A Grande Asherea

O grupo finalmente desceu da carroça. As ruas de Asherea vibravam com magia e comércio — um espetáculo de sons metálicos suaves, placas mágicas piscando em ritmos variados e aromas que misturavam especiarias raras com tecnologia arcana.

Nidaime manteve-se ao lado de Lys o tempo todo, as mãos nos bolsos, mas os olhos atentos como um predador. A garota, embora livre das amarras, sentia a tensão no ar e andava com uma expressão mista de admiração e cautela. Ferme, calado, observava os prédios e movimentações, mantendo uma distância curta de Mabel.

O velho, por sua vez, seguiu com a carroça pela lateral de uma via secundária, acenando com um "vou procurar um bom canto pra deixar isso aqui, não façam escândalo!" antes de sumir entre os becos.

O grupo começou a se embrenhar pelas avenidas de comércio principal, em meio a artefatos flutuantes e vitrines de vidro mágico. Até que, repentinamente, uma elfa jovem e de traços delicados, pele perolada e cabelos em tranças finas douradas, surgiu no caminho com um sorriso largo.

Ela exclamou, com os olhos brilhando:

— 𐰁𐰋𐰀𐰐𐰂𐰀!!! 𐰎𐰐𐰅𐰀𐰌 𐰊𐰂 𐰋𐰀𐰊𐰐𐰅𐰋, 𐰊𐰂 𐰀𐰋𐰁 𐰅𐰂𐰍𐰁 𐰂𐰌𐰁𐰂, 𐰏𐰀?

(ELARÍA!!! Suvah ti makrel, ti alé iré iden ha?)

Ao mesmo tempo, ela entregava uma pequena flor azulada a Mabel com as duas mãos.

Mabel sorriu como se aquilo fosse algo corriqueiro e respondeu com naturalidade, balançando levemente a cabeça:

— 𐰁𐰅𐰃𐰃𐰂𐰁𐰆!!! 𐰊𐰂 𐰐𐰀 𐰎𐰁𐰋𐰁𐰐 𐰎𐰋𐰏... 𐰏𐰀!

(ELONIER!!!! Ti na zeren voh... ha!)

A elfa deu uma leve risada, fez um gesto tradicional de despedida com os dedos e desapareceu no meio da multidão.

Ferme ficou parado olhando para Mabel com as sobrancelhas franzidas e uma expressão de julgamento tão visível que nem tentou esconder.

— Como caralhos tu fala a língua dos elfos?

Mabel, sem pestanejar, girou a flor nos dedos e respondeu como se fosse a coisa mais óbvia do mundo:

— Fui obrigada a aprender desde os cinco anos. Etiqueta real. Se eu errasse uma conjugação verbal, meu professor elfo me fazia repetir por dez horas sem usar magia.

Ferme piscou devagar.

— Isso explica muita coisa... e ao mesmo tempo, não explica nada.

— Bem-vindo à minha infância — disse Mabel, já caminhando à frente como se nada fosse.

Lys, andando logo atrás, cochichou com Nidaime:

— Tô começando a achar que ela não é só birrenta... ela é treinada.

Nidaime apenas riu com um sorrisinho no canto da boca.

— Ah, agora que percebeu?

Ferme, caminhando ao lado de Mabel pelas ruas movimentadas de Asherea, analisava o cenário com olhos atentos. Vendedores gritavam preços, magia flutuava em forma de painéis informativos e a cidade exalava a modernidade típica do coração comercial de Axoland.

Parando diante de uma bifurcação — uma rua levava ao centro mercante, outra, mais refinada e tranquila, em direção aos domínios nobres — Ferme falou em tom tranquilo, mas direto:

— Acho melhor a gente se dividir.

Mabel girou o rosto na direção dele, desconfiada.

— Lá vem…

— Não vai dar certo todo mundo indo comprar suprimento. Vamos chamar atenção demais, ainda mais com Lys sendo... quem ela é — apontou sutilmente com o queixo para a garota que andava logo atrás, amarrada, bufando como sempre. — Você disse que conhece um nobre aqui, certo?

