno pirulito do bolso e o jogou pra cima, pegando com a boca como se nada mais importasse.
- Hm... bem no horário - murmurou.
Ao lado dele, o outro apoiava-se no parapeito. Tinha cabelos negros compridos, o sorriso aberto e estranho. Passava lentamente o dorso de uma faca entre os lábios, com um olhar de puro divertimento.
- Ei, Sekai - disse o do cabelo longo -, olha só eles correndo! Isso sim é recepção!
O loiro, Sekai, respondeu:
- Acabou de começar True.
- Eu sei!- gritou o outro, gargalhando - E eu nem comecei a me divertir!
Então True saltou da borda da torre, rindo, os braços abertos como quem mergulha.
Sekai ajeitou o chapéu, observou a cidade por mais alguns segundos e depois o seguiu.
Umbralis estava sob ataque.