Nunca pensei que um simples toque na campainha pudesse desorganizar tudo o que eu vinha tentando organizar dentro de mim. A visita do Jonas, depois de tanto tempo, foi como abrir uma gaveta que eu havia jurado manter fechada. E o mais surpreendente foi perceber que, mesmo tantos anos depois, ele ainda sabia me olhar daquele jeito que ninguém mais sabia. Um jeito que não julgava, não pressionava. Apenas… via.
Depois que ele foi embora naquela tarde, sentei no chão da sala e fiquei ali por minutos — ou horas, talvez. Fui tomada por uma enxurrada de lembranças que me puxaram de volta para um tempo onde tudo ainda doía, mas havia alguma doçura no meio da dor. Jonas era essa doçura.
No dia seguinte, tomei coragem e enviei uma mensagem:
“Se quiser tomar um café um dia desses, estou por aqui.”
Minutos depois, a resposta chegou:
“Amanhã às 10h? O teu café preferido ainda é com leite e canela?”
Ele lembrava.
Na manhã seguinte, vesti uma blusa bege que ele costumava elogiar. Era bobo, talvez até infantil, mas parte de mim queria reencontrá-lo com alguma versão daquela Isabel que ele conheceu. A Isabel que, apesar de tudo, ainda sorria com esperança.
Cheguei ao café antes dele. O lugar não mudara quase nada — mesas de madeira, cheiro de pão fresco e café recém-coado, e uma música suave preenchendo o ar. Sentei perto da janela, como fazíamos antes. Ele chegou alguns minutos depois. Estava diferente, claro. Mais homem. Mais sério. Mas os olhos… os olhos ainda eram os mesmos. E isso foi suficiente para acalmar meu coração.
— Oi — disse ele, com aquele meio sorriso que eu nunca esqueci.
— Oi — respondi, tentando conter a enxurrada de emoções.
Conversamos por um tempo, começando por assuntos leves: trabalho, cidade, como o tempo passa rápido. Mas, inevitavelmente, chegamos à pergunta que estava entre nós desde o início:
— Por que desapareceste? — ele perguntou, a voz mais baixa, mas firme.
Respirei fundo. Eu devia isso a ele.
— Porque eu estava quebrada, Jonas. E não sabia como deixar alguém bom demais ver todos os meus pedaços. Achei que se tu soubesses quem eu realmente era por dentro, te afastarias de qualquer forma. Então fui eu quem me afastei primeiro.
Ele me olhou com tristeza, mas sem raiva.
— Eu teria ficado. Mesmo sem saber como ajudar. Só queria que tivesses confiado.
Aquelas palavras me perfuraram. Porque eu também queria ter confiado. Mas viver numa casa onde sempre me senti intrusa me ensinou a não me apegar demais às pessoas. A não esperar por permanências.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. Um silêncio cheio de verdades.
— E agora? — ele perguntou. — Ainda tens medo de confiar?
Pensei por um momento.
— Tenho. Mas também tenho vontade. Acho que estou num ponto em que o desejo de confiar está começando a ser maior do que o medo.
Ele sorriu.
— Então vamos com calma. Como dois estranhos que se encontram de novo e decidem começar do zero.
— Combinado — disse eu. — Mas preciso avisar que sou uma estranha que ainda guarda os bilhetes da escola.
— E eu sou um estranho que ainda lembra o gosto do teu café.
Rimos. E naquele instante, senti algo raro: leveza. Pela primeira vez em muito tempo, eu não estava carregando o peso de ser a filha “favorita” ou a irmã rejeitada. Era só uma mulher reencontrando alguém que marcou sua vida — e talvez estivesse prestes a marcá-la de novo.
Quando nos despedimos, Jonas segurou minha mão por um segundo a mais. O suficiente para dizer, sem palavras, que havia espaço para recomeços. Que algumas histórias não precisam ser apagadas, apenas continuadas de outra forma.
Voltei para casa com o coração aquecido. Não sabia o que viria a seguir, mas, pela primeira vez em anos, isso não me assustava. Porque agora eu sabia que também podia ser feliz. Que havia vida além da dor, além das mágoas familiares. E que eu merecia essa vida.
À noite, escrevi em meu caderno:
"Não se trata de apagar o passado. Trata-se de deixá-lo quieto, como um livro que já foi lido. E começar um novo capítulo — com coragem, com verdade, com quem escolhe ficar mesmo conhecendo todas as tuas páginas anteriores."
E dormi em paz.