A Ladra

Nidaime ficou em silêncio por mais alguns segundos, olhando o chão queimado pelo feixe mágico. O vento gelado passava entre os dois, mas parecia que o frio vinha do olhar dele, não da neve.

Mabel apertava os punhos, arfando, assustada com o próprio poder. Ainda não entendia o que tinha feito, mas sabia que havia passado do limite.

— Hah... — Nidaime soltou um suspiro longo, caminhando devagar até recuperar o chapéu surrado, agora com uma borda queimada. — Você tem ideia do que acabou de fazer?

Ela balançou a cabeça em silêncio.

— Acabou de criar um encantamento ofensivo de nível avançado. Sozinha. Em pleno combate. — Ele colocou o chapéu de volta, mesmo rasgado. — Mabel... isso não é normal. Nem um pouco.

— Me desculpa… eu… eu só pensei em não perder. — disse ela com a voz baixa, os olhos ainda trêmulos.

Nidaime a encarou, depois sorriu — não com deboche, mas com admiração genuína, quase preocupada.

"Ela não quis perder? Ela se adapta de forma assustafdora. Isso é o que a torna perigosa"

Ele se virou de costas, ajeitando a espada na cintura.

— Vamos encerrar por hoje. Acha que pode manter seu encantamento de sensor ativado até voltarmos?

Mabel respirou fundo, limpando o suor do rosto. Ergueu a cabeça e, com um aceno determinado, respondeu:

— Posso sim.

E então, ambos caminharam lado a lado de volta ao acampamento.

O grito ecoou como uma pedrada no silêncio do campo.

— AAAARGH! LADRÃÃÃO!

Nidaime, com os olhos semicerrados, se virou rapidamente.

— Isso foi o Ferme? — perguntou, já dando o primeiro passo correndo.

Mabel Abyciss não respondeu. Só sumiu. O chão pareceu fazer um som de “puf” quando ela desapareceu e reapareceu dez metros à frente, em disparada. Nidaime sacudiu a cabeça e a seguiu.

Quando chegaram ao local, a cena era curiosa demais pra ser ignorada: Ferme O'malley e o velho carroceiro estavam amarrando uma garota no chão. Cabelos prateados, olhos cianos afiados e uma expressão de puro deboche no rosto. Ela parecia indignada, mas não desesperada.

— Ela tentou roubar os suprimentos enquanto a gente mexia na carroça — disse Ferme, ofegante, segurando a corda com firmeza. — Só não deu certo porque o velho notou a sombra dela.

— Era óbvio que aquele saco de batatas ia atrapalhar tudo — reclamou a garota, chutando o ar. — Tinha que ser um velho metido a esperto!

— Cê devia ter pensado nisso antes de tentar roubar a gente — respondeu Mabel, com os braços cruzados.

A garota, mesmo amarrada, não parecia intimidada.

— Olha só, vocês nem sabem com quem estão lidando. Eu tava só pegando emprestado uns mantimentos... Por sobrevivência! Vai dizer que nunca passaram fome?

— Nunca tentei roubar ninguém — murmurou Ferme, ainda desconfiado.

— Mas aposto que já pensou, gênio. Vai me dizer que esse cabelinho branco aí é de nobre? — ela soltou um sorriso debochado. — Aposto que esse grupo todo é de andarilhos... Vocês têm mais cara de bando do que de qualquer outra coisa.

Mabel não resistiu à provocação.

— Somos um grupo de elite. Eu sou Mabel Abyciss. E esse é Ferme O’malley.

A garota parou. O sorriso congelou. Silêncio.

Ferme só olhou pra Mabel, suspirou e, com a mão livre, deu uma leve mocada na cabeça dela.

— Cê tá maluca? Revelando nome completo pra ladra que a gente mal conhece?

— Ai! — Mabel esfregou a cabeça. — Foi automático!

— Automático o caramba — rosnou Ferme. — A gente nem sabe o que essa daí tá fazendo aqui. E se for mandada de alguém?

A garota amarrada sorriu de canto, como se estivesse se divertindo com a confusão.

— Lys. — disse, casual. — É como me chamam por aí. E pra ser sincera... eu ainda nem comecei a dar problemas.