— Sim, mas ele não é bem um velho de bengala. Tem só dezesseis — respondeu ela, ajeitando o casaco enquanto andava. — Um idiota esnobe e bem relacionado.

Ferme assentiu, como se o perfil não fosse novidade.

— Então você e eu vamos até ele. Eu sou o mais estável daqui. Você... é você.

— Que romântico — ironizou Mabel.

— Nidaime?

Eles se viraram para o homem de chapéu que vinha tranquilamente atrás com Lys, que estava de braços cruzados, com uma expressão mal-humorada. Nidaime assoviava, como se não estivesse prestando atenção — mas os olhos dele nunca deixavam Lys escapar por mais de dois segundos.

— Nidaime e a ladra cuidam dos suprimentos — decretou Ferme. — Se ela tentar fugir, ele resolve.

Lys rebateu na hora:

— Ei! Tô ouvindo, seu panaca gelado!

Ferme respondeu com a mesma frieza:

— Era pra ouvir mesmo.

Nidaime apenas sorriu, coçando o queixo.

— Não se preocupa, princesa do crime. Vamos pegar suprimentos e ver se você consegue carregar alguma coisa com essas mãos amarradas.

Lys estreitou os olhos.

— Vocês todos são insuportáveis.

— E mesmo assim tá andando com a gente — murmurou Ferme, já virando para o lado nobre da cidade.

Mabel olhou por cima do ombro.

— Uma hora, no máximo. E se ele estiver usando aquelas roupas ridículas de sempre, vou embora antes de ele falar algo.

— Você tem amigos bem... únicos — comentou Ferme.

— Quem disse que ele é meu amigo? — respondeu ela com um sorrisinho. — Vamos logo, antes que ele resolva se gabar do desenvolvimento da cidade de novo.

Os dois grupos se separaram numa esquina onde o calçamento dava lugar a ruas mais limpas e decoradas com pequenas lanternas flutuantes. Mabel seguiu à frente, com passos firmes e casaco esvoaçante, enquanto Ferme ia logo atrás, com as mãos no bolso e um olhar despreocupado — ou pelo menos parecia.

Asherea ganhava outro ar conforme se afastavam da área comercial. As fachadas dos prédios tornavam-se mais elegantes, menos chamativas, com jardins mágicos e portões encantados. O som do burburinho da cidade ia se apagando, substituído por uma tranquilidade quase incômoda.

— Ele mora naquela mansão? — perguntou Ferme, ao notar uma construção de mármore com detalhes dourados à frente.

— Claro que não. Aquilo é um hotel — disse Mabel, sem parar de andar. — O idiota mora um pouco mais adiante, numa casa azul com janelas em forma de gota. Ele mesmo mandou fazer.

Ferme não respondeu. Apenas ergueu uma sobrancelha.

Por alguns metros eles caminharam em silêncio. Mabel parecia distraída com o ambiente ao redor, enquanto Ferme apenas a acompanhava, atento ao ritmo dos passos dela. Por um momento, ela tropeçou numa pequena elevação de pedra na calçada. Ele segurou o braço dela sem dizer nada.

— Eu vi, tá? — murmurou, ajeitando a postura.

— Aham — respondeu Ferme, com a mesma voz baixa, soltando o braço só depois de confirmar que ela estava firme.

A caminhada seguiu.

Logo passaram por uma fonte central onde crianças brincavam com pequenos feixes d’água encantada que flutuavam e giravam no ar. Uma senhora alimentava pássaros com pão mágico que se multiplicava. O cenário parecia calmo demais para quem havia enfrentado neve, cordas e tentativas de assassinato nos últimos dias.

Mabel se sentou por um segundo num banco de pedra à beira da fonte, puxando a gola do casaco para cima.

— A gente tem que esperar ele sair pra poder entrar. O idiota detesta visitas inesperadas.

Ferme se sentou ao lado, sem dizer nada. Ficaram ali, um olhando pro lado oposto do outro, mas dividindo o mesmo silêncio.

— Você fala pouco — comentou ela, depois de um tempo.

— Você fala demais — respondeu ele, olhando as crianças da fonte. Mabel abriu um sorriso discreto, quase imperceptível.

