Capítulo 9 O Medo de voltar a confiar

Desde aquele almoço em família, algo dentro de mim começou a mudar. Pela primeira vez, meus irmãos me olhavam como se me vissem de verdade — não como a sombra de uma ferida antiga, mas como alguém com nome, história, sentimentos. Aquilo deveria me deixar feliz. E deixou. Mas, com a felicidade, veio também o medo.

Era estranho. A cada gesto de carinho, a cada palavra gentil, uma voz dentro de mim sussurrava: “Isso não vai durar.” Passei anos construindo uma armadura, empilhando lembranças para me proteger da rejeição. Agora, tudo parecia desmoronar, e eu não sabia viver sem aquela dor. Ela era a única certeza que eu tinha.

No domingo, fomos ao parque. Miguel insistiu que faríamos um piquenique como nos velhos tempos. “Só que agora vamos todos sorrir de verdade”, ele disse, tentando fazer graça. A piada era simples, mas senti um nó na garganta. Quando foi mesmo que sorrimos de verdade juntos? Teria sido antes de eu nascer?

No parque, nos sentamos na grama sob a sombra de uma árvore. Teresa estendia a toalha enquanto eu observava meus irmãos brincarem com o filho da minha irmã mais velha. A cena era bonita, digna de foto. Mas mesmo assim, me senti deslocada. Uma visita em sua própria casa. Uma peça que não encaixava direito no quebra-cabeça.

“Estás calada”, disse Teresa, sentando-se ao meu lado. Olhei para ela. Sempre tão calma. Tão mãe. “Só estou observando”, respondi. Ela sorriu com doçura. “Tens o direito de duvidar, filha. O amor, quando vem depois da dor, dói de um jeito diferente. Mas ele também cura, sabias?”

Aquilo ficou ecoando na minha cabeça: o amor também cura. Quis acreditar. Juro que quis. Mas dentro de mim, havia um buraco onde a confiança deveria estar. Um vazio moldado por anos de olhares evitados, abraços forçados, palavras nunca ditas. Como encher esse espaço agora?

Durante a semana, tentei me aproximar de Miguel. Propus que almoçássemos juntos, só nós dois. Ele aceitou com um sorriso sincero. Fomos a um restaurante simples, daqueles com mesas apertadas e talheres amassados, mas onde a comida tinha gosto de casa. Falamos de coisas pequenas no início — trabalho, trânsito, notícias.

Então ele largou o garfo e me olhou. “Sabes, Isabel… eu sempre achei que tu eras a filha perfeita. A que roubou o lugar que não sabíamos que existia. Hoje entendo que foste só uma menina tentando pertencer.”

Minhas mãos suaram. As palavras dele me cortaram e me curaram ao mesmo tempo. Engoli seco. “E tu eras o irmão que eu sonhava que me defendesse.”

Ficamos em silêncio. Mas foi um silêncio confortável. Daqueles que não pedem desculpas por existir.

Naquela noite, deitada na cama, pensei em quantas vezes quis fugir daquela casa, daqueles laços. Agora, eu queria ficar. Mas também tinha medo. Medo de que tudo fosse passageiro, de que o arrependimento deles evaporasse com o tempo. Medo de que eu voltasse a ser apenas “a substituta”.

Peguei o diário da mamã de novo. Reli uma frase que antes havia me passado despercebida: “O coração de uma mãe parte-se em pedaços iguais para cada filho, mesmo que uns não saibam.”

Talvez ela tenha vivido presa entre as ausências e as presenças. Tentando equilibrar a dor com o amor. E talvez, no fundo, todos nós estejamos apenas tentando encontrar o caminho de volta uns aos outros.

Decidi escrever também. Não um diário como o dela, mas cartas. Uma para cada irmão. Não para acusar, nem cobrar. Mas para abrir meu peito, mostrar as cicatrizes e dizer: “Ainda estou aqui. Ainda quero tentar.”

Na carta para Miguel, contei sobre os aniversários que passei sentindo-me invisível. Sobre o dia em que ouvi, sem querer, ele dizendo que eu era “o troféu da mamã”. Na carta para Clara, falei da vez em que desejei que ela me visse como irmã, não como intrusa. E na carta para Teresa, confessei que durante muito tempo tive raiva dela — raiva por me amar tanto, por me fazer carregar um peso que não era meu.

Não sei se vão ler. Não sei se vão entender. Mas precisava tirar isso de dentro de mim. Não podia mais fingir que estava tudo bem só porque as coisas estavam melhorando.

No fim, coloquei todas as cartas numa caixa pequena e guardei no fundo do armário. Ainda não era hora de entregá-las. Mas já era um começo. Um passo. Um ato de coragem.

Porque, afinal, é isso que o amor também exige: coragem.

E eu estava aprendendo — bem devagar — que talvez confiar novamente seja menos sobre os outros e mais sobre mim. Sobre me permitir ser amada, mesmo com medo. Mesmo com dúvidas. Porque onde há amor verdadeiro, há espaço para recomeços.