— Ótimo — disse Ferme, se afastando um pouco. — Era exatamente o que eu queria ouvir...

— Eu voto pra gente enterrar ela — comentou o velho carroceiro, ranzinza.

— Ninguém vai enterrar ninguém — interrompeu Nidaime, ajustando o chapéu de novo. — Mas vamos manter a "Lys" bem amarradinha... por via das dúvidas.

Lys riu.

— Eu tenho certeza que a gente vai se dar bem. Desde que vocês parem de agir como se eu fosse o vilão da história...

— Porque você é. — disse Mabel.

— Ah, detalhes.

Lys estava sentada no chão, ainda com as mãos amarradas, mas com as pernas agora cruzadas como se estivesse num piquenique. Mabel, Ferme e Nidaime a observavam de pé. O velho mantinha distância, afiando um canivete só pra dar clima.

— Vai falar agora, ou prefere que a gente comece a jogar perguntas em forma de pedra? — começou Mabel, impaciente.

— Bom, se for o Ferme jogando, acho que machuca mais — respondeu Lys, sorrindo de canto. — Mas já que insistem...

Ferme se aproximou, com os braços cruzados.

— Nome completo.

— Lys. Só Lys. Quer um sobrenome? Inventa um. Gosto de "Skywalker", soa chique.

— Idade?

— Dezessete. Ou dezesseis com cara de dezenove, dependendo da luz.

Ferme bufou.

— Tá achando que isso aqui é comédia?

— Não... isso aqui tá com cara de circo. Só falta o palhaço — ela olhou pra Mabel. — Achei.

— EU sou o palhaço?! — Mabel apontou pra si, indignada.

— Você se apresentou antes de saber quem eu era. Convenhamos...

— Se eu sou o palhaço, você é o bode amarrado — Mabel respondeu, cruzando os braços.

Nidaime pigarreou, quebrando o clima.

— Por que tentou roubar nossos suprimentos?

Lys deu de ombros, o máximo que conseguia com as mãos presas.

— Porque eu tô viva. E gente viva precisa comer. Tava sozinha fazia dias. Vi a carroça, vi que vocês estavam distraídos, e pensei: "por que não?"

— Por que não? — Ferme repetiu, irritado. — Porque podia levar uma flechada no meio da testa, por exemplo.

— E não levei. O que mostra que eu sou rápida. Inteligente. Charmosa. E talvez um pouquinho sortuda.

— Você tá mais pra enxerida mesmo — resmungou o velho, de longe.

— Já trabalhou pra alguém? Algum grupo? — questionou Nidaime, ignorando a bagunça.

— Já roubei alguns mercadores, já passei a perna em uns soldados de vila e já fingi ser filha de um barão bêbado pra dormir numa estalagem de luxo. Serve?

— Serve como currículo de criminosa — comentou Ferme.

— Olha, se me soltarem, posso até devolver uns biscoitos. Devem tá inteiros ainda. Talvez com um pouco de poeira...

— Tem algum motivo pra estar nessa região? — insistiu Nidaime.

— Tô fugindo. De quem, vocês não precisam saber. Só sei que eu corro mais do que eles. E roubo melhor também. Ou quase.

Mabel se abaixou e ficou cara a cara com ela.

— Olha aqui, Lys. Não me importa se você tá fugindo de monstros, nobres ou da tua própria consciência. Mas se quiser continuar viva por perto da gente, vai ter que seguir nossas regras. Entendido?

Lys arqueou a sobrancelha.

— E se eu não quiser?

Ferme, do lado, estalou os dedos e o velho afiou mais rápido.

— Tá. Entendido.

— A gente vai manter você amarrada mais um tempo. Depois decidimos o que fazer — falou Nidaime, virando-se. — Por enquanto, não rouba mais nada. E se tentar fugir... bom, o velho aí adora testar armadilhas.

— Eu sou uma lady. Não sou de fugir pela porta da frente... — ela piscou. — Eu sumo pela janela.

— E você fala demais — retrucou Ferme.

— Vocês é que perguntam demais.

Mabel deu um leve soco no próprio queixo, frustrada.

— Eu tenho um pressentimento péssimo sobre essa guria.

— E eu um ótimo — respondeu Lys, sorrindo.