O silêncio voltou, mas desta vez não era desconfortável. Era leve. Como se não precisassem dizer nada.

Uma folha solta de uma árvore encantada flutuou entre os dois. Ferme a pegou e girou entre os dedos.

— Você vai mesmo confiar nesse nobre? — perguntou, ainda sem olhar pra ela.

— Não. Mas ele me deve — respondeu Mabel, tirando uma mecha de cabelo do rosto. — E eu sempre cobro o que me devem.

Ferme assentiu. Devolveu a folha ao vento e se recostou no banco, fechando os olhos por um momento.

Mabel o observou de lado, por apenas um segundo. Depois virou o rosto, com um ar quase enjoado.

— Se você dormir aqui, vou te deixar pra trás.

— Se você se perder, vou te achar — disse ele, como se estivesse dizendo que o céu era azul.

Ela não respondeu.

O silêncio, mais uma vez, falou por eles.

O caminho até o casarão da família Ashber não era curto, mas Mabel parecia não se importar com o tempo. A cada passo, ela dava uma olhada ao redor, como se aquela cidade toda reta e limpa, com seus prédios de mármore escuro e estruturas metálicas reluzentes fosse uma distração confortável. Ferme caminhava ao lado, com as mãos nos bolsos do sobretudo, o olhar quieto, mas atento a tudo. Às vezes os dois trocavam olhares, às vezes não diziam nada. Mas o silêncio entre eles nunca parecia vazio.

Viraram por uma rua menos movimentada, onde as construções baixavam um pouco, abrindo espaço para um jardim central com bancos de pedra e uma fonte baixa no meio. O som da água correndo era abafado, mas constante. Mabel parou ali, respirando fundo, como se absorvesse o ar leve da cidade.

— Vamos sentar um pouco. — Disse ela, puxando Ferme suavemente pelo casaco, sem pedir permissão de verdade.

Ele não resistiu, como sempre. Apenas sentou ao lado dela, enquanto ela tirava as luvas e esfregava as mãos para aquecê-las. O frio não era forte, mas ainda assim presente um lembrete de que estavam longe de casa, seja lá o que “casa” significasse naquele ponto da vida deles.

Por um tempo, não falaram. O movimento das folhas nos arbustos próximos, as crianças correndo mais adiante, e o eco suave de rodas de carroça enchiam o espaço ao redor.

Mabel então se mexeu de leve. Se aproximou um pouco mais dele, devagar, como se testasse os limites daquele gesto. Passou os braços por dentro do casaco aberto de Ferme e segurou firme o braço dele, encostando a cabeça em seu ombro com naturalidade. Como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo.

Ferme permaneceu imóvel, mas seu corpo claramente perdeu qualquer rigidez. Ele só olhou de relance para a cabeça de Mabel sobre ele, e voltou a encarar a rua à frente, como se estivesse escoltando algo precioso sem fazer alarde.

— A aventura tá sendo divertida até. — murmurou ela, com um sorriso discreto nos lábios. — Um pouco mais do que eu esperava... talvez porque você esteja aqui.

O jeito que ela falou não tinha hesitação, mas também não soava como uma confissão. Era como se falasse de uma constatação, algo que simplesmente era. Ferme a olhou de canto, o olhar pensativo, e depois baixou os olhos para a mão dela segurando seu braço.

— Hm. — foi tudo o que ele respondeu. Mas o tom carregava mais significado que qualquer frase longa.

Mabel se ajeitou melhor, os olhos fixos em algum ponto qualquer no horizonte. Ainda com a cabeça no ombro dele, ainda abraçada ao braço.

— Se você contar pra alguém, eu nego até a morte. — disse ela, num tom meio resmungado, mas sem nenhuma firmeza. Um blefe descarado.

Ferme riu baixinho, o som escapando quase como vapor. Não era um riso provocativo, mas também não era indulgente. Era só... leve.

— Tá bom. Segredo nosso. — disse ele, por fim.

O vento soprou mais forte por um instante, mas nenhum dos dois se mexeu. A cidade seguiu com seus ruídos distantes, mas naquele pequeno banco de pedra, a viagem pareceu fazer sentido por alguns minutos. Sem pressa. Sem explicação. Sem a necessidade de dizer o que cada um estava sentindo porque talvez, só talvez, ambos já soubessem.

