Mais tarde, já nos portões de Umbralis…
— Não. Não, não, não… — Ferme murmurava como um mantra de desespero.
Lá estava ele.
O mesmo carroceiro da última vez. Aquela figura idosa, barba longa, chapéu torto, sempre com a mesma cara de quem viu coisa demais pra discutir. A carroça velha gemia só de estar parada. E o cavalo parecia carregar traumas.
— VOCÊ DE NOVO?! — Ferme deu um passo pra trás. — Não tem outra carroça na cidade inteira? Um jegue com rodinhas? Um trenó? Qualquer coisa?
— Ué, qual o problema? — Mabel perguntou subindo com a maior naturalidade do mundo.
O velho apenas sorriu.
— Relaxa, garoto. Só bati sete vezes em 1 ano de carreira. E vocês ainda estão respirando, né? — falou com um tom calmo, como se isso fosse algo positivo.
Ferme encarou ele com puro terror.
— SETE VEZES?! — Nidaime soltou ao lado, dando dois passos pro lado. — Você colocou eles numa carroça com um motorista que bateu SETE VEZES?
— Na vida toda. — corrigiu o velho com calma, colocando a mão no peito. — Tenho um histórico ótimo.
Mabel já estava rindo, quase se jogando no banco da frente.
— Ah, para, foi uma aventura. Eu quase bati a cabeça e morri só três vezes. Excelente média!
Ferme olhava pra ela incrédulo.
— Você é maluca… Nem ele sabe se foi em 1 ano de carreira ou na vida toda — murmurou subindo com toda a desconfiança do mundo.
Clemearl, com cara de que já estava ficando de saco cheio daquela cena, se aproximou de Nidaime e entregou a ele um pequeno orbe mágico com moldura de prata.
— Nidaime, esse orbe é pra emergências. — falou em tom sério. — Confio a segurança da Princesa Mabel e do Ferme a você. Sei que vocês são quase da mesma idade, mas você foi treinado como um sargento. Você lidera essa missão.
— Pode deixar, chefa. — respondeu ele, agora um pouco mais centrado. — Nada vai sair do controle. Se sair, o orbe grita por mim.
Lizbeth se aproximou ao lado.
— E, caso algo aconteça, nos avise imediatamente. Vamos estar de prontidão por aqui.
— Entendido. — ele disse com firmeza, guardando o orbe dentro do casaco branco estiloso.
Ferme cruzou os braços ainda nervoso. Mabel chutava o ar com as pernas, impaciente.
O carroceiro subiu na frente, ajeitou o banco, deu uma cuspida no chão e estalou os dedos.
— Partiu, jovens! Hora de mais uma viagenzinha tranquila…
— Tranquila o cacete! — Ferme retrucou se agarrando na lateral da carroça.
O cavalo deu um passo.
A carroça rangeu.
E lá foram eles, sumindo aos poucos pela estrada de terra, rumo ao castelo abandonado de Ursoft.
Desta vez, o céu azul pôde brilhar.
A carroça seguia firme pela estrada de terra batida, e, surpreendentemente, o mesmo carroceiro excêntrico da viagem anterior — com seu sorriso torto e ar de quem já venceu a própria morte num jogo de dados — estava dirigindo de forma... surpreendentemente calma. Nenhum cavalo possuído pelo demônio. Nenhum salto sobre penhascos. Só o som das rodas e dos pássaros.
Ferme estava sentado com o corpo reto, braços cruzados e os olhos atentos no horizonte. Parecia pronto pra pular da carroça ao menor sinal de loucura.
— Relaxa, Ferme. Se ele tivesse que causar um acidente, já tinha feito, né? — disse Mabel, deitada no canto da carroça, braços atrás da cabeça.
— O problema é que ele ainda tem tempo — Ferme respondeu, olhando torto pro velho lá na frente.
— Vocês têm que aprender a confiar no destino! — Nidaime falou com seu típico sorriso despreocupado, ajeitando o chapéu esquisito na cabeça e equilibrando um palito de madeira nos lábios.
— Confiança no destino é o primeiro passo pra acabar esmagado por um javali voador. — Ferme rebateu, sério.
— Aí que tá! Se o javali for gigante, pode ser uma experiência inesquecível. — respondeu Nidaime com entusiasmo.
A viagem, no entanto, foi tranquila por algumas boas horas. O clima estava ameno, o sol filtrava entre as árvores, e pequenos vilarejos podiam ser vistos ao longe. Mabel se encantava com o cenário: borboletas coloridas, riachos cintilantes, e até uma raposa de duas caudas cruzando a estrada em silêncio.