— É isso que me preocupa.

— Já encheu — rosnou o velho, coçando a cabeça com a lâmina do canivete. — Vai espernear amarrada mesmo.

Antes que alguém pudesse dizer qualquer coisa, o velho segurou Lys pelos braços, jogou-a por cima do ombro como um saco de batatas e caminhou até a carroça. Ela começou a gritar no mesmo instante:

— HEY! ESPERA! EU TENHO DIREITOS! ISSO É ABUSO! TEM UMA LEI CONTRA ISSO EM ALGUM LUGAR!

— Tem sim — murmurou o velho, jogando-a dentro da carroça com um baque seco. — Mas ela não vale nada onde a gente tá.

Lys caiu de costas, amarrada, com as pernas pra cima. Ela chutava o ar como uma criança fazendo birra.

— EU VOU DENUNCIAR TODO MUNDO! QUERO UM ADVOGADO! QUERO UM MAGO! QUERO UM BOLO! ALGUÉM ME TIRA DAQUI!

— Ignora — disse Ferme, ajeitando a gola da capa. — Ela vai cansar eventualmente.

— Vai nada — respondeu Mabel, cobrindo os ouvidos. — Ela é igual a mim com energia de sobra e senso zero de limite.

— Isso explica muita coisa... — Nidaime falou com um leve sorriso, ajeitando o chapéu de volta na cabeça.

— EU OUVI ISSO! NÃO ME IGNOREM! EU SOU UMA CRIMINOSA MUITO PERIGOSA! EU TENHO CONTATOS! EU FIZ... COISAS!

A carroça rangeu quando começou a se mover de novo. O velho puxava as rédeas enquanto Mabel, Ferme e Nidaime seguiam a pé do lado, como se nada estivesse acontecendo.

— Eu aposto três moedas que ela dorme em vinte minutos — comentou Mabel.

— Eu aposto que ela continua gritando no sono — retrucou Ferme.

— Eu só quero paz — resmungou o velho, sacudindo a carroça com mais força sem olhar pra trás.

— VOCÊS VÃO SE ARREPENDER DISSO! EU PODERIA TER ROUBADO DE VERDADE! EU FUI BOAZINHA! OLHA O QUE EU GANHO POR SER GENTIL!

E assim, entre gritos, resmungos e passos ritmados, o grupo seguia viagem. Ignorando completamente a ladra amarrada que agora se debatia entre sacos de mantimentos e um barril de água.

Horas haviam passado desde que a carroça voltou a seguir viagem. A floresta já havia ficado para trás e agora o cenário se abria para planícies geladas, cobertas por uma fina camada de neve que estalava sob as rodas de madeira reforçada. O céu nublado filtrava a luz de forma opaca, criando sombras suaves nas pedras e troncos secos pelo caminho.

Mabel se sentava com as pernas cruzadas na parte traseira da carroça, olhando o horizonte, silenciosa. Ferme estava ao lado do velho, puxando as rédeas junto com ele, enquanto Nidaime observava o mapa com desinteresse fingido, como se já soubesse o caminho de cor.

No fundo da carroça, em meio aos mantimentos, Lys dormia de lado, com os pulsos amarrados por trás das costas e as pernas enroladas em corda. Resmungava palavras desconexas entre os dentes cerrados:

—... não... é minha culpa... eu só queria um pedaço... só um... idiotas...

Virou o rosto para o lado e resmungou mais uma vez, soltando um ronco leve, irritado.

— Tá sonhando com o quê agora? — perguntou Ferme, sem olhar pra trás.

— Provavelmente tá roubando no sonho também — respondeu Mabel, sem emoção.

A viagem seguiu sem pressa. Passaram por algumas pedras grandes cobertas de musgo congelado, por árvores retorcidas pelo vento e por pequenos riachos já congelados. A trilha era larga, e não encontraram nenhum outro grupo na estrada.

O silêncio era quebrado apenas pelo barulho das rodas, o bater da madeira contra o solo gelado e o ranger ocasional de Lys se mexendo nas cordas.

Mabel jogou o corpo pra trás, encostando-se num saco de arroz, e murmurou:

— Quanto tempo até a próxima cidade?