Enquanto isso, do outro lado da cidade, Nidaime andava com as mãos nos bolsos e a expressão entediada, desviando de pessoas apressadas nas vielas comerciais. Ao lado dele, Lys vinha com os braços cruzados, os olhos atentos a cada canto — não por cautela, mas por puro costume de quem cresceu olhando por onde fugir caso fosse necessário.

— Você anda igual um velho — reclamou ela, chutando uma pedrinha no caminho. — Vai demorar quanto tempo pra comprar uns malditos suprimentos?

— Ué, eu pensei que você gostasse de roubar, não de comprar — respondeu Nidaime com um sorrisinho torto, sem nem olhar pra ela.

Lys bufou alto e revirou os olhos.

— É por isso que eu odeio nobres... Vocês sempre têm uma frase pronta pra parecerem mais espertos do que são.

— E eu achando que você me odiava só por causa do sangue azul. Agora é pelo cérebro também?

— Não me testa, espadachim de luxo.

Ele soltou uma risada nasal, curta e debochada, e virou à esquerda, parando na frente de uma barraca de frutas secas. Começou a negociar com o vendedor como se não estivesse sendo ameaçado há cinco segundos. Lys, por sua vez, ficou mais pra trás, os olhos estreitos, observando tudo inclusive a bolsa de moedas pendurada na cintura dele.

— Nem pense em tentar pegar, eu sentiria seu movimento antes de você alcançar a metade do caminho. — disse ele sem virar, pegando algumas maçãs cristalizadas.

Lys deu de ombros, fingindo desinteresse.

— Quem disse que eu quero seu dinheiro, almofadinha? Eu pego coisa melhor sozinha. E sem fazer discurso no meio.

— Claro, claro. Você é autossuficiente. Rouba, mente, engana... Uma cidadã modelo.

— Muito melhor do que os "nobres heróicos" que matam pobres nas guerras e ainda posam de bonzinhos.

A voz dela veio carregada de veneno. Nidaime não respondeu de imediato. Pegou os suprimentos, pagou com algumas moedas e começou a andar de novo, estendendo uma das sacolas para ela.

— Pega aí. Não vou carregar tudo sozinho.

Ela hesitou, mas acabou pegando. Não por educação, mas porque odiava ver alguém achando que ela era fraca.

— Só tô ajudando pra isso acabar logo. — resmungou.

— Claro. E eu só comprei comida porque pretendo virar padre.

— Você é insuportável, sabia?

— E você fala demais.

Eles seguiram em frente, andando lado a lado.

— Aí, ó! Cuidado! — resmungou Lys, tropeçando no último degrau da calçada.

— Como alguém tão ágil pra roubar é tão descoordenada pra andar? — zombou Nidaime, com um sorriso debochado.

— Vai se ferrar, tapete de nobre! Se eu cair, vou te arrastar comigo.

— Seria a primeira coisa útil que você faria desde que entrou na carroça.

Lys fechou os punhos, bufando como um gato irritado. Mas ao ver uma barraca de doces, desviou o olhar e tentou pegar um com os dedos leves como o vento.

— Ah-ah — Nidaime puxou a orelha dela sem olhar — Estamos sem plano de fuga hoje.

— Tá maluco? Me solta, seu idiota! — berrou, tentando se desvencilhar. — Isso é abuso!

— Abuso é querer roubar bala enquanto carrega os suprimentos como uma mula folgada.

Ela arregalou os olhos.

— Você me chamou de quê!?

— Burro de carga oficial da equipe. E a gente nem votou, hein? Mas o título te caiu tão bem que achei que era destino.

— Eu vou socar sua cara com as duas mãos amarradas!

— Ah, falando em mãos e corpo congelando — Nidaime mudou de assunto num pulo — essas roupas aí que você tá usando… Esquentam quanto? Dez segundos no vento e você vira picolé.

Lys olhou pro próprio casaco fino, e mesmo orgulhosa demais pra admitir, bateu os braços no frio.

— Eu tô ótima — rebateu. — Tá vendo? Nem tremo.

