O Castelo Perdido Parte 1

— Aposto cinco moedas que ela acorda antes do almoço — murmurou Delta, com os olhos semicerrados, como se estivesse analisando uma criatura rara num laboratório.

— Você disse isso ontem. E anteontem. E antes de ontem. — Esther revirou os olhos. — Apostar sempre a mesma coisa não te faz parecer mais confiante, só burro.

— Só burro? Que palavras fortes pra alguém que ainda dorme com um boneco do Ventoleta. — Ele estufou o peito, triunfante.

— Ele é um amuleto mágico de proteção!

— Ele fede a lavanda vencida e grita “te amo” quando aperta.

— É feitiço de vínculo espiritual!

— É feitiço de carência crônica.

Enquanto os dois trocavam farpas, Mabel, deitada de olhos fechados, resistia com todas as forças para não rir. Já estava acordada havia alguns minutos e tinha decidido observar a comédia local que se apresentava bem em cima de sua barriga. Literalmente.

Esses dois deviam estar em um circo... ou numa jaula.

— Se ela acordar antes do almoço, você limpa o estábulo por três dias — disse Esther, inclinando-se para encarar Delta.

— Fechado! Mas se ela acordar depois, você vai ter que me chamar de “Delta-sama” até o fim da semana.

— No dia que isso acontecer, o sol vai nascer quadrado!

— Ei... — a voz soou rouca, mas carregada de ironia. — Apostas feitas sobre mim sem pagar comissão? Que tipo de tratamento é esse com a realeza?

— AAAAAAAAAAAAAH!!! — gritaram os dois em uníssono, saltando da cama como se tivessem encostado num raio.

Esther tropeçou na beirada do tapete e caiu de bunda. Delta bateu o ombro na cômoda e deixou cair um vasinho no chão, que se espatifou.

— Cês acham mesmo que dá pra cochichar com bafo de dragão na minha cara e eu não perceber? — disse Mabel, sentando-se lentamente na cama. — Delta, querido, seu hálito tava invocando um espírito de alho.

— N-não é bafo! É... aura! Aura... protetora! — disse ele, corando.

— E você, Esther... amuleto espiritual? Jura mesmo? O bonequinho gritou “vem cá, meu bombonzinho” enquanto eu tentava sobreviver a uma luta.

Esther ficou tão vermelha que parecia uma framboesa prestes a explodir.

— ISSO É MÁGICA AVANÇADA DE VÍNCULO EMOCIONAL, SUA BRUXA SEM CORAÇÃO!

— Bruxa sem coração? Poxa... Obrigada. Sempre quis um apelido de vilã charmosa. — Mabel piscou para ela. — Mas bom saber que acordar traumatizada gera entretenimento de qualidade.

Antes que as crianças pudessem rebater, a porta do quarto se abriu com um rangido elegante. Um homem alto, de presença imponente, entrou. Seu cabelo escuro bem cortado, a barba rente e o uniforme azul-escuro com insígnias douradas deixavam claro que não era qualquer um. A espada em suas costas parecia mais uma extensão de sua autoridade.

— Ora, ora. Pelo visto, a recuperação veio acompanhada de caos. Como sempre.

Delta e Esther correram para o lado do homem.

— Pai! — disse Delta, com um sorriso largo.

— Tio Bizar! — cumprimentou Esther.

— Capitão Bizar... — disse Mabel, erguendo uma sobrancelha. — Achei que tivesse se aposentado e virado modelo de calendário militar.

— E eu achei que você tinha morrido, mas cá estamos — respondeu ele, com um leve sorriso. — Já me acostumei com sua língua afiada. Ainda mais afiada que a de Lizbeth.

— Bom, alguém tem que compensar o bom humor que vocês todos perderam com a idade. — Ela sorriu, mas logo se apoiou nos joelhos para se levantar. — Ai... mas meu corpo não compartilha do sarcasmo hoje.

— Força, Alteza. Você passou por muita coisa. Ferme, Lizbeth e Clemearl já estão na sala de controle. Esperávamos que você acordasse a tempo.

Mabel ajeitou o cabelo com um gesto automático e olhou para Bizar.

— Se vocês estavam esperando mesmo, podiam ter deixado café. Ou um massagista real.

— Achei que preferiria silêncio. Mas posso providenciar o massagista. Quer que seja bonito ou eficiente?

— Os dois. E que seja imune a crianças tagarelas.

— Aí já pediu milagre — respondeu ele, fazendo um gesto para que o caminho fosse liberado.

Delta e Esther continuaram observando Mabel, agora um pouco mais respeitosos (e provavelmente com medo de novas zoeiras públicas).

— Tchau, majestade traumatizada — disse Delta, já correndo para fora.