— Isso tá me dando uma vibe de livro de contos antigos. — disse Mabel, olhos brilhando. — Só falta um espírito da floresta aparecer oferecendo enigmas.
— E aí você aceitaria sem pensar duas vezes, né? — Ferme comentou, arqueando uma sobrancelha.
— Óbvio. E perder essa chance?
Horas depois, o céu começou a se tingir com o laranja do fim de tarde. Uma placa torta e desbotada surgiu adiante, escrita à mão em madeira gasta: "Irontask".
A vila era pequena, charmosa à sua maneira, com casas de pedra e madeira escura, ruas de paralelepípedo e um cheiro constante de sopa vindo de algum lugar.
A carroça parou em frente à estalagem “Panela de Pedra”, onde uma senhora de braços largos, expressão severa e um pano jogado no ombro os observava com olhos de águia.
— Nidaime. — disse a mulher, com um tom que misturava familiaridade com ameaça. — Achei que você tinha sido expulso da última vez.
— Tilma! Como sempre, radiante como uma tocha em chamas! — disse ele, abrindo os braços. — Eu trouxe companhia importante dessa vez!
Tilma olhou para Mabel e Ferme com desconfiança. Antes que a mulher começasse a resmungar, Mabel se adiantou com um sorriso diplomático e puxou um broche reluzente em forma de estrela cadente de dentro da túnica.
— Mabel Abyssis. Da casa Abyssis, família nobre de Axoland. — disse com um leve aceno de cabeça. — Estou em missão oficial. E com fome oficial também.
Tilma cruzou os braços, arqueando uma sobrancelha.
— Princesa ou não, se deixar farelo de pão no chão, vai esfregar com a escova do banheiro.
— Justíssimo. — respondeu Mabel, entrando com um sorrisinho travesso.
Ferme apenas fez uma reverência discreta e seguiu em silêncio. Tilma o observou um pouco mais antes de bufar, como quem aprova com relutância.
Mais tarde, os três se encontraram na pequena sala de refeições. A lareira crepitava num canto, e uma sopa espessa fumegava em tigelas de barro. O cheiro era tão bom que até Ferme relaxou os ombros.
— Tá vendo? Ninguém morreu, ninguém voou da carroça. — disse Mabel, enchendo a colher. — E ainda ganhamos sopa quente.
— Ainda falta o castelo. — Ferme retrucou — A parte mais complicada vem agora.
— A parte mais épica. — corrigiu Nidaime, erguendo sua caneca. — Pela missão!
— Pela comida! — Mabel completou.
— E pela ausência do Yonji. — ela adicionou com um sorriso aliviado. — Graças aos céus que não foi ele o enviado. Aquele maluco tem a delicadeza de uma bomba.
— E a Sophia? — Nidaime perguntou com um olhar enviesado.
— Eu queria que fosse a Sophia… — Mabel suspirou. — Ela é tão fofa. Uma pena.
Ferme tomou um gole da sopa com um sorriso discreto no canto dos lábios.
Nidaime piscou pra ele.
— E você, Ferme? Animado pra explorar um castelo amaldiçoado com dois malucos e um velho psicopata dirigindo?
— Não é como se eu tivesse escolha. — ele respondeu, mas o tom tinha uma leveza rara.
Após a janta, Tilma conduziu pessoalmente Mabel até o andar superior da estalagem. Abriu uma porta dupla com ferragens douradas e estendeu o braço com pompa.
— Aqui, Alteza. O melhor quarto da vila. — disse com um sorriso meio torto, que podia ou não ser sarcasmo.
Mabel entrou e deu de cara com um quarto absurdamente pomposo para uma pousada daquele tamanho: cama de dossel com lençóis de cetim dourado, almofadas demais para contar, cortinas bordadas à mão e até um quadro pintado (mal) de alguém que parecia um gato nobre.
— Uau… Isso aqui parece o esconderijo secreto de uma baronesa falida. Eu adorei. — ela comentou, pulando na cama com um plof.
Tilma pigarreou com orgulho.
— Verifiquei o broche. É legítimo. Achei que devia tratá-la como merece. — depois olhou de soslaio. — Os outros dois foram pro quarto de sempre.
No fim do corredor, Nidaime empurrou uma porta de madeira rangente e revelou o que só poderia ser descrito como o quarto-reserva que até ratos evitavam. Uma cama de palha meio torta, uma cadeira manca, e uma janela que não abria… provavelmente por medo do que podia entrar.
— Ah… o bom e velho Quarto do Desespero — comentou Nidaime, jogando o chapéu na cadeira com a confiança de quem já dormiu em piores.
Ferme entrou logo atrás, olhando em volta com cara de quem analisava o campo de batalha.