— Tá tremendo até o ego, pirralha. Vem, vamos pegar roupas decentes antes que congelemos sua arrogância.

Ele a puxou pelo braço enquanto ela protestava aos berros, e entraram em uma loja de roupas grossas de inverno. O lugar era recheado de casacos longos, peles artificiais e acessórios de couro para viagem. O vendedor os observou por cima dos óculos com cara de “crianças ricas e barulhentas”.

— Pode pegar o que quiser, mas não me mete em suas dívidas depois — resmungou Nidaime, jogando uma capa pesada e um gorro peludo na direção dela.

— Uau. Que cavalheiro. Quase chorei de emoção.

— Chora mesmo, que o drama vai ajudar a esquentar.

— Você é um insuportável completo! — gritou, indo pro provador batendo os pés.

Nidaime cruzou os braços, se encostou na parede e suspirou, rindo de canto.

— E pensar que ela quase roubou nossa comida... Agora tá provando roupa como mascote da comitiva.

De dentro do provador, veio um grito abafado:

— EU TÔ OUVINDO, IDIOTA!

— EU QUIS QUE VOCÊ OUVISSE, DESGRAÇA!

O vendedor tossiu propositalmente, tentando não rir. Nidaime apenas deu de ombros com um sorrisinho debochado.

Enquanto vestia o casaco pesado dentro do provador, Lys encarava o próprio reflexo no espelho empoeirado. As mangas cobriam quase até os dedos, e a gola peluda subia até o queixo. Por um momento, ela ficou em silêncio.

“Eles são loucos…”, pensou. “Eu tentei roubar os suprimentos, quase fugi duas vezes... e mesmo assim, me trouxeram pra cidade, me deram comida, roupas novas… Estão me tratando como... como parte do grupo?”

Ela franziu a testa.

“Nobres não são assim. Eles não deviam ser assim. Desde criança, ouvi que nobre só estende a mão pra te usar como degrau... Então por que esse idiota me trata como se eu fosse só uma irmã chata? Por que a princesa me abraçou? Eles tão jogando um jogo? Me enganando pra eu confiar e depois me descartarem quando não servirem mais?”

Fechou os punhos devagar, encarando o chão. O peso do casaco parecia aumentar a dúvida em seus ombros.

“Ou será que... será que nem todos os nobres são lixo?”

Mordeu o lábio inferior. A dúvida era um veneno lento e silencioso. E mesmo que ela não confiasse ainda, o simples fato de estar considerando a ideia já deixava tudo mais confuso.

“Tsc... não vou baixar a guarda. Ainda não.”

Ela abriu a cortina do provador com um puxão.

— E aí, tá feliz agora, seu chato? — gritou, empurrando a cortina com força.

Nidaime olhou pra ela e soltou um assobio sarcástico.

— Finalmente parece menos uma mendiga.

— Vai se ferrar. — Mas dessa vez, ela disse com um leve sorriso no canto da boca.

Enquanto isso...

As botas de Mabel pisavam firmes sobre o calçamento branco da cidade de Asherea. A neve ali era empurrada para as laterais das ruas por trilhas de uso constante, e o comércio fervilhava, com bandeiras coloridas tremulando sobre as tendas e vitrines.

Mabel andava com os braços para trás, as mãos fechadas com elegância na altura da cintura, exibindo uma postura confiante. Os olhos percorriam os arredores como quem domina o cenário — sem pressa, mas ciente de que carregava atenção por onde passava. Ferme a acompanhava ao lado, mãos nos bolsos e expressão serena, embora atento a qualquer movimento estranho.

— Sabe... — disse ela, em tom despreocupado — essa cidade mudou um pouco. Mas ainda tem o mesmo cheiro de alfazema misturado com peixe defumado. É reconfortante.

Ferme soltou um riso nasal leve.

— Você tem um jeito estranho de sentir nostalgia.

Mas a tranquilidade durou pouco. Aos poucos, as conversas nas ruas foram silenciando. Um comerciante interrompeu a venda, um jovem puxou o braço da irmã mais nova e apontou discretamente. Alguns mais ousados murmuravam:

— É ela...?