— Um dia, se a carroça aguentar. Meia-noite talvez, se não aparecer mais maluca no caminho — disse o velho, sério.

— Ela pelo menos dorme quieta agora — disse Nidaime, abaixando o mapa e ajeitando o chapéu. — Melhor aproveitar antes que acorde.

Ferme apenas suspirou e seguiu com o olhar firme no caminho. Ao longe, pequenas formações rochosas começavam a surgir, indicando que logo entrariam numa região mais alta.

A carroça seguia firme por entre a vastidão branca de Axoland. As rodas rangiam a cada metro vencido sobre a trilha dura e congelada, enquanto o velho segurava as rédeas com mãos calejadas. Ferme, sentado ao lado dele, mantinha o olhar atento ao caminho, varrendo a paisagem com os olhos em silêncio.

À frente, o terreno era plano e aberto, com colinas baixas cobertas por uma camada de neve fina. Árvores secas e retorcidas se alinhavam à distância, folhas completamente ausentes, troncos escurecidos pelo frio constante. Alguns galhos balançavam com o vento cortante, mas não havia vida visível ao redor.

À esquerda, uma encosta surgia com rochas salientes cobertas de gelo, formando blocos partidos que pareciam ter rolado de um penhasco já apagado pelo tempo. Do lado direito, o chão afundava em uma depressão onde um riacho congelado cortava a terra como uma cicatriz. O gelo sobre a água era espesso, esbranquiçado, com rachaduras finas que lembravam vidro prestes a trincar.

A carroça passava devagar por entre essas formações. Cada solavanco ecoava dentro do veículo. Mabel, na traseira, mantinha os olhos abertos, observando tudo sem falar. Nidaime, de pé na lateral, ajustava a posição com cuidado enquanto encarava o horizonte.

Dentro da carroça, os mantimentos estavam organizados em caixas e sacos. Um deles servia de apoio para o corpo amarrado de Lys, que se mexia de vez em quando, ainda dormindo ou fingindo que dormia. A corda estava apertada, firme, e ninguém parecia disposto a conversar com ela tão cedo.

Mais adiante, as marcas na neve indicavam que poucos haviam passado por ali recentemente. Pegadas de cervos e pequenos roedores eram visíveis nas beiradas da trilha, mas não havia outros sinais de humanos. O frio era constante. Não havia sol visível, apenas uma luz cinza vinda do céu coberto de nuvens grossas.

Ao longe, era possível ver as torres quebradas de um antigo posto de vigia, coberto de neve até o teto. Próximo dele, uma árvore caída bloqueava parte de uma bifurcação na estrada claramente evitada por quem ainda conhecia os perigos daquele trecho.

Mabel quebrou o silêncio da viagem, olhando para a estrada coberta de neve à frente.

— Acho que deveríamos parar na terra de um nobre mercador que conheço — disse ela, firme. — Lá dá pra reabastecer, pegar informações e descansar melhor.

Nidaime ajeitou o chapéu e olhou para ela com interesse.

— Você já esteve lá antes? Conhece bem esse lugar?

Mabel assentiu.

— Sim, é um ponto seguro e importante para o comércio. O nobre não se envolve em política, mas tem bons contatos. Se conseguirmos apoio dele, pode facilitar muita coisa.

Ferme franziu a testa, a voz calma e prática.

— Descansar faz sentido. Não adianta avançar sem estar preparado. Precisamos de um lugar confiável.

O velho, já cansado, bufou.

— Eu nem sei onde fica esse lugar, mas se vocês acham que é bom, eu confio.

Nidaime deu um meio sorriso, ajeitando o chapéu.

— Então seguimos para essa terra. Vai ser bom para todos recarregarem as forças.

A carroça continuou seu caminho pela neve.

A carroça seguia seu curso entre as trilhas cobertas de neve, rangendo a cada buraco mal disfarçado pelo gelo. Mabel estava na frente, ao lado do velho, apontando com precisão as direções enquanto observava marcos naturais do terreno.

— É por aqui. Vamos cortar por esse caminho mais estreito, depois subir um pouco. A estrada leva direto a Asherea — disse ela, com confiança.