— A cama tem cupins. — constatou.
— Eles têm nome. — respondeu Nidaime, sério por dois segundos antes de cair na risada.
Ferme soltou um suspiro e começou a tirar a capa, sentado no canto mais seguro do chão.
— Então… — começou Nidaime, encostando-se à parede de pedra com os braços cruzados. — Você e a Mabel.
Ferme olhou pra ele, sério.
— O quê?
— É só que… ela tá sempre colada em você. E você deixa. Ela grita, ri, fala pelos cotovelos e ainda assim você tá sempre ali, ouvindo tudo. Qual é?
Ferme desviou o olhar, com aquele clássico ar de “não é da sua conta”.
— Estamos em missão. — disse, seco. — Eu só a acompanho.
— Missão, aham. Claro. — Nidaime fingiu anotar algo no ar. — Acompanhamento real com direito a bronca quando ela se joga em combate e olhares de “Mabel, não faça isso”. Pura logística.
Ferme apertou os olhos, tentando ignorar, mas Nidaime continuou, sorrindo.
— Ela confia em você. Dá pra ver. Não é só porque você é forte… tem alguma coisa aí. Vocês cresceram juntos?
Ferme encarou o teto por um segundo, como se buscasse paciência lá nas estrelas.
— Ela é... difícil de ignorar. — disse por fim.
Nidaime ergueu as sobrancelhas.
— Isso é o mais próximo de “ela é importante pra mim” que eu vou ouvir hoje?
Ferme bufou, se levantando com um olhar cansado.
— Boa noite, Nidaime.
— Boa noite, futura Vossa Majestade. — disse ele com um sorriso malandro.
Ferme travou por meio segundo, mas não respondeu. Só apagou a luz com um sopro e se deitou na cama de palha, que rangeu em protesto.
No quarto ao lado, Mabel já roncava, enfiada entre almofadas demais, sonhando com castelos antigos, raposas de duas caudas e — talvez — um certo irmão de Mark.
E assim, a vila de Irontask mergulhou no silêncio da noite.
O dia ainda nem tinha esquentado direito quando Tilma apareceu na porta do quarto de Mabel, batendo com urgência.
— Senhorita Mabel! Perdão pela intromissão, mas precisamos da sua ajuda!
Mabel, enrolada em um manto de linho com bordados luxuosos, piscou com preguiça.
— Tilma, se você disser que o café esfriou, juro que volto a dormir.
— É o poço da vila, senhorita! A corda rompeu, o balde caiu lá no fundo, e não temos mais como puxar água. O ferreiro tentou ajudar e quase caiu junto. Tá todo mundo meio em pânico...
Minutos depois, Mabel, Ferme e Nidaime estavam na praça da vila, diante do poço. Um círculo de moradores se reunia ao redor, murmurando preocupados, enquanto o ferreiro, com a perna enfaixada, contava sua tentativa de herói frustrado.
Ferme observava a cena com os braços cruzados e o olhar sério.
— Não temos tempo pra isso. — resmungou ele, direto.
— Concordo. Temos prioridades mais urgentes. — completou Mabel, ajeitando a faixa no cabelo.
— Tsc, tsc, tsc… — Nidaime balançou o dedo como quem repreende duas crianças teimosas. — Vossas majestades estão muito frias hoje.
Mabel arqueou uma sobrancelha.
— Majestades?. — Ela corou, envergonhada, lançando um olhar de quem queria se esconder do mundo.
Ferme desviou o olhar imediatamente, fingindo observar as nuvens como se fossem as mais interessantes do mundo.
Nidaime se aproximou do poço, agachou-se e olhou lá dentro com atenção. Depois de alguns segundos, tirou os braceletes, enrolou as mangas e soltou seu típico sorriso tranquilo.
— Sabem, antes de me tornar cavaleiro, eu ajudava meu avô a consertar coisas assim. Poços, cercas, telhados... Ele dizia que as pequenas ajudas moldam grandes corações.
— Essa história é real mesmo? — perguntou Mabel, desconfiada.
— Talvez sim, talvez não. Mas é uma boa história, não é?
Com ajuda de um aldeão, Nidaime improvisou uma nova corda com gancho, fez um arremesso calculado e, com um puxão firme, trouxe o balde de volta à superfície.
O povo aplaudiu. Uma senhora jogou uma flor nele. Ele pegou no ar, girando como se estivesse num baile.
— Água para todos! Serviço completo, entrega rápida.
— Você ainda é um palhaço. — comentou Mabel, sem esconder um meio sorriso.
— Um palhaço com habilidades úteis. — respondeu Nidaime, colocando a flor no bolso.