— A princesa?

— A da Casa Abyciss...?

Mabel manteve o olhar à frente, mas um pequeno sorriso de canto de boca se formou.

Ferme percebeu o movimento ao redor e levou a mão discretamente à lateral da capa, por instinto de proteção.

Então, um cavaleiro trajado com as cores verde-escarlate dos guardas de Asherea surgiu correndo entre a multidão. Ele parecia jovem, mas disciplinado. Parou a poucos metros da dupla, ofegante, com os olhos arregalados.

— Vossa Alteza…?!

Mabel piscou lentamente, arqueando uma sobrancelha.

— Sim?

Sem dizer mais uma palavra, ele virou-se de costas e correu novamente, desta vez com mais velocidade. A população abriu caminho, e logo desapareceram seus passos.

— Vai chover gente. — murmurou Ferme, prevendo.

E não tardou.

Cerca de três minutos depois, um grupo de cavaleiros surgiu vindo da direção da praça central. Todos portavam lanças curtas, mantos elegantes com o brasão da cidade no peito e capacetes polidos. O jovem de antes os liderava. Assim que pararam diante de Mabel e Ferme, todos — em sincronia — se ajoelharam, baixando as cabeças.

O que parecia o mais velho entre eles, embora não tivesse mais do que vinte e poucos anos, levantou o queixo e falou em voz alta:

— É uma honra receber Vossa Alteza Mabel Abyciss em Asherea. Que a luz de Axoland brilhe em vossos passos.

Mabel cruzou os braços agora, com o queixo erguido e um semblante firme.

— Levantem-se. Não precisam dessa formalidade toda... por ora.

Ferme desviou os olhos, disfarçando um sorriso contido, enquanto murmurava baixo o suficiente apenas para ela ouvir:

— Eu prefiro quando você age como uma criança mimada. Isso dá medo.

— Shhh. Postura agora, Ferme. — respondeu ela com ares de realeza impecável.

O cavaleiro-chefe ainda de joelhos ergueu o olhar com respeito, sem ousar encará-la diretamente.

— Permita-me perguntar, Vossa Alteza… o que vos traz a Asherea?

Mabel descruzou os braços lentamente, como se estivesse concedendo a fala àquele inferior. A brisa puxou suavemente os cabelos escuros dela, e seus olhos brilharam com uma confiança que beirava o desdém.

— Vim visitar Fushi Ashbor.

O nome ecoou entre os cavaleiros, que se entreolharam.

— O jovem mestre da Casa Ashbor? — o líder questionou, com cautela.

Mabel então avançou, pisando com leveza, mas imponência, o som de suas botas se destacando no silêncio formado. Olhou de esguelha para o grupo e respondeu com a voz firme de quem sabe que nada lhe será negado:

— Sim. O atual senhor de Asherea.

Ela virou-se de lado com elegância e continuou enquanto caminhava:

— Não vou esperar formalidades nem anúncios. Quando uma Abyciss pisa na cidade, os portões deveriam estar abertos desde o nascer do sol.

Ferme a seguia sem dizer nada, mas a tensão em sua expressão deixava claro que ele conhecia bem aquele tom. Era o tom da Mabel monarca, que via o mundo como um tabuleiro e os demais como peças em movimento.

— Direcionem-me até a mansão de Fushi. Ou fiquem aí, ajoelhados, até o sol se pôr. — finalizou ela, sem nem olhar para trás.

O cavaleiro hesitou por um instante, então se levantou e gesticulou para os outros. Todos ficaram em posição e formaram uma escolta silenciosa. O líder correu para frente e, com a mão estendida, fez um gesto cerimonioso:

— Por aqui, Vossa Alteza…

Mabel apenas assentiu com a cabeça, sem perder o porte altivo.

Ferme, ao lado dela, murmurou baixinho:

— Você gosta mesmo de mexer com os nervos dos nobres, né?

— Se eles não aguentam pressão, não deveriam ter nascido com brasão. — respondeu Mabel, sem tirar o sorriso do rosto.