O velho lançou-lhe um olhar desconfiado, mas não argumentou. Apenas resmungou algo sobre jovens mandando nos mais velhos e ajustou as rédeas com certo esforço.

Asherea era o domínio da família Ashber, um clã antigo de mercadores influentes. No entanto, há anos, um estranho incidente havia dizimado quase toda a linhagem. Restava apenas um jovem nobre da mesma faixa etária de Mabel, mantido à sombra do escândalo familiar. Ninguém sabia ao certo o que realmente havia acontecido naquela noite, apenas que os Ashber deixaram de ser uma potência política e passaram a agir mais discretamente, focando em comércio e rotas seguras.

No interior da carroça, enquanto o frio soprava pelas frestas, Nidaime notou um leve estalo vindo do fundo, perto das mantas onde Lys estava jogada. Ele virou lentamente o rosto, os olhos semicerrados.

Lys estava com o rosto suado, a testa franzida de dor, mordendo o lábio enquanto forçava o pulso contra a amarra. Tentava deslocá-lo para escapar.

— Isso vai doer mais do que ajudar, sabichona — disse Nidaime, em voz baixa, do nada, fazendo com que Lys se sobressaltasse com um gritinho sufocado.

Ela congelou por um instante, os olhos arregalados, antes de tentar esconder o que fazia com um sorriso nervoso.

— Ah... e-eu só tava... alongando o braço, sabe?

Ferme surgiu do lado dela com um pão na mão, o rosto sério, mas sem agressividade.

— Se quiser comida, não precisa quebrar o pulso. Só precisa se comportar — disse, estendendo o pão.

Nidaime sentou de leve sobre um caixote e cruzou os braços.

— Não somos bandidos. Pelo menos não hoje. Se cooperar, tiver alguma informação útil... talvez a gente solte você. E quem sabe ainda ganha uma refeição quente mais tarde.

Lys olhou de um para o outro, o estômago roncando alto, e pegou o pão com uma das mãos, ainda presa. Murmurou algo parecido com “obrigada”, mas sem tirar o olhar de Nidaime, desconfiada.

A carroça chacoalhava levemente enquanto o grupo seguia rumo a Asherea. O cheiro de pão velho e vento gelado preenchia o interior coberto da carroça. Lys, ainda amarrada, mastigava com pressa o pedaço que ganhara, mas não tirava os olhos dos três. Quando terminou, limpou a boca com o ombro e soltou em voz alta, sem disfarçar o veneno:

— Até parece... Nobres só pensam em si mesmos. Vocês vão me jogar no lixo ou me matar depois que eu for útil. É sempre assim. Vocês são a pior escória que já existiu.

Nidaime ergueu uma sobrancelha e suspirou fundo, sem mudar a expressão.

Ferme, comendo uma fruta seca do outro lado, só resmungou:

— Isso não é exatamente mentira, mas tá sendo bem generalista aí.

Antes que qualquer um respondesse com mais firmeza, Mabel surgiu por trás com um estalo animado e os braços abertos.

— Errado, minha querida ladra pessimista! — disse ela, com um sorriso sacana. — Eu não sou uma nobre.

Lys virou o rosto devagar, confusa, franzindo a testa.

Mabel estufou o peito, uma mão na cintura, a outra apontando pra si com orgulho debochado:

— Eu sou da realeza! Bem pior!

Ferme colocou a mão no rosto, balançando a cabeça.

— Lá vem...

Mabel ignorou os olhares e, do nada, se jogou ao lado de Lys e a abraçou por trás, como se fossem melhores amigas.

— Ahh, vai ser tão divertido ter mais uma garota na viagem! Eu já tava começando a me sentir num acampamento masculino de férias.

Lys ficou paralisada, os olhos arregalados, mas Mabel apertou ainda mais, ignorando a tensão.

— E mesmo que você não saiba nada útil... bom, né... — ela virou levemente o rosto em direção a Ferme, com um sorrisinho e olhos pidões — Suas habilidades de roubo podem ser bem úteis...

Ferme suspirou, encarou a cena, depois olhou para Nidaime que só deu de ombros, claramente se divertindo com tudo.

— Ela vai encher o saco, né? — murmurou Ferme.

— Absolutamente — respondeu Nidaime com um meio sorriso.