— Cuida da sua coroa! Ela parece pesada demais pra sua autoestima — acrescentou Esther.

— Foquem nos estudos ou vou pedir pra Lizbeth deixar vocês fazendo flexão com a língua — retrucou Mabel, saindo pela porta ao lado de Bizar.

— Você sempre teve jeito com crianças — comentou ele, rindo baixo.

— Claro. Do mesmo jeito que um gato tem jeito com ratos.

Os dois seguiram pelos corredores, deixando para trás o quarto.

A porta da sala de controle se abriu com um leve rangido e, antes mesmo que alguém se virasse, uma voz animada preencheu o ambiente:

— Pera aí... vocês tão falando de artefato desconhecido encontrado nas ruínas do antigo castelo de Axo e não me chamaram?!

Todos se viraram. Mabel surgiu no batente da porta, ainda com o uniforme de descanso, mas com os olhos brilhando como se tivesse acabado de acordar no meio de um festival arqueológico.

— Vocês têm noção de que isso é tipo... a maior descoberta histórica dos últimos séculos?! Castelo de Axo, antes da fundação do reino?! Isso é coisa dos meus ancestrais! Vocês estão me dizendo que teve artefato envolvido nisso tudo e eu quase perdi porque tava desmaiada?

Clemearl cruzou os braços, sem esboçar reação. Lizbeth trocou um olhar rápido com Ferme, que apenas deu um leve sorriso de canto. Mabel entrou na sala, olhando o holograma do artefato com uma reverência quase religiosa.

— Isso é... isso é lindo. Olha essas runas... são completamente alienígenas aos sistemas mágicos modernos. Talvez nem sejam da vertente mágica comum. Vocês já tentaram comparar com registros antigos de fora do continente? Lingua elfica, talvez? Ou a lingua mágica dos anões?

— Mabel — interrompeu Clemearl, com voz firme. — Respira.

Ela deu uma risada curta. — Tá, tá. Já parei. Mas vocês têm que me prometer que vou participar de toda análise disso aí.

Ferme se apoiou na parede, com um leve aceno. — Se sobrar algo pra analisar depois do que aqueles três pretendem fazer com isso...

Mabel então olhou para os três, voltando ao assunto com mais sobriedade. Sua voz perdeu o tom brincalhão, ficando mais calma.

— Quando a Aiko apareceu... ela me olhou de um jeito estranho. Não foi só arrogância ou ameaça, sabe? Foi desprezo. Nojo, até. Como se só o fato de eu existir já fosse um insulto. Eu... não entendi aquilo. Mas me deixou desconfortável.

— Ela é perigosa — comentou Clemearl, séria. — E provavelmente tem motivos pessoais pra odiar a você, só não estão claros ainda.

Mabel assentiu lentamente, ainda observando a imagem do artefato.

— Talvez entender isso aí ajude a entender ela também.

Clemearl, Lizbeth e Ferme trocaram um rápido olhar.

Clemearl ajustou a tela diante de si e cruzou os braços, seu semblante firme.

— Agora que reunimos todas as informações… acho que está claro o suficiente. Ferme. Mabel. Quero que retornem para casa.

O tom era definitivo.

— Esse é um assunto de extrema seriedade, e não há mais razão para vocês continuarem envolvidos. A inquilina que Mabel sugeriu na Casa Netherheart já foi aprovada. Vocês não têm mais obrigações aqui.

Mabel imediatamente se jogou contra a cadeira mais próxima, soltando um longo suspiro.

— Ah, não… lá vem ela de novo com esse papo de “vai pra casa, criança”... — murmurou com os olhos revirando. — Eu acabei de acordar de um colapso mágico, sobrevivi a uma maldita guerra de ilusões, venci um lunático que conjura labirintos mentais, e agora que ficou interessante vocês querem me colocar de volta no sofá com chá de camomila?

— Mabel… — Clemearl tentou, mas Mabel se levantou abruptamente, apontando para a projeção do artefato.

— Isso não é só sobre quem vai limpar a bagunça! Isso é história viva, mágica antiga, artefatos de 500 anos atrás ligados ao fundador de Axo! Eu preciso estar nisso! Eu já tô nisso!

Ferme, que até então mantinha o olhar neutro e os braços cruzados, ergueu a voz pela primeira vez desde o início da conversa.

— Ela tem razão.

Todos se viraram para ele, surpresos.

— Mesmo que normalmente eu discorde de quase tudo que ela diz... — ele lançou um olhar rápido para Mabel, que sorriu com orgulho — ...dessa vez, ela provou que pode contribuir. O combate contra Sekai foi prova disso. E se isso vai se estender além das fronteiras, precisamos de pessoas com experiência direta. Se for necessário, mandem um Cavaleiro das Dez Divisões conosco para reforçar.