A caminhada até os portões principais da mansão Ashbor foi acompanhada por olhares curiosos dos moradores e reverências discretas de mercadores e transeuntes. A escolta formada pelos cavaleiros abria caminho com respeito absoluto, até que finalmente chegaram diante de uma imponente grade de ferro ornamentado com detalhes em prata e o brasão da família Ashbor gravado no centro — uma raposa entrelaçada por correntes de ouro.

Uma das empregadas, com avental branco impecável e postura rígida, correu até os portões ao avistar o grupo se aproximando. Seu rosto, assim que reconheceu a figura da princesa, perdeu toda a cor.

— V-vossa Alteza…! — disse, inclinando-se com pressa e tentando manter a compostura. — Irei informar imediatamente o Jovem Mestre Fushi de sua chegada!

Sem esperar permissão, a moça girou nos calcanhares e correu mansão adentro.

Mabel se aproximou dos soldados que a escoltavam e, de forma casual, porém autoritária, anunciou:

— Enviem alguém para buscar três companheiros meus. Estão em algum ponto do setor comercial da cidade.

Os soldados se entreolharam com breves sinais de hesitação, mas logo a princesa completou com precisão:

— Um deles se chama Nidaime. Está com uma jovem — pequena, mal-encarada, olhos cianos, cabelo prateado — e um velho carroceiro ranzinza. Eles estavam encarregados dos suprimentos. Quero os três aqui imediatamente.

— C-compreendido, Vossa Alteza! — responderam em uníssono. Dois cavaleiros montaram em seus cavalos e partiram pela estrada de volta à cidade.

Enquanto isso, Mabel recuou um passo, mantendo as mãos juntas atrás das costas e o queixo erguido. Ferme, ao seu lado, soltou um leve suspiro, mantendo os olhos na entrada da mansão.

— Você tem mesmo presença, hein. — murmurou com um sorriso discreto.

— Não é presença, Ferme. É o mínimo esperado de quem nasceu para mandar. — respondeu ela, com um ar quase divertido.

A porta principal da mansão se abriu com um estrondo suave e sons apressados de passos ecoaram na entrada.

Assim que atravessaram os amplos corredores da mansão, com paredes revestidas em madeira escura e tapeçarias discretas, chegaram à sala principal. Ali, em meio a móveis sóbrios e iluminados por grandes janelas, estava Fushi.

O jovem tinha 17 anos, o corpo quase completamente coberto por faixas brancas, que envolviam até parte do rosto, ocultando um dos olhos e a boca. Seu cabelo castanho caía desarrumado sobre a testa, e os olhos verdes observavam calmamente o grupo da cadeira de rodas em que se encontrava. A expressão era tranquila, quase impassível, mas carregava uma aura fria e calculista.

Ele falou com uma voz suave, porém firme, e um leve sorriso que lembrava a serenidade de alguém acostumado a manter o controle:

— Então, a princesa Abyciss vem até Asherea em pessoa. É uma honra. Ouvi dizer que procuram informações.

Mabel cruzou os braços, mantendo a postura que refletia seu sangue real, e respondeu direto:

— Exato. Viemos buscar dados sobre a situação atual da região, rumores e, claro, entender melhor os possíveis riscos que possam afetar Axoland.

Fushi assentiu, piscando o olho que não estava coberto pelas faixas:

— Informação não falta aqui. Asherea é a cidade mais movimentada de Axoland, e muito se ouve por seus corredores. Se quiserem, poderão ficar hospedados aqui na mansão durante a estadia. Garanto que terão toda a estrutura necessária para repousar e seguir com seus planos.

Ele fez um gesto lento com a mão, como quem convoca os servos para organizar a recepção.

— Considerem isso um convite formal da família Ashbor.

Mabel avaliou-o por um instante, claramente avaliando o valor da oferta.

— Aceitaremos a hospitalidade, por ora. Mas não se engane, Fushi, não viemos para socializar. Estamos de olho no que realmente importa.

Fushi sorriu com mais intensidade, seus olhos verdes brilhando de uma forma calculista e serena:

— Ótimo. Espero que encontrem aqui o que procuram.

Ferme, ao lado de Mabel, permaneceu observando em silêncio, meio incomodo, entretanto, agora começariam os negócios.