Ferme olhou de novo para Lys, que ainda estava meio desconcertada no abraço, e soltou:

— Tá. Mas ela carrega a própria mochila.

— E amarrada! — gritou o velho da boleia, sem nem olhar pra trás.

Mabel riu alto, ainda abraçada em Lys.

Lys permaneceu quieta por um tempo, digerindo tudo o que acontecia ao seu redor — literalmente e metaforicamente. Ainda amarrada e agora meio amassada pelos braços da Mabel, ela olhou para todos ali com uma mistura de confusão e cansaço. Finalmente, bufou.

— Vocês são malucos. Todos vocês — disse, olhando de canto para Mabel. — E você... — apontou com o queixo, já que os braços estavam presos. — É ainda pior. Me abraça como se fosse minha prima de infância e depois fala que vai me usar por aí só porque eu sei abrir fechadura. Cês têm noção do quão doente isso soa?

Ferme deu um pequeno sorriso, mas disfarçou com uma mordida em uma barra de cereal seco.

— Bem-vinda ao time, ladra.

— O nome é Lys, não “ladra” — retrucou, irritada.

Enquanto todos seguiam se acostumando com a nova dinâmica improvisada, Mabel se afastou um pouco, sentando-se no canto da carroça, o olhar fixo na estrada branca que serpenteava diante deles.

Ela cruzou os braços e suspirou baixo, os pensamentos começando a fervilhar por trás do sorriso irreverente que usava como fachada.

"É perigoso alguém que teve contato com a gente fugir. Ela sabe nossos rostos, nossas vozes, ouviu pedaços das conversas... é necessário controlar os riscos."

A expressão dela se endureceu levemente, o queixo erguido. O olhar, apesar de jovem, carregava o peso de uma consciência digna de uma monarca algo que não combinava com sua postura brincalhona na maior parte do tempo.

Ela então voltou o olhar para Lys, que ainda discutia baixinho com Ferme, e sorriu sozinha, com o típico ar de quem controla tudo sem que ninguém perceba de verdade.

A carroça avançava lentamente pelas trilhas bem demarcadas, até que os morros nevados começaram a dar lugar a colinas mais suaves e longas. Aos poucos, estruturas metálicas surgiam no horizonte postes mágicos que absorviam energia solar, placas de ferro reluzente e até mesmo trilhos de transporte.

Mabel ergueu o tronco animada, sentindo a brisa mais limpa.

— Finalmente... chegamos.

— Isso é... Asherea? — Ferme perguntou, abrindo levemente os olhos, surpreso com a paisagem diante deles.

— A cidade mais moderna de Axoland — disse Nidaime, descendo da carroça e ajustando seu chapéu com um leve assobio — Onde até os comerciantes têm mais dinheiro que alguns nobres.

À frente, portões duplos se erguiam com mais de sete metros de altura, fundidos em um tipo raro de metal azulado. Runas cintilavam nas laterais, fazendo a segurança mágica pulsar com energia constante. Guardas bem equipados com armaduras negras e emblemas da família Ashber patrulhavam as entradas, mas ao contrário das vilas do interior, aqui havia organização, etiqueta, e comércio.

Lá dentro, Asherea se revelava: ruas pavimentadas com placas mágicas que absorviam os passos, construções de três a cinco andares, mercadores de diferentes raças vendendo artefatos encantados, bijuterias mágicas e até itens raros em barracas automatizadas. Havia canais de água limpa cortando a cidade e uma estrada puramente comercial.

— Eu... nunca vi nada assim — murmurou Lys, agora sentada com as mãos soltas, mas sob vigilância. Ela girava o pescoço, maravilhada — É como se fosse outra era...

Mabel cruzou os braços, sorrindo.

— Bem-vindos a Asherea. Lar do único nobre que ainda está vivo da Família Ashber... e um dos poucos que não me deve dinheiro, mas me deve favores.

— Isso me deixa mais nervoso, na real — disse Ferme, franzindo o cenho.

— Bom... vamos reabastecer, conseguir informações e... tentar não chamar atenção demais — completou Nidaime, mesmo sabendo que isso seria impossível com aquele grupo.

E assim, adentraram as muralhas. Asherea os esperava.