Mabel cruzou os braços, sorrindo também.
— Confesso que fico um pouco menos irritada de ter saído da cama agora.
— Tá vendo? Heroísmo começa com um balde. — disse Nidaime, piscando. — Agora sim, podemos comer e partir. Não temos pressa, né?
Eles voltaram para a pousada sob um céu limpo, com a brisa balançando as árvores e os aldeões agradecendo mil vezes.
A tarde se estendia tranquila por Irontask. O vilarejo era pequeno, mas aconchegante, com suas casas de madeira enfileiradas como peças de um tabuleiro antigo. Era o tipo de lugar onde o tempo parecia tirar um cochilo depois do almoço.
Na cozinha da pousada, Nidaime estava de avental, mexendo uma panela como se estivesse preparando a refeição do século.
— Tilma, me empresta mais daquelas ervas misteriosas que tu guarda num pote sem rótulo?
— Aquelas são só hortelã, Nidaime… — disse ela, erguendo uma sobrancelha. — E não põe canela no caldo de novo, hein!
— Calma, calma! Aprendi com meus erros… só um pouquinho dessa vez.
— Um pouquinho do teu tipo já matou dois gatos e meio da outra vez — bufou Tilma, mas já sorrindo.
Do lado de fora, Mabel estava cercada por um grupo de crianças curiosas. Vestia um vestido simples, mas pra elas ela parecia uma boneca viva, saída de alguma história de ninar.
— É verdade que você tem cem criados? — perguntou uma guria de sardas, arregalando os olhos.
— Cem? Céus, não! — Mabel disse, com uma expressão fingida de escândalo. — Só oitenta. Noventa se contar os que varrem o jardim e alimentam os pombos reais.
As crianças riram. Um dos meninos apontou pro broche cintilante preso ao vestido dela.
— Isso é de verdade?
— Claro que é. Ganhei no meu batizado. Dizem que brilha mais se tu não tiver mentido no dia. — Ela olhou pro broche, depois pras crianças, teatralmente. — Ih... acho que alguém aqui não escovou os dentes ontem!
As crianças explodiram em gargalhadas. Um menino gritou:
— Apanhei da escova, isso conta?
Logo estavam todos correndo ao redor da praça. Mabel brincava de esconde-esconde, pegava bandeira e até se fingiu de estátua quando um dos pequenos chegou muito perto.
Enquanto isso, Ferme se sentava perto da forja do vilarejo, observando com atenção o trabalho de um ferreiro local.
— Bela lâmina que carrega, rapaz. — comentou o ferreiro, enxugando o suor da testa.
Ferme retirou a espada das costas com cuidado e a entregou, com um sorriso sincero.
— Foi forjada por um artesão chamado Atlas. Um dos Rokusei de Axoland.
O ferreiro arregalou os olhos.
— O Atlas? Não brinca. Já ouvi histórias demais sobre ele... sempre achei que fossem exagero.
— Algumas são. Mas outras, nem tanto. — Ferme falou com leveza. — Essa aqui foi presente de aniversário. Ele disse que uma boa espada precisa aprender a ouvir o dono… e que essa era bem teimosa.
O ferreiro soltou uma risada.
— Tu parece daqueles que sabe conversar com aço. Se quiser afiar, é por minha conta.
— Gentileza tua. Eu aceito.
Na cozinha, Nidaime colocava pratos sobre a mesa com exagero teatral.
— Senhoras e senhores! Apresento-lhes o “Ensopado de Arrependimento”, criado para compensar os eventos da minha última estadia aqui… — ele fez uma pausa dramática. — ...quando fui mordido por um cachorro no tornozelo e, sem querer, virei a panela principal da Tilma em cima do balcão.
— Não foi sem querer, tu pulou em cima da mesa! — Tilma gritou da outra sala.
— Autodefesa! Eu vi a vida passar pelos meus olhos, e era cheia de dentes.
Mabel voltou ainda com folhas no cabelo, duas crianças agarradas às pernas.
— Se esse ensopado for tão bom quanto tua desculpa, talvez eu perdoe tuas aventuras anteriores, cavaleiro.
— Princesa Mabel, espero conquistar teu paladar com fervor e uma pitada de orgulho.
— Menos orgulho e mais batata, Nidaime. — respondeu, sentando-se com as crianças. — Eles são meus convidados agora.
Ferme voltou do lado de fora, ainda com um brilho calmo no olhar.
E ali, sob luz amarelada de lamparinas e entre gargalhadas, ensopado e histórias mal contadas, os três descansaram seus corpos… e esqueceram por uma noite os perigos da estrada.