Clemearl olhou para Ferme por longos segundos, depois para Mabel, que já estava praticamente vibrando com a esperança reacendida.

Bizar deu um passo à frente, os braços cruzados com imponência, mas o semblante serio.

— Gosto da coragem dele. Deixe-os ir. Você sabe tão bem quanto eu que segurar gente como eles nunca funciona por muito tempo.

Lizbeth então se aproximou um pouco mais da mesa de comando e falou, seu tom mais prático:

— E além disso, Clemearl… precisamos de todas as mãos que pudermos para reconstruir a cidade, proteger os vilarejos ao redor, reorganizar as tropas. O foco daqui em diante precisa estar no povo. Mabel e Ferme podem ajudar mais lá fora do que aqui dentro.

Houve um silêncio breve.

Clemearl suspirou, massageando as têmporas.

— Hm… há um Cavaleiro do Quarteto Especial por perto. Podemos destacá-lo para acompanhar vocês.

Mabel ergueu uma sobrancelha.

— Quarteto Especial? — ela deu uma gargalhada curta. — Vocês ainda chamam eles assim?! Quarteto Bobo seria mais apropriado.

Ferme olhou de lado, tentando conter o riso.

— Quero dizer — Mabel continuou com um sorriso debochado — Nidaime, Yonji, Sophia e Piper acabaram de se formar da Academia. Só porque passaram com notas altas e têm estilos diferentes, agora são “especiais”? Isso não tem sentido!

— Mabel… — Clemearl ameaçou com o tom seco.

— Tá, tá, eu aceito o apoio. Mas se um deles desmaiar no primeiro susto, não me responsabilizo. — Ela ergueu as mãos como se jurasse inocência, o sorriso ainda presente.

Mesmo com o clima tenso do momento, até Lizbeth teve que disfarçar um sorriso.

Mais tarde, já nos portões de Umbralis…

— Não. Não, não, não… — Ferme murmurava como um mantra de desespero.

Lá estava ele.

O mesmo carroceiro da última vez. Aquela figura idosa, barba longa, chapéu torto, sempre com a mesma cara de quem viu coisa demais. A carroça velha gemia só de estar parada. E o cavalo parecia carregar traumas.

— VOCÊ DE NOVO?! — Ferme deu um passo pra trás. — Não tem outra carroça na cidade inteira? Um jegue com rodinhas? Um trenó com fogo mágico? Qualquer coisa?

— Ué, qual o problema? — Mabel perguntou subindo com a maior naturalidade do mundo.

O velho apenas sorriu.

— Relaxa, garoto. Só bati sete vezes em meu 1 ano de carreira. E vocês ainda estão respirando, né?— falou com um tom calmo, como se isso fosse algo positivo.

Ferme encarou ele com puro terror.

— SETE VEZES?! — Nidaime soltou ao lado, dando dois passos pro lado. — Você colocou a gente numa carroça com um motorista que bateu SETE VEZES?

— Em 1 ano — corrigiu o velho com calma, colocando a mão no peito. — Tenho um histórico ótimo.

Mabel já estava rindo, quase se jogando no banco da frente.

— Ah, para, foi uma aventura. Eu quase bati a cabeça e morri, mas foi divertido! Excelente média.

Ferme olhava pra ela incrédulo.

— Você é maluca… — murmurou subindo com toda a desconfiança do mundo.

Clemearl, com cara de que já estava ficando de saco cheio daquela cena, se aproximou de Nidaime e entregou a ele um pequeno orbe mágico com moldura de prata.

— Nidaime, esse orbe é pra emergências. — falou em tom sério. — Confio a segurança da Princesa Mabel e do Ferme a você. Sei que vocês são quase da mesma idade, mas você foi treinado como um sargento. Você lidera essa missão.

— Pode deixar, chefa. — respondeu ele, agora um pouco mais centrado. — Nada vai sair do controle. Se sair, o orbe grita por mim.

Lizbeth se aproximou ao lado.

— E, caso algo aconteça, nos avise imediatamente. Vamos estar de prontidão por aqui.

— Entendido. — ele disse com firmeza, guardando o orbe dentro do casaco branco estiloso.

Ferme cruzou os braços ainda nervoso. Mabel chutava o ar com as pernas, impaciente.

O carroceiro subiu na frente, ajeitou o banco, deu uma cuspida no chão e estalou os dedos.

— Partiu, jovens! Hora de mais uma viagenzinha tranquila…

— Tranquila o cacete! — Ferme retrucou se agarrando na lateral da carroça.

O cavalo deu um passo.

A carroça rangeu.

E lá foram eles, sumindo aos poucos pela estrada de terra, rumo ao castelo abandonado.