Mais tarde, já nos portões de Umbralis…
— Não. Não, não, não… — Ferme murmurava como um mantra de desespero.
Lá estava ele.
O mesmo carroceiro da última vez. Aquela figura idosa, barba longa, chapéu torto, sempre com a mesma cara de quem viu coisa demais pra discutir. A carroça velha gemia só de estar parada. E o cavalo parecia carregar traumas.
— VOCÊ DE NOVO?! — Ferme deu um passo pra trás. — Não tem outra carroça na cidade inteira? Um jegue com rodinhas? Um trenó? Qualquer coisa?
— Ué, qual o problema? — Mabel perguntou subindo com a maior naturalidade do mundo.
O velho apenas sorriu.
— Relaxa, garoto. Só bati sete vezes em 1 ano de carreira. E vocês ainda estão respirando, né? — falou com um tom calmo, como se isso fosse algo positivo.
Ferme encarou ele com puro terror.
— SETE VEZES?! — Nidaime soltou ao lado, dando dois passos pro lado. — Você colocou eles numa carroça com um motorista que bateu SETE VEZES?
— Na vida toda. — corrigiu o velho com calma, colocando a mão no peito. — Tenho um histórico ótimo.
Mabel já estava rindo, quase se jogando no banco da frente.
— Ah, para, foi uma aventura. Eu quase bati a cabeça e morri só três vezes. Excelente média!
Ferme olhava pra ela incrédulo.
— Você é maluca… Nem ele sabe se foi em 1 ano de carreira ou na vida toda — murmurou subindo com toda a desconfiança do mundo.
Clemearl, com cara de que já estava ficando de saco cheio daquela cena, se aproximou de Nidaime e entregou a ele um pequeno orbe mágico com moldura de prata.
— Nidaime, esse orbe é pra emergências. — falou em tom sério. — Confio a segurança da Princesa Mabel e do Ferme a você. Sei que vocês são quase da mesma idade, mas você foi treinado como um sargento. Você lidera essa missão.
— Pode deixar, chefa. — respondeu ele, agora um pouco mais centrado. — Nada vai sair do controle. Se sair, o orbe grita por mim.
Lizbeth se aproximou ao lado.
— E, caso algo aconteça, nos avise imediatamente. Vamos estar de prontidão por aqui.
— Entendido. — ele disse com firmeza, guardando o orbe dentro do casaco branco estiloso.
Ferme cruzou os braços ainda nervoso. Mabel chutava o ar com as pernas, impaciente.
O carroceiro subiu na frente, ajeitou o banco, deu uma cuspida no chão e estalou os dedos.
— Partiu, jovens! Hora de mais uma viagenzinha tranquila…
— Tranquila o cacete! — Ferme retrucou se agarrando na lateral da carroça.
O cavalo deu um passo.
A carroça rangeu.
E lá foram eles, sumindo aos poucos pela estrada de terra, rumo ao castelo abandonado de Ursoft.
Desta vez, o céu azul pôde brilhar.
A carroça seguia firme pela estrada de terra batida, e, surpreendentemente, o mesmo carroceiro excêntrico da viagem anterior — com seu sorriso torto e ar de quem já venceu a própria morte num jogo de dados — estava dirigindo de forma... surpreendentemente calma. Nenhum cavalo possuído pelo demônio. Nenhum salto sobre penhascos. Só o som das rodas e dos pássaros.
Ferme estava sentado com o corpo reto, braços cruzados e os olhos atentos no horizonte. Parecia pronto pra pular da carroça ao menor sinal de loucura.
— Relaxa, Ferme. Se ele tivesse que causar um acidente, já tinha feito, né? — disse Mabel, deitada no canto da carroça, braços atrás da cabeça.
— O problema é que ele ainda tem tempo — Ferme respondeu, olhando torto pro velho lá na frente.
— Vocês têm que aprender a confiar no destino! — Nidaime falou com seu típico sorriso despreocupado, ajeitando o chapéu esquisito na cabeça e equilibrando um palito de madeira nos lábios.
— Confiança no destino é o primeiro passo pra acabar esmagado por um javali voador. — Ferme rebateu, sério.
— Aí que tá! Se o javali for gigante, pode ser uma experiência inesquecível. — respondeu Nidaime com entusiasmo.
A viagem, no entanto, foi tranquila por algumas boas horas. O clima estava ameno, o sol filtrava entre as árvores, e pequenos vilarejos podiam ser vistos ao longe. Mabel se encantava com o cenário: borboletas coloridas, riachos cintilantes, e até uma raposa de duas caudas cruzando a estrada em silêncio.
— Isso tá me dando uma vibe de livro de contos antigos. — disse Mabel, olhos brilhando. — Só falta um espírito da floresta aparecer oferecendo enigmas.
— E aí você aceitaria sem pensar duas vezes, né? — Ferme comentou, arqueando uma sobrancelha.
— Óbvio. E perder essa chance?
Horas depois, o céu começou a se tingir com o laranja do fim de tarde. Uma placa torta e desbotada surgiu adiante, escrita à mão em madeira gasta: "Irontask".
A vila era pequena, charmosa à sua maneira, com casas de pedra e madeira escura, ruas de paralelepípedo e um cheiro constante de sopa vindo de algum lugar.
A carroça parou em frente à estalagem “Panela de Pedra”, onde uma senhora de braços largos, expressão severa e um pano jogado no ombro os observava com olhos de águia.
— Nidaime. — disse a mulher, com um tom que misturava familiaridade com ameaça. — Achei que você tinha sido expulso da última vez.
— Tilma! Como sempre, radiante como uma tocha em chamas! — disse ele, abrindo os braços. — Eu trouxe companhia importante dessa vez!
Tilma olhou para Mabel e Ferme com desconfiança. Antes que a mulher começasse a resmungar, Mabel se adiantou com um sorriso diplomático e puxou um broche reluzente em forma de estrela cadente de dentro da túnica.
— Mabel Abyssis. Da casa Abyssis, família nobre de Axoland. — disse com um leve aceno de cabeça. — Estou em missão oficial. E com fome oficial também.
Tilma cruzou os braços, arqueando uma sobrancelha.
— Princesa ou não, se deixar farelo de pão no chão, vai esfregar com a escova do banheiro.
— Justíssimo. — respondeu Mabel, entrando com um sorrisinho travesso.
Ferme apenas fez uma reverência discreta e seguiu em silêncio. Tilma o observou um pouco mais antes de bufar, como quem aprova com relutância.
Mais tarde, os três se encontraram na pequena sala de refeições. A lareira crepitava num canto, e uma sopa espessa fumegava em tigelas de barro. O cheiro era tão bom que até Ferme relaxou os ombros.
— Tá vendo? Ninguém morreu, ninguém voou da carroça. — disse Mabel, enchendo a colher. — E ainda ganhamos sopa quente.
— Ainda falta o castelo. — Ferme retrucou — A parte mais complicada vem agora.
— A parte mais épica. — corrigiu Nidaime, erguendo sua caneca. — Pela missão!
— Pela comida! — Mabel completou.
— E pela ausência do Yonji. — ela adicionou com um sorriso aliviado. — Graças aos céus que não foi ele o enviado. Aquele maluco tem a delicadeza de uma bomba.
— E a Sophia? — Nidaime perguntou com um olhar enviesado.
— Eu queria que fosse a Sophia… — Mabel suspirou. — Ela é tão fofa. Uma pena.
Ferme tomou um gole da sopa com um sorriso discreto no canto dos lábios.
Nidaime piscou pra ele.
— E você, Ferme? Animado pra explorar um castelo amaldiçoado com dois malucos e um velho psicopata dirigindo?
— Não é como se eu tivesse escolha. — ele respondeu, mas o tom tinha uma leveza rara.
Após a janta, Tilma conduziu pessoalmente Mabel até o andar superior da estalagem. Abriu uma porta dupla com ferragens douradas e estendeu o braço com pompa.
— Aqui, Alteza. O melhor quarto da vila. — disse com um sorriso meio torto, que podia ou não ser sarcasmo.
Mabel entrou e deu de cara com um quarto absurdamente pomposo para uma pousada daquele tamanho: cama de dossel com lençóis de cetim dourado, almofadas demais para contar, cortinas bordadas à mão e até um quadro pintado (mal) de alguém que parecia um gato nobre.
— Uau… Isso aqui parece o esconderijo secreto de uma baronesa falida. Eu adorei. — ela comentou, pulando na cama com um plof.
Tilma pigarreou com orgulho.
— Verifiquei o broche. É legítimo. Achei que devia tratá-la como merece. — depois olhou de soslaio. — Os outros dois foram pro quarto de sempre.
No fim do corredor, Nidaime empurrou uma porta de madeira rangente e revelou o que só poderia ser descrito como o quarto-reserva que até ratos evitavam. Uma cama de palha meio torta, uma cadeira manca, e uma janela que não abria… provavelmente por medo do que podia entrar.
— Ah… o bom e velho Quarto do Desespero — comentou Nidaime, jogando o chapéu na cadeira com a confiança de quem já dormiu em piores.
Ferme entrou logo atrás, olhando em volta com cara de quem analisava o campo de batalha.
— A cama tem cupins. — constatou.
— Eles têm nome. — respondeu Nidaime, sério por dois segundos antes de cair na risada.
Ferme soltou um suspiro e começou a tirar a capa, sentado no canto mais seguro do chão.
— Então… — começou Nidaime, encostando-se à parede de pedra com os braços cruzados. — Você e a Mabel.
Ferme olhou pra ele, sério.
— O quê?
— É só que… ela tá sempre colada em você. E você deixa. Ela grita, ri, fala pelos cotovelos e ainda assim você tá sempre ali, ouvindo tudo. Qual é?
Ferme desviou o olhar, com aquele clássico ar de “não é da sua conta”.
— Estamos em missão. — disse, seco. — Eu só a acompanho.
— Missão, aham. Claro. — Nidaime fingiu anotar algo no ar. — Acompanhamento real com direito a bronca quando ela se joga em combate e olhares de “Mabel, não faça isso”. Pura logística.
Ferme apertou os olhos, tentando ignorar, mas Nidaime continuou, sorrindo.
— Ela confia em você. Dá pra ver. Não é só porque você é forte… tem alguma coisa aí. Vocês cresceram juntos?
Ferme encarou o teto por um segundo, como se buscasse paciência lá nas estrelas.
— Ela é... difícil de ignorar. — disse por fim.
Nidaime ergueu as sobrancelhas.
— Isso é o mais próximo de “ela é importante pra mim” que eu vou ouvir hoje?
Ferme bufou, se levantando com um olhar cansado.
— Boa noite, Nidaime.
— Boa noite, futura Vossa Majestade. — disse ele com um sorriso malandro.
Ferme travou por meio segundo, mas não respondeu. Só apagou a luz com um sopro e se deitou na cama de palha, que rangeu em protesto.
No quarto ao lado, Mabel já roncava, enfiada entre almofadas demais, sonhando com castelos antigos, raposas de duas caudas e — talvez — um certo irmão de Mark.
E assim, a vila de Irontask mergulhou no silêncio da noite.
O dia ainda nem tinha esquentado direito quando Tilma apareceu na porta do quarto de Mabel, batendo com urgência.
— Senhorita Mabel! Perdão pela intromissão, mas precisamos da sua ajuda!
Mabel, enrolada em um manto de linho com bordados luxuosos, piscou com preguiça.
— Tilma, se você disser que o café esfriou, juro que volto a dormir.
— É o poço da vila, senhorita! A corda rompeu, o balde caiu lá no fundo, e não temos mais como puxar água. O ferreiro tentou ajudar e quase caiu junto. Tá todo mundo meio em pânico...
Minutos depois, Mabel, Ferme e Nidaime estavam na praça da vila, diante do poço. Um círculo de moradores se reunia ao redor, murmurando preocupados, enquanto o ferreiro, com a perna enfaixada, contava sua tentativa de herói frustrado.
Ferme observava a cena com os braços cruzados e o olhar sério.
— Não temos tempo pra isso. — resmungou ele, direto.
— Concordo. Temos prioridades mais urgentes. — completou Mabel, ajeitando a faixa no cabelo.
— Tsc, tsc, tsc… — Nidaime balançou o dedo como quem repreende duas crianças teimosas. — Vossas majestades estão muito frias hoje.
Mabel arqueou uma sobrancelha.
— Majestades?. — Ela corou, envergonhada, lançando um olhar de quem queria se esconder do mundo.
Ferme desviou o olhar imediatamente, fingindo observar as nuvens como se fossem as mais interessantes do mundo.
Nidaime se aproximou do poço, agachou-se e olhou lá dentro com atenção. Depois de alguns segundos, tirou os braceletes, enrolou as mangas e soltou seu típico sorriso tranquilo.
— Sabem, antes de me tornar cavaleiro, eu ajudava meu avô a consertar coisas assim. Poços, cercas, telhados... Ele dizia que as pequenas ajudas moldam grandes corações.
— Essa história é real mesmo? — perguntou Mabel, desconfiada.
— Talvez sim, talvez não. Mas é uma boa história, não é?
Com ajuda de um aldeão, Nidaime improvisou uma nova corda com gancho, fez um arremesso calculado e, com um puxão firme, trouxe o balde de volta à superfície.
O povo aplaudiu. Uma senhora jogou uma flor nele. Ele pegou no ar, girando como se estivesse num baile.
— Água para todos! Serviço completo, entrega rápida.
— Você ainda é um palhaço. — comentou Mabel, sem esconder um meio sorriso.
— Um palhaço com habilidades úteis. — respondeu Nidaime, colocando a flor no bolso.
Mabel cruzou os braços, sorrindo também.
— Confesso que fico um pouco menos irritada de ter saído da cama agora.
— Tá vendo? Heroísmo começa com um balde. — disse Nidaime, piscando. — Agora sim, podemos comer e partir. Não temos pressa, né?
Eles voltaram para a pousada sob um céu limpo, com a brisa balançando as árvores e os aldeões agradecendo mil vezes.
A tarde se estendia tranquila por Irontask. O vilarejo era pequeno, mas aconchegante, com suas casas de madeira enfileiradas como peças de um tabuleiro antigo. Era o tipo de lugar onde o tempo parecia tirar um cochilo depois do almoço.
Na cozinha da pousada, Nidaime estava de avental, mexendo uma panela como se estivesse preparando a refeição do século.
— Tilma, me empresta mais daquelas ervas misteriosas que tu guarda num pote sem rótulo?
— Aquelas são só hortelã, Nidaime… — disse ela, erguendo uma sobrancelha. — E não põe canela no caldo de novo, hein!
— Calma, calma! Aprendi com meus erros… só um pouquinho dessa vez.
— Um pouquinho do teu tipo já matou dois gatos e meio da outra vez — bufou Tilma, mas já sorrindo.
Do lado de fora, Mabel estava cercada por um grupo de crianças curiosas. Vestia um vestido simples, mas pra elas ela parecia uma boneca viva, saída de alguma história de ninar.
— É verdade que você tem cem criados? — perguntou uma guria de sardas, arregalando os olhos.
— Cem? Céus, não! — Mabel disse, com uma expressão fingida de escândalo. — Só oitenta. Noventa se contar os que varrem o jardim e alimentam os pombos reais.
As crianças riram. Um dos meninos apontou pro broche cintilante preso ao vestido dela.
— Isso é de verdade?
— Claro que é. Ganhei no meu batizado. Dizem que brilha mais se tu não tiver mentido no dia. — Ela olhou pro broche, depois pras crianças, teatralmente. — Ih... acho que alguém aqui não escovou os dentes ontem!
As crianças explodiram em gargalhadas. Um menino gritou:
— Apanhei da escova, isso conta?
Logo estavam todos correndo ao redor da praça. Mabel brincava de esconde-esconde, pegava bandeira e até se fingiu de estátua quando um dos pequenos chegou muito perto.
Enquanto isso, Ferme se sentava perto da forja do vilarejo, observando com atenção o trabalho de um ferreiro local.
— Bela lâmina que carrega, rapaz. — comentou o ferreiro, enxugando o suor da testa.
Ferme retirou a espada das costas com cuidado e a entregou, com um sorriso sincero.
— Foi forjada por um artesão chamado Atlas. Um dos Rokusei de Axoland.
O ferreiro arregalou os olhos.
— O Atlas? Não brinca. Já ouvi histórias demais sobre ele... sempre achei que fossem exagero.
— Algumas são. Mas outras, nem tanto. — Ferme falou com leveza. — Essa aqui foi presente de aniversário. Ele disse que uma boa espada precisa aprender a ouvir o dono… e que essa era bem teimosa.
O ferreiro soltou uma risada.
— Tu parece daqueles que sabe conversar com aço. Se quiser afiar, é por minha conta.
— Gentileza tua. Eu aceito.
Na cozinha, Nidaime colocava pratos sobre a mesa com exagero teatral.
— Senhoras e senhores! Apresento-lhes o “Ensopado de Arrependimento”, criado para compensar os eventos da minha última estadia aqui… — ele fez uma pausa dramática. — ...quando fui mordido por um cachorro no tornozelo e, sem querer, virei a panela principal da Tilma em cima do balcão.
— Não foi sem querer, tu pulou em cima da mesa! — Tilma gritou da outra sala.
— Autodefesa! Eu vi a vida passar pelos meus olhos, e era cheia de dentes.
Mabel voltou ainda com folhas no cabelo, duas crianças agarradas às pernas.
— Se esse ensopado for tão bom quanto tua desculpa, talvez eu perdoe tuas aventuras anteriores, cavaleiro.
— Princesa Mabel, espero conquistar teu paladar com fervor e uma pitada de orgulho.
— Menos orgulho e mais batata, Nidaime. — respondeu, sentando-se com as crianças. — Eles são meus convidados agora.
Ferme voltou do lado de fora, ainda com um brilho calmo no olhar.
E ali, sob luz amarelada de lamparinas e entre gargalhadas, ensopado e histórias mal contadas, os três descansaram seus corpos… e esqueceram por uma noite os perigos da es